Ajustar o foco com Jeferson De

27/05/2025

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Dedicado a criar outros caminhos para o cinema negro, diretor e roteirista mantém acesa a paixão pelo audiovisual, aliada ao ideal da representatividade na tela (foto: Marcello Casal Jr. )

Leia a edição de JUNHO/25 da Revista E na íntegra

POR DIEGO OLIVARES

Em meados dos anos 1990, quando frequentava o curso de cinema na Universidade de São Paulo (USP), Jeferson De se perguntava qual era o lugar dos diretores negros na história do audiovisual brasileiro. Dessa inquietação, surgiu o Dogma Feijoada, um manifesto com sete regras para a construção de um cinema negro, ou seja, realizado por cineastas negros, protagonizado por atores negros em personagens sem estereótipos e que privilegiassem o cidadão comum. 

Ao longo de mais de duas décadas, Jeferson De vem imprimindo seu estilo nas telas, em filmes como os premiados Bróder (2010) e M8 – Quando a morte socorre a vida (2019). Nesse tempo, assistiu a diretores e diretoras negras surgirem na esteira dos debates sobre a necessidade de maior representatividade em todas as esferas da arte e da sociedade. “Eu me sinto muito menos solitário”, celebra. 

Além do cinema, uma paixão desde os tempos de criança em Taubaté, no interior de São Paulo, ele é hoje um requisitado diretor de TV, tendo trabalhado em três telenovelas da Globo nos últimos anos, incluindo a atual trama das 18h, Garota do Momento. Elogiada pela crítica e pelo público, a produção foi estendida pela emissora até junho, dois meses depois da previsão inicial. 

Jeferson De participou da programação Em Primeira Pessoa, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, ocasião em que deu este Depoimento e falou sobre as diferenças entre fazer cinema e telenovela, contou sobre suas origens e analisou o impacto da premiação de Ainda estou aqui (Walter Salles, 2024) no Oscar para os profissionais do setor.  

Infância 
Só de falar do meu pai, eu já fico emocionado. Porque foi o cara que me apresentou o cinema, de fato. Meu pai tinha um nome que era só dele: Orbelino. Ele era metalúrgico, e o Vale do Paraíba era uma região toda ligada à metalurgia. Projetava filmes no clube dos funcionários. A gente ia na cidade vizinha buscar o projecionista e voltava. Lembro que, no banco de trás, eu vinha com o projetor. Minha primeira lembrança desse lugar do cinema e do audiovisual vem de estar ao lado dessa máquina que, para mim, era uma máquina mágica. Até hoje é. Porque, de repente, o projecionista pegava o projetor, montava os rolos, esticava o lençol [que servia de tela] e daquela máquina saía um monte de gente. Minha história é muito Cinema Paradiso [(1988), premiado longa-metragem italiano de Giuseppe Tornatore]. Quando eu vi Cinema Paradiso, falei: eu vivi isso. 

Magia 
O segundo registro, que para mim é muito determinante para a minha carreira como diretor, é de um cineasta em Taubaté, talvez um dos mais famosos e importantes diretores do cinema popular brasileiro. Ele estava fazendo seus últimos filmes num bairro da periferia, perto de onde eu morava. Eu ia para a escola de ônibus, descia e caminhava. Nessa caminhada, no bairro de Quiririm, eu via toda a movimentação de um set de filmagens. O nome desse cara era Mazzaropi [Amácio Mazzaropi (1912-1981)]. Provavelmente, em algum filme do Mazzaropi, se aparece um menino preto lá no fundo, sou eu, vendo a filmagem. Perdia algumas aulas, porque ficava acompanhando aquela situação. E, para mim, isso foi impressionante, porque eu conheci o cinema – primeiro, pelo lado da projeção, com meu pai levando o projecionista, e, segundo, vendo os sets do Mazzaropi. Ficava me perguntando como uma coisa se conectava à outra, como aquele bando de gente ia parar dentro da máquina do projecionista. Esse truque é a grande magia do que eu faço hoje no cinema e na televisão. 

Formação 
No colegial, eu me apaixonei pela filosofia. E, de fato, quando fui prestar vestibular, olhava a relação candidato/vaga, e tendo estudado sempre em escola pública, pensei: “caramba, jamais vou passar em cinema”. Porque para cinema eram 30 candidatos por vaga e filosofia eram três. Então, prestei vestibular na USP para filosofia, que era uma matéria que eu adorava. Logo conheci muita gente que fazia cinema e comecei a fazer optativas desse curso. Fiz história do cinema, história do cinema brasileiro, semiótica etc. E tive como professores grandes intelectuais do audiovisual: Ismail Xavier, Jean-Claude Bernardet, Maria Rita Galvão (1939-2017), Carlos Augusto Calil. Fui lendo muita coisa e conhecendo como o cinema funcionava. Mas naquela época [início da década de 1990], o cinema brasileiro estava completamente parado. Tinha uma lei obrigatória do curta-metragem [as salas de cinema deveriam exibir curtas brasileiros antes dos longas estrangeiros], mas não tínhamos nem 50 filmes por ano. 

