Inspirado no legado desenhado com o irmão Fernando, Humberto Campana leva para o mundo a assinatura singular da dupla que celebrou os fazeres manuais do país
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra
Inaugurado em junho de 2024, na cidade de Brotas, interior do estado de São Paulo, o Parque Campana é um museu a céu aberto. Em 12 pavilhões de larga escala, o espaço conta a trajetória de Humberto e Fernando Campana (1961-2022), dupla de designers reconhecida internacionalmente por abraçar a cultura brasileira e suas idiossincrasias. Erguido em um terreno que pertenceu à família, onde os irmãos se sentavam sob as árvores e sonhavam com outros mundos possíveis, o parque integra arte, educação e natureza, além de celebrar uma história que que permanece no trabalho de Humberto: a preservação e valorização de técnicas artesanais tradicionais da cultura brasileira.
Nascido em 1953, em Rio Claro, cidade vizinha de Brotas, Humberto Campana viu na oportunidade de cursar a faculdade de direito na Universidade de São Paulo (USP) a chance de expandir seu entendimento de mundo. No entanto, depois de formado, recalculou novamente a rota e, na Bahia, encontrou no artesanato sua primeira forma de expressão. Em seguida, a escultura e outras manualidades compartilharam espaço em seu processo criativo. A partir daí, as trocas com o irmão caçula, formado em arquitetura, sairiam do papel para a criação de móveis e objetos. Nesse percurso de mais de três décadas, a dupla mirava a criação fora do lugar–comum, alheia a referências que apontavam unicamente para as escolas europeias.
“No nosso caso, o design podia ser tanto uma obra de arte, como uma obra para se sentar. Eu acho legal poder fazer pontes e não ficar dentro de uma gaveta, porque a gente tem uma influência muito grande da Bauhaus e do Modernismo, mas nós não somos um país de racionalidade. Esse é um país de emoção, de texturas, de sol. A gente não é minimalista, a gente tem o Carnaval como expressão máxima”, conta o designer.
Um dos poucos profissionais brasileiros com peças no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), Humberto Campana fala neste Encontros sobre sua trajetória ao lado do irmão, do recém-criado Parque Campana, de seu processo criativo e da paixão por fazeres manuais.
REFERÊNCIA
Eu tive a felicidade de morar em uma cidade do interior. Na época, era um grande Cerrado, não tinha estrada asfaltada até São Paulo. Essa foi minha grande riqueza e tristeza também, porque, de certa forma, eu não me via naquele local. Eu fazia meus brinquedos. Minha alma já era grande e eu não sentia que cabia naquele espaço muito conservador e pequeno. A única coisa que tinha era um cinema e eu ia muito ver os filmes do [Amácio] Mazzaropi (1912-1981), [Stanley] Kubrick (1928-1999), [Federico] Fellini (1920-1993). Assistia a Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968), Barbarella (Roger Vadim, 1968), tudo com aquelas pontinhas por causa da censura e, no dia seguinte, eu e o Fernando reproduzíamos tudo aquilo. Era referência. Não tinha museu, não tinha nada. Então, com aquilo, eu criei meu mundo. Nós criamos o nosso universo naquele lugar tão afastado de tudo.
SALTO
Fiz a USP, me formei na [Academia de Direito do Largo do] São Francisco, e um amigo meu de Brotas, que morava em Itabuna (BA) me convidou: “por que você não vem ser advogado da cooperativa de cacau de Itabuna?”. Eu mandei fazer um terno de linho, fui para Itabuna, mas nunca usei esse terno porque a Bahia é a Bahia: outro universo de liberdade, de alegria, de leveza. Cortei o cordão umbilical com a minha terra, com a minha família e fui fazer espelhos de conchas. Eu vi que não tinha nada a ver ser advogado. Ia para Ilhéus, pegava um ônibus, pegava conchas em Olivença, limpava e fazia espelhos de conchas. Eles eram bonitos, pareciam aqueles ícones bizantinos, todos trabalhados com pedrinhas. Foi algo inesperado me descobrir como artista. Pensei: vou começar a minha vida com as minhas mãos.
DUPLA
Vim para São Paulo e comecei a me interessar por Victor Brecheret (1894-1955), Flávio de Carvalho (1899-1973), porque eu queria ser escultor. Comecei a fazer cursos de escultura na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado) e, enquanto eu fazia isso, mantinha meus espelhos de concha, que vendia em lojas de São Paulo, como o Mappin e a Mesbla. Aí o Fernando veio me ajudar no final de ano para as entregas de Natal. Ele já tinha estudado arquitetura com Renina Katz [artista plástica (1925-2025)], falava muito dela, e trabalhou na Bienal, com artistas como Keith Haring e Anish Kapoor. Então, o Fernando já tinha a modernidade e eu era aquele advogado careta e artesão, o que eu acho maravilhoso pois me considero, até hoje, um artesão. Só que eu não tinha essa visão de modernidade, nem a ousadia. Fernando sempre foi um enfant terrible. Enfim, ele foi me dando garras, ousadia e eu fui adquirindo tudo aquilo e trocando, porque a gente trocava muito. Eu sou muito paciente, tenho paixão pelo fazer manual, pelo processo.
