Filósofo do instante

02/02/2025

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O legado atemporal de Antonio Cicero, autor de canções, versos e reflexões que superam o agora  

Por Manuela Ferreira 

Leia a edição de FEVEREIRO/25 da Revista E na íntegra

Em 1969, aos 24 anos e recém-chegado a Londres, o poeta, ensaísta, crítico literário e filósofo Antonio Cicero (1945-2024) conheceu aquele que seria seu melhor amigo até o fim da vida, além de figura limiar em sua produção criativa. Embora soubesse que o cantor e compositor Caetano Veloso vivia exilado na cidade, os mundos de ambos, até ali, nunca haviam se entrelaçado.  

Caetano, preso em dezembro de 1968, deixou o Brasil sob acusação de insulto à pátria, dias após a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5), que marcou o endurecimento da ditadura civil-militar instaurada em 1964. Cicero, oriundo da faculdade de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), era filho do economista Ewaldo Correia Lima (1945-1996), um dos fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).  

Para acalmar as preocupações dos pais, se mudou para a metrópole londrina após ser levado de casa para depor, duas vezes, em função de sua militância estudantil na organização clandestina Ação Popular. Sua intenção, no entanto, era seguir para Paris, França, que vivia uma onda de manifestações, greves gerais e ocupações de universidades e fábricas. “Bati na porta de Caetano numa manhã, para levar uma encomenda. Demoraram a atender. Quando abriram, era o seu empresário Guilherme Araújo (1936-2007). Caetano, Gilberto Gil e Jorge Mautner, que moravam lá também, estavam todos dormindo. Entreguei as encomendas, deixei um bilhete e fui embora”, recordou o poeta, em entrevista à série Em Primeira Pessoa, realizada no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, em 9 de agosto de 2019.  

Arte e afeto 

Um dia, caminhando pela feira da rua Portobello Road, ponto de encontro de imigrantes caribenhos na cidade inglesa, reencontrou Guilherme Araújo – que, desta vez, foi categórico: Cicero estava sendo convidado para uma reunião no endereço londrino dos tropicalistas. “Fiquei encantado com todo o grupo. Mas uma das coisas mais importantes da minha vida foi ter conhecido Caetano Veloso”, afirmou o filósofo. “Eu era muito influenciado pelos amigos intelectuais de meu pai, como [o sociólogo] Hélio Jaguaribe (1923-2018), [o advogado] Cândido Mendes (1928-2022) e [o economista] Celso Furtado (1920-2004). Ficava de ouvinte daquelas elaboradas conversas. Mas eles tinham uma ideia, comum ao intelectual brasileiro da época, que era a de desprezar a cultura popular, de modo que ninguém dava muito valor à música popular; achavam interessante, às vezes, mas não davam muito valor. E eu entrei nessa onda. Quando conheci Caetano, mudei completamente meu ponto de vista”, refletiu Cicero no depoimento. 

A partir das discussões propostas pelo amigo baiano, Cicero se convenceu de que era possível emergir uma obra-prima tanto de uma vertente artística mais popular, como a música ou o cinema, quanto de uma referência mais erudita – e que não há contradição nisso. As afinidades e inquietudes nascidas da amizade logo ecoaram nos versos e ensaios produzidos por Cicero. “Uma vez, a gente assistiu junto, na televisão, ao filme Cantando na chuva (1952), que eu já tinha visto antes (…). Mas Caetano me chamava atenção para cada aspecto, e via de uma maneira extremamente inteligente cada detalhe. Fui percebendo que eu é que estava errado por não prestar atenção a essas coisas. Essa [minha] atitude elitista, de superior intelectual, era completamente equivocada”, analisou na série Em Primeira Pessoa. 

Casa da palavra 

O pensamento crítico e a formação cultural e artística do poeta deram sinais desde muito cedo. A família chegou ao bairro do Leblon, zona Sul do Rio de Janeiro (RJ), nos anos 1950, vinda do Piauí. Apesar da proximidade com o Atlântico, Cicero não gostava de praia – faria as pazes com o mar já adulto. Também não gostava de ir à escola. Preferia estar em casa, lendo, a fazer qualquer outro programa com as crianças vizinhas. Foi assim, por exemplo, que descobriu os livros infantis do escritor Monteiro Lobato (1882–1948) e as enciclopédias da coleção Tesouros da Juventude, publicadas entre as décadas de 1920 e 1950.  

