Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra
A quinta maior bilheteria do cinema brasileiro. Assim foi recebido pelo público, o filme Ainda estou aqui (2024), dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres. O longa, que conta a história da família Paiva e mostra as feridas e cicatrizes da ditadura no Brasil, foi indicado ao Oscar em três categorias – Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz. Ao abordar uma temática da história recente, a obra emocionou brasileiros e estrangeiros e promoveu reflexões sobre o significado de viver sob um regime autoritário e de exceção. Afinal, de que forma a repercussão desse filme explica o atual momento do cinema nacional? Para além da camada do entretenimento e da memória, o que as produções audiovisuais brasileiras contemporâneas dizem sobre o país?
“O feito de Ainda estou aqui serve de exemplo prático para uma mensagem que a classe cinematográfica brasileira transmite há tempos: nossos filmes e nossos profissionais são excelentes. Temos muitas histórias, imagens e diálogos para oferecer aos públicos nacional e estrangeiro”, defende o crítico de cinema Bruno Carmelo, mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III. No entanto, adverte o crítico, um dos entraves para o reconhecimento do nosso cinema ainda passa pelo espectador brasileiro e a “síndrome de vira-latas – o cinéfilo brasileiro tende a preferir o cinema dos estadunidenses, o roteiro dos argentinos, a atuação dos franceses”.
Ainda que obstáculos como esse somem-se a políticas incipientes para alavancar o cinema nacional, festivais e mostras realizam um papel central na visibilidade de produções que refletem cada vez mais representatividade. Para Raquel Hallak d’Angelo, coordenadora da Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada entre janeiro e fevereiro, o cinema brasileiro contemporâneo é um campo de grande diversidade, complexidade e de possibilidades. “Marcado por algumas características importantes, que envolvem a pluralidade de vozes, a busca por novas formas de narrativas e a tentativa de ruptura com os modelos tradicionais”, observa d’Angelo, que também é coordenadora da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, e da CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.
Neste Em Pauta, Carmelo e d’Angelo projetam suas reflexões sobre a produção audiovisual brasileira e sobre os complexos bastidores das tramas que ganham as telas no país.
Por Bruno Carmelo
O anúncio dos indicados ao Oscar, na manhã de 23 de janeiro, trouxe um resultado excepcional para os brasileiros: além das sonhadas indicações de Ainda estou aqui (2024) a Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, para Fernanda Torres, a produção obteve uma inesperada seleção para a categoria de Melhor Filme. Trata-se da primeira vez que o nosso cinema conquista uma indicação ao prêmio máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas estadunidense. Antes disso, disputamos quatro vezes a estatueta de Filme Internacional com O pagador de promessas (1963), O Quatrilho (1996), O que é isso, companheiro? (1998) e Central do Brasil (1999). Ainda não vencemos a estatueta.
Comemoramos muito, compreensivelmente. É óbvio que tamanho destaque ao belo drama de Walter Salles garante uma visibilidade inédita à cinematografia nacional, que luta há décadas por reconhecimento. Vimos Fernanda Torres em talk shows nos Estados Unidos, trocando palavras com Demi Moore, recebendo elogios de Tilda Swinton e Kate Winslet. Para o cinéfilo local, que cresceu tendo Hollywood enquanto padrão de qualidade, enxergar a brasileiríssima atriz das séries de televisão Os Normais (2001-2003) e Tapas & Beijos (2011-2015) nestes espaços provoca um choque nos sentidos. Mas calma aí, então nosso cinema é tão bom assim? Do nível dos americanos? Fernanda Torres pode ser melhor do que Angelina Jolie e Nicole Kidman?
