Filósofo, defensor dos direitos indígenas, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak acredita numa educação para a convivência em defesa da vida na Terra
Por Maria Júlia Lledó
Fotos Adauto Perin
Leia a edição de FEVEREIRO/25 da Revista E na íntegra
Na aldeia Krenak, localizada na região do Médio Rio Doce, em Minas Gerais, nasceu, em 1953, Ailton Krenak. Protagonista das discussões em defesa do movimento socioambiental na Assembleia Constituinte, em 1987, comoveu a opinião pública. Ao discursar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, pintou o rosto de preto, com pasta de jenipapo, em sinal de luto. Um ano depois, participou da fundação da União dos Povos Indígenas, organização que busca representar os interesses indígenas no cenário nacional. E, em 1989, ajudou a criar a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia.
Pela literatura, Krenak expandiu o alcance de seu discurso dentro e fora do Brasil. Seus livros Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020) e Futuro ancestral (2022), lançados pela Companhia das Letras, compartilham a cosmovisão dos povos originários e fazem um alerta para os resultados da exploração descontrolada dos recursos naturais e humanos. Ano passado, Krenak lançou, pelo selo Companhia das Letrinhas, seu primeiro livro infantil, Kuján e os meninos sabidos, ilustrado por Rita Carelli e inspirado na oralidade de seu povo. “Foi Avó Laurita quem ouviu de Avó Bastiana”, escreve no prefácio. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2024, o filósofo e escritor voltou a protagonizar um momento histórico ao tornar-se o primeiro imortal indígena. Seu projeto? Levar à instituição mais de 300 línguas de povos que nunca tiveram reconhecida a oralidade enquanto narrativa e tradição literária. Nesta Entrevista, Ailton Krenak costura seus pensamentos sobre as dificuldades criadas e enfrentadas pela espécie humana, fala sobre a indispensável arte de sonhar, aponta para o poder de cura da literatura e clama vigilância constante para os direitos dos povos indígenas.
Seus livros Ideias para adiar o fim do mundo e A vida não é útil alertam para o risco de a humanidade desaparecer, uma vez que a própria espécie humana inviabiliza sua existência no planeta. Como foi o desenvolvimento dessas obras?
Quando eu mergulhei nesse estudo de nós mesmos, eu vi que já tínhamos experimentado, no século 20, muitas orientações pedagógicas. Afinal de contas, o Brasil teve Paulo Freire [1921-1997] e, no mundo, outros grandes educadores. Eles pensavam sempre em como preparar esse corpo humano para o trabalho, para a eficiência. Quando a gente virou o século, a gente descobriu que acabou o mundo do trabalho. A tragédia do século 21 deixou milhões de pessoas desempregadas. O que produz a fome e a miséria é a inadequação das pessoas para a sobrevivência, porque elas foram preparadas para o mundo do trabalho e o mundo do trabalho saiu debaixo dos pés de todos nós. Então, sem o mundo do trabalho, sem o piso para a gente pisar, eu comecei a olhar que a gente tinha caído numa espécie de abismo, onde a gente não teria no que se segurar, e que a própria ideia de esperançar, do mestre Paulo Freire, ficava sem âncora. Porque você não pode esperançar num mundo de zumbis, de gente que não tem território e que não consegue sonhar. Para esperançar, tem que sonhar. Uma outra semente que alimenta meu modo de pensar o mundo é o sonho. Como sonhar num abismo sistêmico desse?
Um dos caminhos que você aponta para adiar este possível fim do mundo caminha pelo viés de uma “educação para a convivência”. No que consiste essa ideia?