É nesse período que Cicero passa a se interessar, também, por filosofia, e se encanta pela poesia, a partir do primeiro contato com a obra I-Juca-Pirama (1851), de Gonçalves Dias (1823-1864). Ficou fascinado, inicialmente, com o ritmo da obra, ao perceber a sonoridade das sílabas átonas e tônicas presentes nos versos. Em 1960, quando toda a família se mudou para Washington D.C., nos Estados Unidos, em decorrência da carreira do patriarca, o agora adolescente se tornaria um devoto, em especial, das tragédias escritas pelo poeta e dramaturgo William Shakespeare (1564-1616), que lia no colégio. Uma de suas passagens preferidas é um dos mais famosos solilóquios de Macbeth (1606).  

Tempos e espaços 

Era comum ver Cicero recitar Macbeth, com paixão, em perfeita entonação e na versão original, seja em conferências, palestras ou entrevistas – a exemplo do depoimento para a série Em Primeira Pessoa. Dizem os versos do Ato 5, cena 1: E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado. 

Cicero faria, ainda, uma segunda estadia em território estadunidense. Era 1976 quando deu início à pós-graduação na Georgetown University. Dedicou-se aos estudos de grego e latim e, ao retornar ao Brasil, passou a lecionar filosofia, lógica, estética e teoria da arte em universidades e centros de ensino. Mas o nome do filósofo se tornaria conhecido do grande público no fim da década de 1970, quando sua irmã caçula, a cantora e compositora Marina Lima, musicou o poema “Alma caiada”, de autoria de Cicero, gravado por Maria Bethânia para o álbum Pássaro proibido (1976), mas excluído do disco devido à censura da ditadura militar. A música só foi lançada em 1979, no álbum Pedaço de Mim, de Zizi Possi. Em seu álbum de estreia, Simples como Fogo (1979), Marina deu voz a cinco poemas do irmão. A partir de então, o poeta colaborou com diversos parceiros da música,, como Waly Salomão (1943-2003), João Bosco, Orlando Morais, Adriana Calcanhotto e Lulu Santos.  

Música, letra e dança  

Em 1984, veio a canção “Fullgás”, que consolidou a carreira de Marina Lima e se tornou um clássico da MPB. “Os riffs dos sintetizadores no início da música são uma espécie de chamado à celebração do amor e de uma ideia de nação. Quando aquelas linhas de baixo balançam o ar na pista de dança, as pessoas em volta param de lutar por cerveja no bar, cancelam os pedidos de Uber e abandonam até a fila do banheiro. Não dá para ouvir ‘Fullgás’ parado. A canção de Marina Lima e Antonio Cicero, irmãos gênios nascidos com uma década de diferença, continua sendo um hino infalível do pop nacional, 40 anos depois de lançada no disco de mesmo nome, em meio ao fim da ditadura militar e à esperança de um Brasil novo que surgia”, escreveu o jornalista William Helal Filho para o Blog do Acervo, do jornal O Globo, em outubro de 2024. 

A parceria dos irmãos rendeu sucessos como “Charme do mundo” (1981), “Pra começar” (1986), “Acontecimentos” (1991), entre outros. Cicero trouxe à música popular uma densidade poética que raramente se encontrava em outros letristas. “Nunca pensei em ser compositor, em escrever letra de música, porque eu não tocava nenhum instrumento (…) eu não escrevo uma coisa para ser letra de música, eu escrevo quando já há uma melodia determinada, que se transforma numa canção (…) quando eu faço um poema, puramente, ele pode vir de onde for; uma palavra que eu ouvi, um romance que eu me lembro de ter lido muito tempo atrás; alguma frase que eu li em algum lugar”, revelou, em entrevista ao diretor teatral Aderbal Freire Filho (1941-2023), no programa Arte do Artista, da TV Brasil, em dezembro de 2012.  