Ironicamente, é possível que o principal efeito prático da proeza em terras distantes seja o pontapé para os brasileiros voltarem a prestigiar o próprio cinema. Podemos lamentar a necessidade da validação gringa para acreditarmos em nosso potencial. Ou podemos, em chave otimista e pragmática, festejar o importante passo rumo à superação de nossa crônica síndrome de vira-latas – o cinéfilo brasileiro tende a preferir o cinema dos estadunidenses, o roteiro dos argentinos, a atuação dos franceses. A semanas da cerimônia, penso que, se o Oscar virá ou não, isso será secundário. A verdadeira vitória chegou com os holofotes: nosso jogo simbólico foi vencido no dia do anúncio. Enquanto isso, nos cinemas brasileiros, Ainda estou aqui ultrapassa incríveis 4 milhões de espectadores.
Passada a merecida euforia, é preciso tirar as conclusões corretas desse acontecimento. Seria equivocado acreditar que o cinema brasileiro melhorou neste exato momento, alcançando um retorno inédito porque, enfim, teria reunido qualidades para tal. O Oscar nunca foi questão de meritocracia. Vence o filme capaz de travar uma longa e caríssima campanha política, organizando pré-estreias, debates, entrevistas, rodas de conversa, aparições em eventos. É preciso apertar a mão dos votantes, tirar fotos com celebridades, viajar ao máximo de cidades.
Muitas vezes, produções excelentes não recebem indicações porque os membros da Academia não as viram – simples assim. É muito difícil assistir a mais de trezentos longas-metragens lançados comercialmente durante o ano, logo, os votantes se dedicam àqueles que lhes parecem interessantes. Portanto, o marketing precisa despertar o interesse, levá-los a descobrirem o filme de fato. Felizmente, Ainda estou aqui conta com recursos consideráveis da Sony Pictures, da RT Features e de demais produtores. A estatueta representa um investimento econômico, político e simbólico – a qualidade dos filmes, muitas vezes, fica em segundo lugar. Ou alguém ainda acredita que Shakespeare apaixonado (1998), Crash (2004) e No ritmo do coração (2021) fossem os melhores filmes dos seus anos?
Sim, Ainda estou aqui é um drama ótimo, que nos enche de orgulho. É uma alegria ainda maior sermos representados por uma obra desse nível. Mas – surpresa – o cinema brasileiro sempre teve essa qualidade. Sobrevivemos à censura e perseguição durante a ditadura militar, à extinção da Embrafilme, ao congelamento de recursos e à campanha difamatória comandada pela extrema-direita. Em todos esses momentos, continuamos produzindo longas e curtas-metragens excelentes. Quando nos perguntam: “o que fazer para termos outros Ainda estou aqui?, a resposta é dupla. É preciso entender a quais fatores se atribui o sucesso desse projeto.
No que diz respeito à qualidade, temos dezenas de Ainda estou aqui na cinematografia brasileira. Para citar o último ano, apenas, tivemos: Baby; Malu; O dia que te conheci; Cidade, Campo; Estranho Caminho; Fernanda Young: Foge-me ao controle; Othelo, o Grande; Motel Destino; Saudade fez morada aqui dentro; e Sem coração. Qualquer um deles poderia representar nossa produção cinematográfica em premiações – e diversos deles, de fato, foram exibidos em festivais importantes, como Cannes, Berlim e Veneza.
Retratos Fantasmas (2023), Marte Um (2022), Deserto Particular (2021), A Vida Invisível (2019) e Que horas ela volta? (2015) foram belíssimos exemplos recentes de filmes que levaram nossa bandeira ao prêmio máximo da indústria estadunidense. Poderiam perfeitamente colher troféus semelhantes àqueles atribuídos hoje a Ainda estou aqui. O motivo pelo qual não receberam a mesma atenção se encontra em recursos inferiores para efetuar uma campanha, além da má-vontade de alguns governos em investir na empreitada.
Para além do óbvio valor cultural das premiações, existe o investimento econômico: quanto mais o cinema brasileiro for prestigiado, levando o espectador à sala de cinema, mais a indústria cresce, e continua trazendo um precioso retorno financeiro ao Estado. Antes da pandemia de Covid-19, nossos filmes geravam lucro considerável: cada real investido implicava no retorno de R$ 1,3 aos cofres públicos, de acordo com o estudo da Oxford Economics, encomendado pela Motion Pictures Association (MPA) no Brasil.
