Práticas manuais criam territórios físicos e afetivos para construção de identidade, trocas de conhecimento e fortalecimento de laços sociais (foto: Dalton Yatabe)
Leia a edição de JULHO/25 da Revista E na íntegra
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Da casa para o trabalho, do trabalho para casa ou, para alguns, trabalhar em casa. Soa familiar? Quando o sociólogo estadunidense Ray Oldenburg (1932-2022) refletiu em The Great Good Place (1989) [O melhor lugar, em tradução livre] sobre uma rotina cada vez mais mecanizada, descrevendo os espaços ocupados pelas pessoas – casa (primeiro lugar) e trabalho (segundo lugar) –, ele defendeu a importância de um “terceiro lugar”. Esse “terceiro lugar” seria traduzido por espaços que promovessem uma convivência comunitária, trocas, além de um sentido de propósito e pertencimento.
Na época em que Oldenburg escreveu o livro, a internet e o celular estavam começando a pavimentar esse território digital por onde a população passaria a circular e interagir. Mesmo assim, o sociólogo já previa que a tecnologia, o crescimento das cidades e a cultura do consumo disputariam esse “terceiro lugar”. Na contramão de grandes mudanças provocadas pela era digital, um movimento guiado por saberes e fazeres manuais reivindica, em diferentes partes do globo, o “terceiro lugar”.
Os cenários e atividades são as mais diversas e para todos os gostos – uma roda de tricô, um grupo de desenho, uma vivência com jogos de tabuleiro, uma oficina de marcenaria, um curso de xilogravura etc. Práticas manuais que historicamente promoveram a socialização e a troca de conhecimentos ocupam hoje os parques, praças e outros espaços do centro urbano. Nesse outro lugar, crianças, jovens, adultos e idosos se permitem o exercício da criatividade e a fruição de novas ações e diálogos em comunidade.
À frente desse movimento, coletivos do estado de São Paulo, formados por profissionais de diferentes áreas, constroem o que o sociólogo estadunidense chamou de “infraestruturas dos relacionamentos humanos”. Como arte educadores, observam uma diversidade de pessoas interessadas em fazer desse território físico e afetivo criado pelas práticas manuais um “terceiro lugar”.
Ateliê itinerante
Um carro, modelo Veraneio 1976, chama a atenção dos moradores que o avistam, de longe, em Campinas (SP) – hoje a praça vai se transformar em ateliê. Cadeiras, mesas e uma prensa móvel são retiradas do veículo sob o olhar curioso dos transeuntes. “As pessoas já chegam na montagem perguntando o que a gente está fazendo ali, porque a praça, em geral, não costuma ter atividades”, conta a artista Luciana Bertarelli, uma das criadoras do Xilomóvel, projeto que se dedica à pesquisa e difusão da gravura.
Inspirada pelo projeto GRAVURANAKOMBI, no qual trabalhou durante a faculdade de artes visuais, na Universidade de Campinas (Unicamp), Bertarelli criou a iniciativa junto aos artistas Marcio Elias e Simone Peixoto. O objetivo? Tornar acessível o ensino da gravura, bem como os equipamentos e materiais utilizados. De 2009 para cá, o Xilomóvel já rodou mais de 60 mil quilômetros, passando por mais de 80 cidades brasileiras, transformando a rotina de cerca de 10 mil pessoas. Como “uma trupe de circo” que levanta a lona em espaços públicos, os integrantes do coletivo convidam: “A gente vai fazer uma atividade e ela vai ser gratuita, então, se você quiser esperar um pouco, fica aí. A gente já pega uma matriz e vai ensinar você a fazer uma gravura”, descreve a arte educadora. Por onde passa, o Xilomóvel alcança diferentes públicos. Apesar do medo que alguns apresentam de início, a curiosidade vai abrindo espaços internos para a confiança e o prazer de fazer algo novo. Aos poucos, os participantes deixam de se preocupar. “Aí a pessoa destrava e encontra na gravura um caminho de liberdade para se jogar no novo e fazer do jeito que ela quiser.”
