Inventar a beleza

30/06/2025

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Leia a edição de JULHO/25 da Revista E na íntegra

POR MARIA VALÉRIA REZENDE
ILUSTRAÇÃO LUYSE COSTA 

O avô teve pena quando soube que a família tinha escalado o neto caçula, às vésperas dos 20 anos, para ajudá-lo na organização de seus tesouros a encaminhar ao Arquivo Público.  Não podia mais guardar tudo aquilo! Lembrava a fala do seu próprio avô: “Mortalha não tem bolso, caixão não tem gaveta…”.  

Aos 20 anos, pouco importa o passado, tão curto ainda, muito menos o futuro, longo a perder de vista. Aos 20 anos a alegria de viver era imediata. 

Viria o garoto ainda esperando, como quando criança, os casos que o avô tinha armazenado ao longo da vida e contava com talento de ator e ficcionista? Quanto mais lhe falhava a memória, mais fácil se tornava inventar, a partir de migalhas de lembranças, tornando mais engraçadas ou dramáticas as histórias. 

Espalhados pela casa estavam milhares de negativos e das “provas de artista” em papel, em tamanho 18 x 24, de sua longa carreira de retratista. O casarão tinha espaço para tudo aquilo e muito mais. A partida da mulher — amada por sessenta e tantos anos — tinha deixado um imenso vazio. Sentia-se solitário e perdido, apesar da companhia constante do ajudante Zé Pequeno e da velha cozinheira Zina. Três velhos numa velha casa, agora a esperar um sopro de juventude. 

Quando o neto, afinal, chegou, o moinho de histórias do avô estava bem abastecido de grãos e pronto para pôr-se em movimento ao vento da expectativa do garoto. Se, de fato, houvesse vento…  

Enfim, chegou um fuscão vermelho a roncar como uma tropa de bois assustados. O neto agora era um homem independente e ousado! O longo abraço entre os dois foi de carinho e admiração mútua. 

Sem ser preciso nada dizer, dirigiram-se para a grande mesa de jantar.  O rapaz não se conteve:  “que saudades da Vó!”. Olharam-se os dois e se viram refletidos um na lágrima do outro.  

A comilança e a conversa foram quase tão alegres como sempre, estendendo-se até à noite.  

Para o avô já era dia alto quando o rapaz acordou. Às oito da manhã estavam suas roseiras podadas, os botões entreabertos arranjados em buquês pelos belos jarros espalhados pela casa, tudo feito só por ele, como desde sempre − para saudar a mulher amada quando ela descia os degraus em seu robe-de-chambre a estender-lhe a mão. Ele, ao pé da escada, como sempre, já banhado, a barba escanhoada, o mesmo perfume entranhado na pele desde a juventude, o perfeito nó da gravata, as calças bem vincadas e os sapatos lustrados.  

O menino parece ouvir de novo as várias vozes contando e recontando a bela história de amor que, contra todas as previsões, dera tão certo e persistira por tantas décadas: 

Ele a viu, a primeira vez, vestida de anjo sem asas, quase uma noiva de véu branco e flores nas mãos, caminhando solenemente para o altar da coroação de Nossa Senhora, a cantar com voz de anjo. 

Ela − confessava − também o viu e o amou no mesmo olhar, em sua batina de seminarista, alto e esguio, ao lado do altar. Logo baixou os olhos. Amor impossível. Nem Montecchio nem Capuleto, mas ainda pior: suas famílias eram de grupos políticos irreconciliáveis cujas contendas acabavam frequentemente em tiroteios.  

Ele logo tudo descobriu sobre ela: tocava piano e compunha sonatas, falava francês aprendido no colégio das freiras. Ela descobria que ele sabia latim, é verdade, mas pintava belos quadros, sonhava ser artista e não padre como lhe impusera a madrasta.  

Também não foi nenhum padre, como o de Verona, mas sim uma amiga qualquer, bisbilhoteira, que se fez de protetora do amor impossível, leva e traz de recados, bilhetes, desenhos e partituras, ajudou a estabelecer o código pelo qual os enamorados combinavam cruzar-se, casualmente, na igreja ou na praça da Matriz. Cada um em sua casa, ambas nos pontos opostos mais altos da cidade, os lenços coloridos pendurados na janela dela indicavam a ele quando e onde a poderia ver. 

