Encruzilhadas da arte de Jé Oliveira

29/04/2025

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O dramaturgo estreou, em março, o espetáculo Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo?, uma adaptação livre de um conto de Machado de Assis. (foto: Marcelle Cerutti)

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POR RACHEL SCIRÉ

Na década de 1990, o tracejado da vida de Jefferson Oliveira Delfino, nascido e criado no Zaíra 2, periferia de Mauá, na Grande São Paulo, parecia distante do universo da arte. Mas uma encruzilhada fez com que o rap, a poesia e o teatro se encontrassem diante do jovem e descortinassem palcos e possibilidades. “O teatro foi um acidente em meu caminho. Que bom que a professora Milene, da Escola Estadual Hans Grudzinski, me levou para assistir àquela peça. Mudou a minha vida”, conta Jé Oliveira, hoje dramaturgo, com nove espetáculos escritos e encenados.  

Formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André, graduou-se também em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve seu mestrado, na Escola de Comunicações e Artes. É um dos fundadores do Coletivo Negro, grupo de pesquisa cênica, poética e étnico-racial, criado em 2008, e que em março de 2025 estreou Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação. Sob direção e dramaturgia de Oliveira, a peça é uma adaptação livre de um conto de Machado de Assis (1839-1908) e reflete sobre os ecos da escravidão no Brasil atual.  

Jé Oliveira também concebeu, dirigiu e atuou no espetáculo Gota D’Água {PRETA}, em 2019, que lhe rendeu o Prêmio APCA de Melhor Direção do ano, sendo o primeiro homem negro contemplado na categoria. Outro destaque de sua trajetória é Farinha com açúcar ou Sobre a sustança de meninos e homens, de 2016, obra dedicada ao legado do Racionais MC’s, grupo de rap determinante para os caminhos artísticos de Oliveira. O espetáculo integrou o Circuito Nacional Sesc Palco Giratório e o texto, publicado pela Editora Javali, foi semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura em 2019.  

Neste Encontros, Jé Oliveira fala sobre as motivações que o levaram a escrever, compor, dirigir, atuar e produzir. Também compartilha olhares sobre a cena teatral contemporânea e reflexões sobre a realidade brasileira, sempre alinhavadas em suas criações no teatro e na música. 

PRIMEIRO OLHAR 
Eu cursava o Ensino Médio em uma escola estadual de Mauá (SP), onde nasci, e a professora de língua portuguesa propôs que a gente fosse assistir à Morte e Vida Severina [peça baseada na obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999)], estudada nas aulas de literatura. Era uma montagem da Quartum Crescente, companhia de teatro amador do ABC paulista, da qual eu faria parte por quase quatro anos. Eu já era do movimento hip hop e, por causa do rap, as rimas me chamaram atenção. Me lembro, também, de não conseguir acompanhar os códigos da linguagem: três pessoas faziam o papel de Severino. Até hoje, quando estou pensando em teatro e em música, tento resgatar esse olhar virgem para deixar bem nítido para o público o que a gente está tentando dizer enquanto proposta de mundo, de intervenção social.  

CAMINHOS TRAÇADOS  
Nunca sonhei ser artista. Na minha família, meus primos formavam uma dupla sertaneja amadora e tocavam em festas na favela do Zaíra. Tenho lembranças muito bonitas da minha pré-adolescência, eles eram a única ponte concreta com a arte, até o hip hop, o rap e, sobretudo, o Racionais MC’s surgirem na minha vida. Por ser uma pessoa preta do ABC, desprivilegiada socialmente do ponto de vista econômico, o tracejado da minha vida estava bem distante da arte. Cumpri um pouco esse plano: cursei o Senai, algo muito importante para quem era da região e uma forma de realizar o sonho do meu pai, que foi torneiro mecânico, mas não pôde estudar. Aí, o teatro foi tomando conta da minha vida e decidi, com o encorajamento da minha família, estudar profissionalmente. 

NEGRO DRAMA  
Fui cursar ciências sociais para tentar entender como a sociedade se organiza, por que as coisas são assim. A obra do Racionais foi o evento artístico que me descortinou o mundo e a minha negritude. Me tirou a sensação de insuficiência individual do ponto de vista das vivências sociais, por exemplo, de achar que poderia ser uma incapacidade da minha família não ter outra condição econômica. O Racionais me ajudou a entender que isso é um percurso histórico que vem muito antes da minha família, que passa por ela, chega até mim e a gente está lutando para que diminua. Tentei aprender como esse grupo pensou o país, sobretudo pelo viés racial, e traduzir, então, para a minha linguagem.  