Finitude sem fim 

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2018, o escritor publicou sete livros: quatro dedicados à poesia e três a ensaios filosóficos. Um dos conceitos mais examinados por sua obra filosófica é o da “agoralidade”, tema do artigo assinado por Cicero e publicado no jornal Folha de S.Paulo de 24 de julho de 2010. “Entre os séculos 16 e 18, estabeleceu-se o esquema tríplice de periodização que persiste até hoje. Tem-se a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade. Ora, ‘moderno’, etimologicamente, significa referente a agora ou, se quisermos, ‘agoral’. Modernidade, portanto, é a “agoralidade’”, definiu.  

O apego ao hoje, à coerência, ao brilhantismo e à elegância foi exaltado pelos amigos do filósofo como algumas de suas mais firmes características quando da confirmação de sua morte, aos 79 anos, no dia 23 de outubro de 2024. Antonio Cicero estava de mãos dadas com o marido, Marcelo Pies, quando foi submetido a um procedimento de suicídio assistido na cidade de Zurique, na Suíça, país onde a prática é legalizada. Após ser diagnosticado com Alzheimer e antes de experimentar uma maior progressão da doença, escolheu a morte assistida como forma digna e consciente de preservar a lucidez com a qual habitou o mundo.  

No dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2018, o filósofo, poeta e escritor Antonio Cícero exaltou a poesia e a literatura nacional em seu discurso, além de homenagear o primeiro ocupante da cadeira 27, o abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910). 

Guilherme Gonçalves/ABL 

Guardar 

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.  

Em cofre não se guarda coisa alguma.  

Em cofre perde-se a coisa à vista.  

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por  

admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.  

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por  

ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,  

isto é, estar por ela ou ser por ela.  

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro  

Do que um pássaro sem voos.  

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,  

por isso se declara e declama um poema:  

Para guardá-lo:  

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:  

Guarde o que quer que guarda um poema:  

Por isso o lance do poema:  

Por guardar-se o que se quer guardar.  

Do livro Guardar (Record, 1996) 

Territórios do pensar 

Coleção Mutações, das Edições Sesc São Paulo, reúne ensaios sobre arte e progresso assinados por Antonio Cicero 

Como filósofo, Antonio Cicero foi um dos participantes convidados da coleção Mutações, das Edições Sesc São Paulo, coletânea de ensaios que examinam diferentes temáticas a cada edição. No 11º livro, Dissonâncias do progresso (2019), a série aborda como o desenvolvimento tecnológico gerou inúmeros benefícios para a humanidade, a exemplo dos avanços na medicina e na comunicação – mas, por outro lado, reflete se a velocidade e superficialidade podem ser danosas para as relações humanas. No ensaio “Caminhos da razão e do progresso”, Cicero provoca nas primeiras linhas: “Parece-me que em nossa época, em todo o mundo, trava-se uma ocasionalmente violenta guerra entre, por um lado, os inimigos do Iluminismo e, por outro, os seus defensores. Logo de saída, quero deixar claro que me incluo entre esses últimos”. 

Na edição intitulada Entre dois mundos (2017), escreve o artigo “Homero e a essência da poesia”. Já no volume Ainda sob a tempestade (2020), Antonio Cicero versa sobre “Os direitos humanos vs. o neofascismo”. Didático, o filósofo norteia o leitor: “Preciso, em primeiro lugar, dizer em que consiste o neofascismo. Ora, evidentemente não é possível dizer em que consiste o neofascismo sem antes ter dito em que consiste o próprio fascismo. Pois bem, penso que o fascismo consiste, em primeiro lugar, em uma espécie de neobarbárie – agora é preciso explicar em que consiste a  neobarbárie, e, naturalmente, não é possível fazê-lo sem, antes, esclarecer em que consiste a barbárie”.  

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO  

Coleção Mutações  

Organização: Adauto Novaes  

Entre dois mundos (2017)Dissonâncias do progresso (2019)Ainda sob a tempestade (2020).  

sescsp.org.br/edicoes  

Em três volumes da coleção Mutações, o pensamento do filósofo e escritor alcança uma diversidade de leitores. 

Ana Alexandrino/Cia. das Letras 

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