Como é que a gente vai se educar para a convivência? Não é uma idealização, e não é tolerância. Nós vamos ter que aprender com a terra a viver de novo. E a terra não dá moleza. A terra é uma mestra tão cortante que não vai dar segunda chance. E tudo indica que uma boa parte de nós não vai ficar vivo nas próximas décadas, diante dos eventos climáticos. Então, nós vamos ter que nos educar para entender o sinal da terra, aprender com a terra. Nego Bispo [pensador e líder quilombola (1958-2023)], antes de encantar-se, dizia: “A terra dá, a terra quer”. Teve gente que até anotou: “A terra dá, a terra come”. Não é só “quer”, não. A terra dá, a terra quer; a terra dá, a terra pede. Porque o nosso querido Nego Bispo tinha uma capacidade de espraiar um pensamento que ia além de uma direção só. Então, a terra doa, mas ela também come. E eu acho que agora está na hora da terra comer a gente.
Por que esse alerta, feito há décadas por lideranças indígenas, quilombolas e ambientalistas, começa a reverberar no mundo apenas no século 21?
A própria ideia de combater a fome e a miséria no planeta ressurge depois de 40 anos do Betinho [Herbert José de Sousa, sociólogo e ativista dos direitos humanos (1935-1997)] ter se imolado em torno de mobilizações no país. Agora, não se trata mais de um país, mas, sim, do planeta. Quando essa campanha [Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida] foi lançada no Brasil [em 1993], o mundo inteiro falou: “Ah, esses brasileiros inventam cada uma”. Porque eles não tinham esse problema. Só que a miséria e a fome agora estão batendo na porta do Banco Mundial, da Unesco, da ONU, da FAO, e eles estão todos falidos. A governança global vai ter que reconfigurar isso. No livro Ideias para adiar o fim do mundo, eu falo de quando a gente se organizou no Brasil para reivindicar um território na Serra do Espinhaço, que atravessa Minas Gerais e vai até a Bahia, na Chapada Diamantina. A gente teve que justificar para a Unesco porque queria proteger aquele território. Justificar com argumentos de biólogos, botânicos, geólogos, e ainda tivemos que fazer lobby junto à Unesco, na França, trazer gente de lá para vir sobrevoar o lugar e ver, atestar que a gente não estava mentindo, que aquele lugar existia. Aquilo é um manancial de águas. Nós vamos ter que nos reeducar, ou nos educar, para viver um tempo de mitigação de danos, e os danos incluem o corpo da terra e de nós mesmos, que somos capilaridade desse organismo.
Nós vamos ter que nos reeducar ou nos educar para viver um tempo de mitigação de danos, e os danos incluem o corpo da terra e nós mesmos, que somos capilaridade desse organismo
Outro aspecto sobre o qual você fala a respeito é o processo de dessensibilização das pessoas na era digital. Entre os resultados desse descolamento do corpo humano com o corpo terra, há quadros de sofrimento mental. Será preciso reivindicar o direito ao corpo nesse cenário de excesso de telas?
Eu costumo invocar a primeira manifestação das mulheres, as Margaridas, as mulheres indígenas, as camponesas sem-terra fazendo uma marcha em Brasília com uma faixa imensa dizendo: “Nosso corpo, nosso território”. Muito provavelmente, a mentalidade retrógrada entendeu que as mulheres estavam discutindo uma proteção da intimidade do corpo. Na verdade, estavam invocando um corpo-território. E um corpo-território é a cura possível desse abismo cognitivo e sensorial em que a gente se meteu, no qual o nosso corpo foi separado do corpo da terra de uma maneira radical e ampla. Eu escutei a professora Marilena Chauí dando um curso a distância, no qual ela disse que nós estamos passando por uma espécie de disrupção. É como se a gente estivesse passando por uma mutação, ela falou, do modo de nos conhecer e de conhecer o mundo. Ela disse que as pessoas não sabem mais o que é o seu entorno. Quer dizer, nós estamos vivendo num abismo e esse “nós” é um “nós” de todo mundo, tá? Ele não separa gregos e troianos. Ele não separa paulistas e baianos. Ele não separa ninguém.
Pode-se dizer, então, que os povos indígenas também estão sendo afetados por essa separação do corpo-território?