FARINHA COM AÇÚCAR 
Com a minha história de vida, formação técnica e pesquisa de linguagem, era como se eu tivesse me preparado a vida inteira, até aquele momento, para fazer a peça Farinha com açúcar ou Sobre a sustança de meninos e homens. A peça teve adesão maciça do público. Do ponto de vista da linguagem, foi inédito trazer o KL Jay, DJ do Racionais, para tocar durante o espetáculo. A própria relação com a música se fortaleceu. No espetáculo, a música é a outra personagem que dialoga com a narradora. Para os nossos empenhos artísticos enquanto teatro de grupo e movimento teatral negro, a peça trouxe respiros. As instâncias performativas também não eram tão recorrentes no teatro negro contemporâneo.  

CAVALOS IDEAIS 
Fui reler a Gota D’Água [peça de Chico Buarque e Paulo Pontes] e percebi que era uma história preta, portanto, devia ser feita por pessoas pretas. A produção de 1975 é linda, mas a história nos pertence, era preciso uma restituição, porque a história fala da gente e não pode apenas falar de nós sem a nossa presença. Historicamente, a figura do Machado de Assis [autor de “Pai contra Mãe”, conto que inspirou a nova adaptação do dramaturgo] também foi muito embranquecida. Para além da qualidade artística e da capacidade que ele teve de entender o Brasil, era importante trazer “cavalos” [atores] ideais para essa adaptação de Machado de Assis. Um grupo de teatro preto paulistano se aproximar da obra do Machado dessa forma é importante também em relação à própria negritude do escritor. 

ECOS COLETIVOS 
A autoficção nunca me interessou muito, então sempre vou buscar os ecos coletivos das histórias. Para o Farinha com açúcar, além das minhas vivências, entrevistei 12 homens negros, com o recorte de masculinidades, procurando uma unidade que coletivizasse a experiência racial. No Gota D’Água, mesmo que Joana seja a personagem principal, ela é um eco da comunidade da qual faz parte. Me interessava tirar a questão conjugal do primeiro plano, porque ela é uma metáfora de uma traição de classes, que no Gota D’Água {PRETA} vira também traição de raça. Agora, no Pai contra Mãe, existe o diagnóstico da persistência de um passado escravocrata e de algumas posturas de mando continuarem as mesmas. Quem está no poder tem a mesma cor de pele, o mesmo pensamento colonialista, opressor e explorador. A partir disso, queria que a gente conseguisse se fortalecer coletivamente para enfrentar essas questões que nos fragilizam individualmente.  

Cena do espetáculo Pai contra Mãe ou Você está me ouvindo?, que esteve em cartaz em março, no Sesc Consolação: uma reflexão sobre os ecos da escravidão no Brasil (foto: Bruna Quevedo). 

OCUPAR PALCOS 
Se só agora a gente está começando a ter alguns acessos é porque alguma coisa estava muito errada, durante bastante tempo. São somatórios de exclusões históricas, porque a diversidade de linguagens, de presenças, sempre existiu. Muita gente que não pode pisar naquele palco [do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação] vem com a gente e buscamos honrar essa possibilidade, o diálogo que está sendo travado com a sociedade como um todo ali. Por mais que esteja melhorando, a presença no teatro de pessoas que vêm de onde eu venho, que têm a minha cor de pele, ainda é muito ousada.  Gostaria de envelhecer alcançando esses lugares, com dignidade material, financeira e simbólica, e vendo isso acontecer com as pessoas que são pares de luta da minha geração. 

PEÇAS-DISCO 
Quem tem necessidade tem pressa, né? Talvez se eu tivesse tido outros acessos, não teria essa polivalência artística, de escrever, atuar, dirigir, compor, produzir, encenar. Mas é ótimo, adoro todas as funções e valorizo o fato de meus projetos exigirem muito da minha vitalidade. Jogar em várias posições contribui para a cena: quando escrevo e dirijo, penso como ator, e vice-versa, em paralelo com a música, porque eu queria ser músico. Gosto de pensar as peças como discos, me ajuda a conceber. Não à toa, o nome do espetáculo é Pai contra Mãe ou Você está me ouvindo?.  Do ponto de vista simbólico, enquanto sociedade, quais ecos do passado estamos ouvindo? A escuta ainda tem valor ou estamos perdidos em uma playlist infinita?

DE QUEBRADA 
Meu imaginário foi moldado por essa experiência de quebrada, por ter crescido na década de 1990, talvez o pior momento na história recente para uma pessoa preta e pobre em São Paulo. Eu sobrevivi, de fato. Isso me formou como homem negro, como cidadão, como artista pensante do país. Não dá para se livrar disso, está sempre comigo, mas fico atento para não fazer disso uma prisão, do ponto de vista estético, do discurso. Quero ter a liberdade de pensar em outras questões artísticas, e a periferia pode estar de várias formas no que eu faço, sobretudo na experiência musical preta, que é uma experiência de periferia. 

O ator e diretor Jé Oliveira participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E, no dia 27 de março de 2025. A mediação do bate-papo foi de Natalia da Silva Martins, da equipe da Gerência de Ação Cultural do Sesc. 

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