Imagina o quanto esse ramo poderia crescer, caso contasse com investimentos regulares, editais contínuos, novas ferramentas de fomento, novos parques de exibição, além de leis mais fortes para proteger o conteúdo nacional? Países como França e Coreia do Sul adotaram medidas de valorização da cultura nacional, e colhem atualmente os frutos dessa iniciativa. Não existe nenhum motivo prático para não incentivar o cinema brasileiro, para além de barreiras ideológicas e preconceitos com políticas públicas. Por fim, o feito de Ainda estou aqui serve de exemplo prático para uma mensagem que a classe cinematográfica brasileira transmite há tempos: nossos filmes e nossos profissionais são excelentes. Temos muitas histórias, imagens e diálogos para oferecer aos públicos nacional e estrangeiro.
Não se estranha que Baby dialogue com novas configurações de família. É sintomático que Malu discuta os diferentes direitos e costumes das mulheres de três gerações; que O dia que te conheci aborde a solidão da classe negra trabalhadora; e que Motel Destino evoque a tentativa de aprisionar nossos desejos – que apenas explodem em cores e luzes, conforme nos mostra o diretor Karim Aïnouz. Nossos filmes falam de nossa sociedade. O Brasil tem o direito de se ver nas telas e precisa se reconhecer nessas narrativas para além da alegria de saber que os estrangeiros nos percebem também.
Bruno Carmelo é crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e da FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III. Professor de cursos sobre audiovisual e autor de artigos sobre cinema.
Por Raquel Hallak d’Angelo
Foi com essa indagação que a 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes abriu o calendário audiovisual brasileiro de 2025, na cidade histórica de Tiradentes, em Minas Gerais, fazendo um convite a refletir sobre o cinema brasileiro contemporâneo, sua relação com a sociedade e o modo como as telas têm sido palco para um Brasil multifacetado, cujos rostos, vozes e realidades ainda se encontram em processo de reconhecimento e representatividade.
O cinema é múltiplo em conceitos, e diverso em produção. E para encontrar respostas possíveis é preciso compreender a complexidade do cinema brasileiro contemporâneo por parte de quem pensa, pesquisa, faz, ensina, estuda, distribui, exibe, assiste, preserva o nosso cinema, no Brasil. Um cinema multifacetado, que reflete as diversas realidades sociais, políticas e culturais do país.
Várias respostas podem emergir da indagação: que cinema é esse? Por isso, mais do que respostas, é importante fazermos uma reflexão crítica dos acertos e erros da Nova República [período que teve início em 1985, pós-ditadura] para percebermos os dias atuais com um novo olhar; percebemos que muita coisa aconteceu e deixou de acontecer. Tanto o mundo mudou e requer uma compreensão e compromisso para enfrentar esse cenário desafiador que envolve o audiovisual em todas as suas vertentes de atuação, quanto requer lucidez e ousadia para seguirmos juntos e de mãos dadas para organizar e ampliar o lugar do audiovisual como identidade, direito, soberania, voz, arte, cultura, entretenimento, indústria e economia. Expressão legítima de um povo, de uma nação.
O cinema brasileiro contemporâneo é um campo de grande diversidade e complexidade, refletindo não apenas as transformações sociais e culturais do país, mas também suas contradições, desafios e possibilidades. Ele é um espelho da sociedade brasileira atual, com suas riquezas e problemáticas, suas diversas identidades e realidades. Pode-se afirmar que o cinema brasileiro contemporâneo é marcado por algumas características importantes, que envolvem a pluralidade de vozes, a busca por novas formas de narrativas e a tentativa de ruptura com os modelos tradicionais. Ao mesmo tempo, é um cinema que ainda enfrenta desafios significativos relacionados à representatividade, ao acesso e à própria produção.
E em que cinema você se vê na tela?