Ao desenhar esse espaço de confiança e diálogo, o Xilomóvel transforma seu raio de atuação em um território de expressão individual e coletiva. “A gente realmente acredita que a questão da manualidade seja muito importante. Seja na gravura ou em outras técnicas, seja colhendo alimentos, plantando uma árvore… Ações que fazem a gente se conectar com o corpo e com outras formas de estar no mundo”, ressalta Bertarelli.
Desatando nós
Um dedal, herança da avó, foi o que motivou a arquiteta Carol Stoppa a se inscrever nas oficinas têxteis do Sesc Pompeia, em 2014. Foi nas aulas de crochê e tricô que ela se conectou com a memória da avó e se redescobriu entre fios e pontos. “Minha avó é quem fez isso, esse jeito de encontrar com ela, com a história dela e tentar descobrir coisas que eu não sabia a seu respeito. Tudo isso foi por meio do fazer. Quando a gente está fazendo alguma coisa manual, já está interagindo e se comunicando com a ancestralidade”, compartilha Stoppa.
Em 2015, a arquiteta se reuniu com outras mulheres que também viram nesse lugar um propósito. Juntas criaram o projeto Meio Fio, do qual, posteriormente, participariam diversas colaboradoras. Além dos encontros entre as integrantes do projeto, passou a ser arte educadora, realizando cursos, oficinas e intervenções de tricô e crochê. Nessas ocasiões, reparava nos participantes que, com suas linhas e agulhas, entrelaçava pontos e conversas. Nessa comunidade, tecida por muitos fios, observou o quanto as práticas manuais podem contribuir na construção de identidade e pertencimento.
“Eu tive um relato muito emocionante de uma senhora que foi, durante muitos anos, nas nossas oficinas: a dona Edna. A filha dela veio falar que a mãe não enxergava sua força, mas que dona Edna foi descobrindo isso em nossas oficinas. Ela conseguia explicar o que estava sentindo quando mostrava a materialidade do que tinha feito, na oficina, para a filha”, recorda. Outras participantes das oficinas do Meio Fio também encontraram nesse lugar um espaço para sonhar. “Eu ouvi de mulheres mais velhas: ‘desejo sempre a mesma coisa para meu filho e para minha família: que tudo fique bem’. Mas, a gente pergunta: ‘e qual é o seu desejo?’. Aí, a pessoa começa a investigar isso por meio do fazer manual”, complementa Stoppa.
Há dez anos, o projeto Meio Fio costuma se reunir em cafés na cidade de São Paulo, além de outros espaços, como instituições e equipamentos públicos. E a roda de curiosos e praticantes do crochê e do tricô só aumenta. “Desfazendo nós”, como brinca Stoppa, as manualidades convidam as pessoas a desligar seus celulares para estar no momento presente. Um desafio necessário, segundo a arte educadora, para que haja a possibilidade de reconexão com o próprio desejo e de relação com os demais. “Por isso, acredito que o fazer manual seja uma forma muito potente de criar coletividade”, arremata.
Construção de aprendizagem
Quando estudou desenho industrial na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, Leonardo Gallep já flertava com atividades manuais, se arriscando a fazer objetos de madeira que, ao final da faculdade, desdobraram-se em uma instalação cinética. Depois de se formar, em 2009, passou a se dedicar a projetos autorais até que, em 2015, quando precisou desenvolver “uma espécie de máquina maluca e outras geringonças” para a cenografia de uma exposição no Sesc Ribeirão Preto, pediu ajuda aos amigos Alexandre Nacari, designer, Fabricio Masutti, músico, e Gustavo Sarti, criador de jogos. Juntos criaram, naquele ano, o coletivo Máquina Tudo.
Eles se dedicam a projetos interativos que pensam arte, tecnologia e educação como ferramentas lúdicas. Em oficinas ou vivências que prezam pela “construção de aprendizagem”, como define Gallep, o público cria brinquedos mecânicos e ópticos, jogos de madeira e caleidoscópios, por exemplo. Apesar de notar um crescente interesse por diferentes práticas manuais, Gallep ainda observa algumas resistências no meio do caminho. “Tem aquela pessoa que trava e fala: ‘Ah, mas eu sou péssima nisso’. Até que em uma ou duas horas de atividade, você vê a virada de chave. Vê o quanto a pessoa realmente pode mergulhar”.