Alguém pode dizer: “Ah, tem um essencialismo que diz que os povos indígenas, os povos originários, os de matriz africana, o povo da diáspora, eles ainda têm essa magia de falar com a terra”. Mas, se você prestar atenção na voragem, até nossos povos estão sendo abduzidos pela fúria da mercadoria. O (Davi) Kopenawa Yanomami fala que existe uma crescente sociedade da mercadoria, que é como se um corpo fosse modificado e tudo virasse mercadoria. E os Yanomami estão dentro do território deles sofrendo uma invasão garimpeira. É como se não fosse mais uma escolha essa perda da comunhão com o território. Imagina o garimpo chegar lá na fronteira do Brasil, lá em cima, na fronteira com a Venezuela. Há 40 anos, eu li um relatório dizendo que aquele minério que estava lá, nos Yanomami, era inviável, porque não tinha logística para tirar aquilo de lá. A miséria é tanta que agora entram homens desesperados lá para morrer no meio do mato caçando o ouro – uma outra Serra Pelada. Quer dizer, nós estamos ficando muito mais pobres no mundo inteiro. Combater a pobreza no mundo pode ser uma espécie de última fronteira disso que se chama governança.
Agora, a Academia Brasileira de Letras, além da língua portuguesa, tem também 300 e tantas línguas nativas,
o que vai tornar aquele mundo muito mais complicado e muito mais divertido
Em 2024, você protagonizou um momento histórico ao ser eleito o primeiro indígena da Academia Brasileira de Letras (ABL). O que representa o título de imortal numa instituição que se restringia, até então, a ser um “espaço de lusofonia”, como você enfatizou na cerimônia de posse?
O projeto que foi comigo para a Academia Brasileira de Letras é o Língua Mãe. Como eu já tinha mencionado, inclusive na minha fala na posse: “aqui, vocês têm a função de difundir a lusofonia, promover a língua portuguesa, e eu quero trazer para cá uma sinfonia”. Eu mencionei o Mário de Andrade [1893-1945], que dizia num poema: “Eu sou trezentos”. No nosso caso, 305 línguas virão comigo. Eu fiz essa provocação, e obviamente isso grudou em mim. A minha cadeira na Academia Brasileira de Letras é uma plataforma porque eu provoquei essa situação. E com a minha querida amiga, Karen Worcman, do Museu da Pessoa, que desenvolveu tecnologias de registro, me animei a convidar o Museu da Pessoa para me ajudar a dar entrada a essa diversidade linguística numa plataforma digital. Eu também fiz um discurso corajoso na academia por evitar ler qualquer texto, e isso deixou os meus colegas da banca apavorados, estavam suando frio, mas eu consegui fazer o ritual deles de posse e concluí, digamos, meu rito de entrada, mas ficou pendurado: “o que você veio fazer aqui?” Eles me levaram para lá porque eles queriam extrair alguma coisa desse universo da oralidade. E eu acho que eles estão bem animados. Agora, a Academia Brasileira de Letras, além da língua portuguesa, tem também 300 e tantas línguas nativas, o que vai tornar aquele mundo muito mais complicado e muito mais divertido.
O termo “ancestralidade” tornou-se um dos mais buscados na internet. Grandes laboratórios de genética da América Latina, por exemplo, registraram um aumento de mais de 1000% na busca pelo teste de ancestralidade. Essa demanda é meramente curiosidade ou uma conscientização de que a partir da sabedoria de antepassados poderemos encontrar pistas para uma mudança real no presente?