Viam-se, oblíqua mas apaixonadamente, pelos três meses que duraram aquelas férias, longos demais para permitir que se esquecessem, curtos demais para tanto amor. Ela, por sob a beira do chapéu, endereçava a ele seu extraordinário olhar: um olho verde quase azul, o outro cor de mel, quase castanho. O olho verde sussurrava “amo-te para sempre e esperarei por ti”, o outro quase bradava “coragem! vai, enfrenta os desafios para pôr teu amor à prova, e volta para buscar-me”.   

Ele, então, confessou seu amor proibido a seu padrinho que aconselhou: fosse como quem vai de volta ao seminário, levasse aquela maleta com roupas de homem, à chegada na estação trocasse a batina pelas calças e seguisse para o Rio de Janeiro.  

Dali em diante, que tivesse arte bastante para sobreviver. Ele foi, e sobreviveu. Aprendeu a fotografar, fez-se retratista de talento, percorreu por anos os interiores do Brasil café-com-leite, a retratar gente de todo tipo, até juntar mais que um bom dote para enfrentar o desafio de pedir a mão dela e obtê-la.  

Não, ela não morreu por amor nem por engano enquanto ele corria o mundo para conquistá-la. Apenas recusava todos os outros pretendentes encantados por sua beleza e prendas e esperava por ele, compondo sonatas. 

Até que ele voltou, adulto, bonito, profissional de valor e já reconhecido por sua arte. Todos, dos dois lados da cidade, queriam fazer-se retratar por ele, o melhor de todos. Anos se haviam passado e os tiroteios amainado. Embaixadas de ambos os lados antecederam o pedido de casamento, finalmente aceito. 

Foi mesmo um amor eterno renovado por um ritual a cada manhã: ele levantando-se com o sol, para correr ao jardim e renovar com botões de rosa todos os vasos da casa, depois banhar-se, e vestir-se para aguardar, ao pé da escada como Romeu sob a sacada, sua Julieta que descia as escadas, a estender-lhe a mão.  

Toda a história passou de novo pela memória do neto como uma lufada de vento, e ele volta ao presente sem querer despertar de novo as saudades eternas no coração do avô:  

–  “Continua fiel apenas às rosas cor-de-rosa, Vô?”  

– “Então! Nunca me interessei por rosas que não sejam cor-de-rosa, uai! Para mim não fazem sentido. Venha, tome seu café enquanto eu dou um pulo lá no mercado que hoje é dia de comprar aqueles abacaxis maravilhosos!”  

– “Espere um pouquinho que eu o levo de carro, Vô.”   

− “Não, meu filho, se não for para eu andar a pé e apreciar a cidade devagarinho, de que me serve ter operado a catarata dos olhos? É minha compensação, pois essa operação me trouxe também desgosto!”  

– “Como, Vô, não correu tudo tão bem, feito pelo melhor oculista do país?”  

– “Sim, quanto a isso não há dúvida! Mas acontece que para mim correu bem um bocadinho demais e me trouxe certas desilusões. Agora já não acho mais tão bonitas todas as mulheres!  Vejo rugas, papadas, manchas onde antes só via beleza!” 

O menino ainda ri quando ouve o clac do portão batendo e despeja o café na xícara.  “Esse é o meu avô de sempre”, pensa, “interessa-lhe tudo o que é bonito.  Mais ainda quando é ele mesmo a produzir as belezas!”  

Maria Valéria Rezende nasceu em 1942, em Santos (SP), e vive na Paraíba desde 1976. Dedicou-se à educação popular, em diferentes regiões do Brasil e no exterior.  Escreve desde que se alfabetizou, e adora contar e escrever histórias, mas só foi publicá-las em livros nas vésperas de fazer 60 anos. Publicou mais de 20 livros para crianças, jovens e adultos, recebendo vários prêmios (Jabuti, São Paulo, Oceanos, Casa de las Americas, entre outros). Tem obras traduzidas e publicadas em França, Espanha, Itália, Portugal, Argentina, China, entre outros países.  

Luyse Costa nasceu em João Pessoa (PB). É ilustradora e designer editorial. Formou-se em história pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Desde 2012 trabalha na área editorial. Ilustrou vários livros infantis e tem quase 100 capas feitas para diversas editoras. Em 2021, foi medalhista de bronze na categoria Design Editorial pelo Brasil Design Award, um dos maiores prêmios do país na área. 

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