Dibuiá

07/11/2023

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*Por Auritha Tabajara

Lá vem no caminho, toda comunidade com as trouxinhas de feijão na cabeça. Chegam, colocam no chão e o espalham para deixar as vargens sequinhas e estralantes.

É tempo da debulha do feijão!
Todas as noites, a comunidade se reúne para a debulha do feijão na casa maior, cada família traz uma comida para compartilhar e a coloca ali em cima do montante de feijão. As crianças brincam na areia do quintal até que o suor escorra por todo o corpo, depois que não querem mais brincar, elas vêm e sentam-se todas no chão ao redor do montante de feijão. Só então começam as contações de histórias.
Cada noite três crianças têm o direito de pedir uma história no tema que elas quiserem. Elas conversam entre si e juntas decidem sobre o que querem ouvir. Na noite seguinte outras três crianças, e assim sucessivamente.

Os curumins restantes decidem quem vai contar a história e
quem conta é sempre um ancião ou uma anciã.
E naquela noite a debulha do feijão foi na casa da avó Apó (raiz).
As famílias trouxeram: batata doce, milho verde, jerimum, inhame, peixe assado, tapioca, castanha de caju, bolo de mandioca, entre outras comidas.

– Nós decidimos que a história de hoje quem vai contar é a tia Ybyrá e é sobre a criança que chora na barriga de sua mãe, disse uma kunhataim.

Tia Ybyrá ( o que sai da terra) com seus mais de 90 anos começa assim:
– Naquele ano o inverno não foi muito bom, a gente precisava olhar a terra todos os dias e observar o caminho das formigas para saber quanto tempo faltava para chover. Açaí ( fruta que chora) estava grávida e foi com ela que resolvi sair para

arrancar uns carás, para comer no dia seguinte.
Quando de repente ouvimos um choro, era um choro de criança que parecia vir do ar. Paramos, escutamos e mais uma vez o choro ecoou por toda a aldeia. Açaí se desmanchava em risos, olhando para o céu, a passarada fazia festa entre as árvores e mais uma vez eu entendi que a nossa comunidade recebia de volta um ancestral muito sábio.
A notícia como sempre é espalhada através do som da maraca, e então a gente já começa a observar se tem todas as ervas plantadas, aquelas que vamos precisar no dia do nascimento do curumim. Para o banho é a camomila, pinhão roxo, alecrim, boldo pequeno, água de coco para lavar a moleira e a resina da amescla para fazer a defumação.

Durante 40 dias ninguém pode ver e nem pegar a criança, somente a mãe, isso porque o corpo da mãe ainda está aberto e o umbigo da criança também, então para evitar doenças físicas e espirituais, a mãe e a criança ficam sozinhas comendo as comidas feitas pela parteira e tomando banhos e chás de ervas.

Depois da quarentena, fazemos a dança do toré para agradecer a mãe Tamaim e pai universo pela continuidade da nossa vida. Todas as crianças que choram antes de nascer, na nossa cultura Tabajara, se torna um adulto inteligente e um ancião sábio, assim como a pajé Nayrã, cacique Ubiratã, a escritora Auritha, entre outros. – Agora vamos comer batatas antes que fiquem frias?! diz Tia Ybyrá.

Vovó vai na cozinha e traz a charmosa chaleira de chá de capim cidreira, adoçado com mel de abelha, feito no fogo à lenha, distribuindo na cuia de cada um.
– A história acabou vovó? perguntou um curumim.
– Ela foi ouvir seu avô, meu neto. Responde sabiamente, tia Ybyrá.

– E quando ela volta, vovó?
– Quando o amanhã se chamar presente outra vez.

Todos que estão ao redor do montante de feijão, todos, sem exceção, ficam em silêncio e muito atentos à história que está sendo contada, mesmo que ela tenha sido contada várias vezes, por anciãos diferentes.

Quando todo o feijão é debulhado, as famílias dividem entre si, em partes iguais. Nessa época a aldeia dorme um pouco mais tarde, lembrando que nós indígenas nos orientamos durante o dia, através do sol, dos cantos dos pássaros, das pegadas dos animais. E durante a noite com a lua, as estrelas e com os pássaros e animais noturnos.

O nosso tempo é circular, todo nascer do sol para nós é a renovação espiritual. A chegada da nossa velhice é também a da sabedoria ancestral, ficar velho na nossa cultura é uma dádiva e é por isso que os velhos são considerados os guardiões da memória do nosso sagrado e dos mistérios da vida.

Quando eu era criança, não gostava de debulhar o feijão, então antes de começar, minha avó falava:
– A preguiça de Auritha hoje vai virá poesia!

Eu já tinha preparado meu caderno, aquele sem brochura, mas muito bem organizado com os meus poemas, ali sentada na roda, eu transformava em cordel tudo que era conversado, uma vez ou outra fazia uma brincadeira com o nome de alguém e no final aquele lugar do montante de feijão, virava meu palco e eu era a atração da noite, declamando as minhas rimas e versos.

Trazer as trouxas de feijão na cabeça, se reunir para debulhar e contar histórias à noite, tudo isso é um costume do meu povo Tabajara, do topo da serra da Ibiapaba, do estado do Ceará.

E a kuinhataim depois de ouvir as palavras do feijão, pergunta: – O que vamos comer hoje?
– Caldinho, responde a tia Ybyrá.


*Francisca Aurilene Gomes, nasceu em Ipueiras interior do Ceará, chorou na barriga de sua mãe antes de nascer. Nasceu em casa pelas mãos de sua avó parteira Francisca Gomes, e por essa razão o nome ancestral Auritha Tabajara o qual assina suas obras literárias.
É escritora, cordelista e contadora de histórias indígena.
Três livros publicados, oito folhetos e vários textos em antologia no Brasil e fora do Brasil, alguns textos traduzidos em inglês e Alemão, tem levado a literatura em varias participações em feiras literárias como: FLIP, FLINS, FLIPF, FLIN,FLIPoA, FLIÙ entre outras. Seu livro carro chefe publicado em 2018 Coração na Aldeia pés no Mundo é altamente recomendado pela Fundação Nacional do Livro Infanto Juvenil, está na biblioteca de Washington para pesquisas e inspirou o filme Mulher sem chão o qual conta sua história.
Auritha é membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB) Com a cadeira 0345. É a primeira mulher indígena a publicar livros de cordel no Brasil.

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