DESCONFORTÁVEIS
Fiz uma viagem de 15 dias, acampando, no deserto do Arizona (Estados Unidos) e descendo o rio Colorado de bote inflável. Um dia, meu bote virou naquelas corredeiras e eu caí dentro de um redemoinho. Aquela experiência me provocou a fazer um desenho de uma cadeira em espiral, que executei durante um curso de escultura em metal que fiz na Faap. Com o recorte de metal que sobrou, Fernando fez outra cadeira. E assim surgiram as cadeiras “Positivo” e “Negativo”, dando início à coleção Desconfortáveis. Era 1988, já no início da democracia, eu quis soltar os cachorros, e as cadeiras vinham como uma coisa meio violenta mesmo, brutalista, perigosa. Elas não se importavam com o conforto. Queria que trouxessem tudo o que eu sentia. Então, para mim e Fernando, essa coleção foi uma canção de liberdade.
DESIGN
Eu acho que o design pode ser uma ferramenta política, além de ser funcional, bonitinho, cool. Ele pode contar uma história, pode mostrar de onde ele vem, pode resgatar tradições antigas que estão desaparecendo, a manualidade. Porque muita gente no Brasil ainda pensa o design como design industrial, coisas em série e tal. Acho que eu e Fernando fizemos o caminho contrário de tudo isso, da produção em série, de uma coisa limpa, polida, bonitinha. No nosso caso, o design podia ser tanto uma obra de arte, como uma obra para se sentar. Eu acho legal poder fazer pontes e não ficar dentro de uma gaveta, porque a gente tem uma influência muito grande da Bauhaus, mas nós não somos um país de racionalidade. Esse é um país de emoção, de texturas, de sol. A gente não é minimalista, a gente tem o Carnaval como expressão máxima. Eu trago todos esses elementos e acho que, às vezes, isso tem uma leitura errada, mas é isso que eu sei fazer.
Eu acho que o design pode ser uma ferramenta política, além de ser funcional, bonitinho, cool. Ele pode contar uma história, pode mostrar de onde ele vem, pode resgatar tradições antigas que estão desaparecendo, a manualidade.
PESQUISA
Sou apaixonado por materiais. Tudo começa pelo material: o meu olhar vai fotografando aqui e acolá. Quando algo me interessa, eu falo: quero trabalhar com isso. E aí começa um diálogo. Um exemplo foi o trabalho com o capim dourado. Há uns 10 anos, fui para o Jalapão (TO) e, numa comunidade, comprei muitos discos de capim dourado – sousplat – porque eu queria fazer alguma coisa, mas eu não sabia o quê. Queria fazer uma cadeira, mas cadeira de capim dourado não pode porque o uso vai desgastá-lo. E se eu o usasse na superfície externa onde o corpo não tocasse? Aí foi nascendo [a coleção Capim Dourado, 2023]. A mesma coisa com o mestre Espedito Seleiro, no Ceará, que trabalha com couro – o pai dele fazia roupa para os cangaceiros. Eu vi uma sandália que ele fez, me apaixonei e propus: “Espedito, o que o senhor acha de fazer um trabalho juntos? Eu crio o suporte e o senhor cobre esse suporte com a sua iconografia?”. Foi um trabalho lindo [a coleção Cangaço, 2015].
MANUALIDADES
Eu adoro o processo do fazer manual. Isso me interessa porque aí entra a ferramenta política – você pode mudar a história de uma comunidade, por exemplo, como nós fizemos quando projetamos a cadeira Paraíba (2009). Essa é uma cadeira feita com bonecas costuradas por uma comunidade da Paraíba [artesãs da comunidade Casa da Boneca Esperança]. Tomei conhecimento dessas bonecas e comprei uma série para fazer uma cadeira estofada com elas. Foi tão interessante porque aquilo saiu na mídia e, dois anos depois, recebo um telefonema de uma dessas artesãs dizendo que a gente tinha mudado a vida delas, que tinham comprado um galpão. Aí eu constatei: o design pode mudar a vida das pessoas.
INSTITUTO
Fernando e eu criamos o Instituto Campana [fundado em 2009] com a ideia de preservar tradições que estão desaparecendo – tradições manuais – e para melhorar um pouco a vida dessas pessoas. Abri uma porta para mim também, porque comecei a me interessar e a viajar mais pelo Brasil para trabalhar com outros artesãos. É uma troca: eu proponho coisas novas para eles, diferentes do que que eles já estão acostumados a fazer, e eles fazem o mesmo para mim. Isso amplia o meu vocabulário e é muito legal. Eu acho que os objetos feitos à mão contêm amor, afeto. Eles passam de pai para filho, não são jogados no lixo. Então, o fazer manual, nesse momento, o slow design, é o que mais precisamos.
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