Até o final do século 20, para marcar uma linha do tempo, isso não interessava a ninguém, a não ser aqueles que queriam pedir passaporte italiano. Eu soube que os nisseis e sanseis, quando voltavam para o Japão fazendo essa busca ancestral, não eram bem-recebidos. Tem uma parte dessa comunidade de adventícios, de gente que veio para cá, tem os que vieram muito, muito antes, tem os portugueses. E outros que vieram para cá depois. A Itália só admitiu a volta dos seus filhotes recentemente, porque eles começaram a ir em tudo quanto é arquivo público para caçar onde é que estava o parente ancestral deles. Então, há uma busca pela ancestralidade que a gente deve entender que tem um sentido prático: é para eu poder dar o pé daqui do Brasil se o negócio fritar. Para os povos de matriz africana, para o povo da diáspora, tem um reclamo profundo, que é saber de onde veio. Não é para voltar para lá. As pessoas não querem voltar para o Congo. Não querem voltar para algum lugar que a Bélgica, a França, a Inglaterra, as potências europeias picaram feito uma pizza e criaram fronteiras artificiais. Quando alguém que não sabe de onde foi arrancado e jogado aqui como peça, como um escravizado, esse reclamo é da alma dele. Eles tentam achar isso em tudo quanto é lugar e agora está tendo uma busca muito mais, digamos, coletiva: todo mundo quer saber de qual lugar foi arrancado Sabe a samaúma e aquelas raízes externas gigantescas? Ela vira um abrigo lá dentro de tão grande que é a raiz – chata, larga e profunda – que segura a árvore. É um monumento. Essas raízes são profundas mesmo, e essa profundidade nos anima à confiança de que não vai cair. Mas essas raízes não vão ser achadas na superfície. Se não buscarem de verdade (a ancestralidade), não acharão. Ficarão vendo, apenas, as armações externas.
Um corpo-território é a cura possível desse abismo cognitivo e sensorial em que a gente se meteu, no qual o nosso corpo foi separado do corpo da terra de uma maneira radical e ampla
Ou seja, por um lado, há uma busca legítima pela ancestralidade e, por outro, uma demanda de cunho mercadológico?
As armações externas da ancestralidade são aquilo que está em voga: parece que todo mundo quer glamourizar isso. Eu cometi um daqueles erros táticos de falar, no tempo da pandemia, num encontro com Zé Miguel Wisnik, que o futuro é ancestral. Compartilhei isso e dali para cá já foram publicados 399 livros sobre o futuro ancestral, ancestralidade, e o álbum do Alok, que ganhou Grammy. Então, tem todo tipo de apropriação. Eu podia ficar chateado, pensar que deveria ter ido lá no Instituto do Patrimônio Histórico Cultural e registrado. Eu acho que por um tempo ainda vai ter um consumo muito grande disso. A carência de matéria narrativa não é brincadeira. Assim é o campo da produção, seja da literatura, das outras artes, todas ficam ansiando por alguma matéria. Aí o que acontece, alguma coisa que dá faísca no ar, vira material para filme utilizar, roteirizar etc. É uma maneira de transformar tudo o que nos acontece, de alguma maneira, em narrativa. Monetizar tudo, monetizar a ancestralidade.
Voltando à importância de sonhar e de imaginar outras formas de ser e estar no planeta, de se conectar com os seres da floresta e com os rios, seu primeiro livro para crianças, Kuján e os meninos sabidos, foi uma forma de compartilhar suas ideias com essa nova geração?
Felizmente, muito antes de publicar esse livrinho, bons autores já abordaram temáticas tão relevantes para sua geração ler. Eu acho que a literatura com esse compromisso funciona como uma espécie de curativo diante de tanta violência de narrativas que as crianças sofrem. As crianças sofrem bullying de uma literatura ordinária e de uma mídia digital indecente. Esse acesso a esses conteúdos digitais é uma distopia total. É raro uma animação ou alguma coisa a que assistam que seja boa para elas, boa para o espírito delas. Então, essa literatura funciona como uma espécie de primeiros-socorros. Mas ela ainda tem uma capacidade reduzida. A infância está sendo exposta a uma violência tão grande que o máximo que a gente pode fazer é distribuir band-aids. Há na literatura uma experiência de imersão, mas eu não posso deixar de relativizar o poder da literatura porque senão a gente vai achar que alguns desses livros vão se interpor entre o dragão da maldade que existe no mundo digital e em narrativas violentas. Por isso é muito importante essas experiências de imersão na literatura, que é aprender com a Terra.
Assista a trechos dessa entrevista com Ailton Krenak, realizada em novembro de 2024, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo
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