Essa é outra indagação que quero trazer, pois nos faz refletir sobre a relação entre o cinema e quem está assistindo. Para muitas pessoas, essa questão envolve um desejo de ver a si mesmas refletidas de maneira autêntica nas telas do cinema. Pode ser sobre a busca por representações de uma identidade racial, de gênero, de classe social ou de outras características que compõem a experiência individual e coletiva.
Por muito tempo, o cinema nacional foi caracterizado por narrativas centradas no homem branco, heterossexual e urbano. No entanto, nas últimas décadas, há um esforço para corrigir essa visão monocromática e para trazer, ao primeiro plano, vozes e experiências de populações tradicionalmente marginalizadas.
Podemos constatar que o cinema brasileiro tem registrado uma crescente pluralidade, refletindo as múltiplas identidades do país, com destaque para as questões de classe, raça, gênero, sexualidade e territorialidade. As narrativas periféricas, como as histórias das favelas, das comunidades indígenas e quilombolas, e dos povos de regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos ganharam mais espaços nas produções. Esse movimento se intensificou ao representar as populações que muitas vezes foram silenciadas nas telas, como as pessoas negras, indígenas, mulheres e LGBTQIA+. Surge um novo cinema, que se propõe a dar visibilidade às tensões sociais e políticas do Brasil contemporâneo, revelando, ao mesmo tempo, as lutas de grupos marginalizados e os conflitos internos de um país desigual.
Nosso cinema tem se configurado como um campo de resistência ao longo de sua história. Uma forma de enfrentar as imposições externas e internas, seja em tempos de censura ou em contextos de repressão política, invisibilidade e exclusão. Ao dar voz aos silenciados, ao abordar as questões mais urgentes do país e ao desafiar as estruturas de poder, o cinema brasileiro continua a ser uma ferramenta essencial na luta por um Brasil mais justo, democrático e representativo. Ele continua a ser uma resposta ao país, mas de forma diversa e multifacetada.
Em um Brasil marcado por tensões políticas, o cinema tem se posicionado de maneira explícita e implícita em relação aos conflitos internos do país. Sua evolução reflete, em muitos momentos, uma busca por dar visibilidade a temas ignorados. Muitos filmes e documentários contemporâneos se propõem a discutir a corrupção, a desigualdade social, o racismo, a violência policial, a crise política e o ataque às liberdades civis e à democracia, colocando o espectador em contato com uma realidade social muitas vezes invisível ou distorcida.
Outro aspecto da contemporaneidade é a crescente presença das mulheres no cinema que tem se fortalecido de maneira significativa, refletindo um movimento global de maior visibilidade e inclusão de cineastas, produtoras, roteiristas e personagens femininas nas produções audiovisuais. Além disso, uma série de mulheres tem ocupado espaços importantes na indústria audiovisual, proporcionando uma nova perspectiva sobre temas como o corpo feminino, a sexualidade, a maternidade, o trabalho e a independência. A produção de filmes que tratam de questões como racismo, resistência, cultura afro-brasileira e as lutas históricas dos negros no Brasil também se tornou uma forma de os cineastas afro-brasileiros explorarem as suas próprias identidades e narrativas, ampliando o campo da representação.
A resposta para em que cinema eu me vejo na tela depende de quem está perguntando, e da sua própria história, vivências e busca por representações fiéis à sua identidade. O cinema, nesse sentido, tem o poder de ser um espelho, mas também uma janela para novas realidades, permitindo que o público se veja e se compreenda, ao mesmo tempo que se abre para as experiências de outras pessoas. A constante busca por representatividade, a ousadia nas formas narrativas e a resistência política diante de um cenário adverso tornam o cinema brasileiro um reflexo autêntico de uma nação em transformação – ainda em busca de um futuro mais inclusivo e justo.
Raquel Hallak d’Angelo é graduada em comunicação social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e especialista em gestão do planejamento pela Fundação Dom Cabral. É diretora da Universo Produção, coordenadora da Mostra de Cinema de Tiradentes, da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, e da CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.
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