Gallep defende que objetos feitos à mão guardam sua real importância no processo, ou seja, enquanto são elaborados. Tanto que em uma oficina de jogos voltada para arte educadores, o designer reforçou: “A ideia não é sair daqui com um jogo pronto.” Para o coletivo, mais interessante do que ter algo concreto finalizado é ver os participantes juntos, pensando no desenvolvimento e nos conceitos para a criação do jogo. “E no meio, ali, a pessoa descobre que tem uma super habilidade com determinada coisa ou, às vezes, ela passa a conhecer um assunto que nem estava sabendo. Como foi o meu caso, até descobrir quais linguagens eu gostava para fazer as instalações, entre outros projetos.”
Elo geracional
Imersos no universo da ilustração e do grafite, quatro amigos do Vale do Paraíba (SP) resolveram criar um coletivo para somar artes e compartilhá-las em oficinas. Alan de Oliveira (Tubão), Carolina Pereira (Lumina Pirilampus), Daniela Koyama (Dtkoy) e Giuliana Koyama (Giuko) criaram, em 2019, o Coletivo Catota. Assim mesmo: ca-to-ta, para que o nome engraçado e despretensioso instigue a curiosidade de crianças e adultos também. A primeira oficina – Monstrinhos à solta, criação de máscaras de papel de criaturas fantásticas – foi realizada assim que se formou o coletivo. Com a entrada do quinto integrante, Leonardo Alcântara (Noelodran), veio a segunda oficina – Dançantes animados, criação de “monstrengos” de papel projetados na parede – e outras mais.
Desde então, o grupo busca no fazer manual uma expressão da criatividade, mas também, uma ponte intergeracional. “A gente nunca quis que as nossas atividades fossem somente para crianças. Os adultos acham que vão chegar na oficina, deixar a criança, e ficar olhando. Aí, a gente já puxa uma cadeira para eles e fala: ‘Olha, aqui está o seu kit para você fazer’. Os adultos que mais recusam e passam a aceitar no meio do processo são os que mais se divertem e falam: ‘Nossa, há quanto tempo eu não fazia algo assim’”, descreve Alan de Oliveira, o Tubão.
Se em casa, o momento da brincadeira e da conversa entre pais e filhos perde espaço para as telas do computador, do celular ou dos jogos, práticas manuais que envolvem toda a família se encarregam de mostrar outro caminho para essa relação. Pais, cuidadores e responsáveis somam-se na brincadeira de criar com as mãos monstros de todas as cores, de três pernas, cinco olhos ou o que mais a imaginação permitir. Próximos, os integrantes do Catota se asseguram de que os mais velhos não vão interferir no processo criativo dos mais novos. “Tem crianças que precisam de ajuda e o responsável ajuda, mas às vezes, ele interfere no processo da criança e a gente fica muito atento para não permitir que isso aconteça. A gente tenta quebrar esse gelo, essa dureza do adulto, e tem que mediar para que haja ali um caminho livre para a criação.” No final, entre figuras estrambólicas, as vivências do coletivo convidam o público a uma grande festa: “monstrengos e catotentos dão risadas”.
Abrir espaço
“Era só seguir o fluxo”. Assim pensava o multiartesão Guilherme Siqueira, durante os 21 anos como engenheiro da área de tecnologia em grandes empresas. No trabalho, galgou cargos de maior responsabilidade, viajava constantemente, até perceber, principalmente com o nascimento do filho, que aquele modus operandi não lhe servia mais. Contrariando a expectativa de amigos e familiares, deixou o emprego em 2020 e retomou, durante a transição de carreira, o gosto pelas práticas manuais. “Eu já tinha um chamado porque meu bisavô era marceneiro e minha mãe era artista plástica. Aí, quando meu filho fez dois anos, eu falei: ‘Nossa, eu não vi esse tempo passar, não curti meu filho’. Eu estava presente, de corpo, mas a cabeça não estava lá”, recorda.