Representatividade 
Quando fui pesquisar sobre a história do nosso cinema, falei: “peraí, cadê os cineastas pretos?”. Porque eu via muita coisa que se dizia cinema negro brasileiro, e ali estavam os filmes do pessoal do Cinema Novo [movimento cinematográfico característico dos anos 1960 e 1970, com forte crítica político-social] – e esses caras não são pretos. Então, tinha uma coisa que não se encaixava. Havia mostras no exterior falando de cinema negro, no entanto, os seus autores e diretores eram homens brancos. No período da chanchada [cujo auge foi entre as décadas de 1930 e 1950], o negro estava muito estereotipado, sempre era o objeto da ação, nunca era o sujeito. Por outro lado, no Cinema Novo, havia uma exaltação do povo brasileiro. Quando a gente queria falar de povo, bastava colocar um cara preto – era o povo. Mas não tinha a singularidade de um homem negro na tela. E aí, nesse debate, o Carlos Calil, meu professor, falou: “se você não concorda nem com o Cinema Novo nem com o período da chanchada, qual é a sua, então? O que você acha que tem que existir para a gente ter um cinema negro?”. E aí escrevi, literalmente, sete leis: o cineasta tem que ser negro, o tema tem que estar ligado à cultura negra, o protagonista tem que ser negro, tem que fazer filme rápido, com urgência. Assim nasceu o Dogma Feijoada. 

De Taubaté (SP) para os cinemas do mundo, Jeferson De vem se destacando também em produções para a televisão:

“Este lugar é de muita responsabilidade. Que histórias queremos contar e como queremos contá-las?”. 

(foto: Renato Nascimento)

Assinatura 
Quando fui assinar meu primeiro curta, tinha uma coisa de escolher o nome. Meu nome é Jeferson Rodrigues de Rezende. Meu avô era de Lorena, perto de Rezende. Provavelmente o sobrenome veio porque meus tataravós foram pessoas escravizadas pelo barão de Rezende, que dá nome à cidade. Então, como é que eu podia me chamar Jeferson de Rezende? Ou Jeferson Rodrigues? Não tinha nada a ver comigo. Sobrou o “De”. Falei: vou assinar Jeferson De, só de brincadeira. Aí ficou. Esse nome também veio para me lembrar desse lugar, de me ver como homem negro das Américas. Eu não consigo pensar a minha existência sem ser inaugurada pelo sofrimento. Então, o De é para me lembrar que um dia, meus antepassados, minhas avós, minhas tataravós, vieram acorrentadas, foram estupradas, foram abusadas, foram chicoteadas. E é por isso que vou conseguir construir o meu cinema. 

Oscar 
Eu acho que a vitória no Oscar muda, primeiramente, a nossa autoestima como brasileiro. A gente teve reconhecimento internacional. No trabalho do Walter Salles em Ainda estou aqui (2024), a gente reconhece valores da história do nosso cinema. Os reflexos dessa vitória a gente vai ver no futuro. De qualquer maneira, lá fora, quando eu falar que sou um cineasta brasileiro, as pessoas vão falar que assistiram ao filme. Isso, de alguma maneira, beneficia todos os cineastas, em maior ou menor grau. Walter Salles ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional e, ao mesmo tempo, o Festival de Cannes terá o Brasil como país de honra em seu mercado [a 78ª edição aconteceu entre 13 e 24 de maio].  Isso já é um reflexo de que o cinema nacional vai beneficiar muitas pessoas que produzem seus filmes. Não só diretores e produtores, mas, provavelmente, muitos maquinistas, iluminadores, costureiras… Enfim, uma cadeia imensa do cinema. 

Cinema e TV 
Mesmo os filmes maiores que fiz são cinema independente, de muita luta, de muito sacrifício. Produzir um filme no Brasil, ainda mais um que conte a história negra, nem sempre é algo “comercial”. Já na televisão é tudo grande. E no cinema, eu consigo me exercitar de ano em ano. Já na novela, eu me exercito diariamente. Hoje de manhã, eu estava com um elenco de 30 pessoas em um set de filmagem. Quando faço um filme, se ele atingir um milhão de espectadores, estou soltando fogos. Um capítulo da telenovela tem 30 milhões de espectadores. Tem uma pessoa de 10 anos e uma pessoa de 70 anos vendo a telenovela. Este lugar é de muita responsabilidade. Que histórias queremos contar e como queremos contá-las? Muitos dos meus desejos, desde o Dogma Feijoada, são hoje os da TV Globo também. Então, quando falo que temos diversidade na tela, isso é algo revolucionário. Neste momento, três mulheres negras estão protagonizando as telenovelas dessa emissora. Isso não é uma concessão, é uma luta dos artistas, e de todos os artistas negros.  

Assista a trechos desse Depoimento com o diretor e roteirista Jeferson De realizada no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, no dia 7 de março de 2025. 

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