A escolha do artesão se multiplica, principalmente entre jovens, como se o Zeitgeist, ou espírito do tempo, provasse a necessidade de criar outros espaços na vida fora do lugar de trabalho. “A saúde mental virou um dos grandes temas do nosso tempo. E talvez parte desse mal-estar venha justamente do quanto nos afastamos de processos reais e concretos – daquilo que exige presença, paciência e envolvimento”, escreveu Siqueira em artigo publicado na revista Mega Feira de Hobbismo em julho. Mas onde seria possível experimentar essa presença e envolvimento? A resposta do sociólogo Ray Oldenburg, que vislumbrou um “terceiro lugar”, foi o caminho traçado por Guilherme Siqueira.
De aprendiz autodidata – “uma hora eu estava tricotando, na outra fazendo marcenaria ou pão de fermentação natural” –, ele passou a se dedicar à criação de objetos funcionais a partir de madeira e aço. Siqueira entendeu que o conhecimento adquirido deveria ser compartilhado e criou a Forjaria Escola em 2023, com o sócio e marceneiro, Eric Cerdeira. “A Forjaria apareceu como mais um ponto de gravidade para pessoas que pensam parecido. A ideia mesmo é de uma comunidade”, descreve.
Ao longo desse caminho, entender-se como artesão e arte educador foi um processo gradual, de alguns obstáculos. No entanto, ele acredita no movimento que realoca os saberes e fazeres manuais como parte essencial da sociedade, uma vez que “desde os primeiros tempos, usamos as mãos para moldar o mundo: construir, reparar, transformar”, constata. Hoje, seja na Forjaria Escola ou em outros cursos que realiza, percebe um número cada vez maior de pessoas interessadas por ofícios manuais. “Talvez todo este movimento não seja só um resgate do passado. Talvez seja, na verdade, um caminho possível para o futuro – um futuro mais consciente, sensível e humano”. E conclui: “talvez não sejamos nós que estamos resgatando os ofícios. Talvez sejam eles que estão, aos poucos, resgatando todos nós”.
artes e tecnologia / para ver no sesc
Criatividade à solta
FestA! – Festival de Aprender estende alcance e multiplica atividades realizadas nas unidades do Sesc São Paulo em todo o estado
Ao longo do ano, o Sesc São Paulo dedica em sua programação permanente de oficinas, cursos e vivências, um lugar dedicado ao fazer manual e à sua importância para a troca de saberes, diálogos, e sentido de comunidade. Para além das atividades realizadas em todo Estado, os Espaços de Tecnologias e Artes, os ETAs, em mais de 35 unidades, somam projetos que reforçam esse compromisso. Neste mês, o FestA! – Festival de Aprender realiza sua sétima edição de 4 a 13 de julho. Na programação, mais de 460 atividades nos campos das artes visuais e da tecnologia voltam-se a um público de todas as idades, distribuídas em 44 unidades.
“A programação do FestA! propõe encontros que unem artes visuais, saberes tradicionais e experimentações com tecnologias variadas, criando ambientes de construção de identidade, comunidade e redes de afeto. Acreditamos no poder das práticas culturais como caminhos de expressão, identidade, pertencimento e cuidado coletivo, especialmente em contextos urbanos, onde fortalecer os laços comunitários e os espaços de partilha se torna cada vez mais necessário”, explica Juliana Braga, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia.
Confira destaques da programação:
Itaquera
Dançantes animados
Com Coletivo Catota
Crie um personagem articulado com papel e experimente texturas variadas a partir da técnica de stopmotion. Criaturas ganham movimentos para conquistar o mundo com dancinhas para lá de divertidas. Ao final, os participantes celebraram juntos uma projeção animada dos dançantes produzidos. Dias 5 e 12/7. Sábado, às 10h. GRÁTIS.
Mogi das Cruzes
Experimente a mecânica do Pedra-Papel-Tesoura
Com coletivo Máquina Tudo Que tal experimentar a mecânica do tradicional jogo Joquempô em duas máquinas criadas exclusivamente para o FestA!? Os jogos partem da mecânica do Pedra-Papel-Tesoura e prometem provocar a diversão e o aprendizado dos participantes por meio de tecnologias analógicas e digitais. Dias 5 e 12/7. Sábado, às 11h. Dias 6 e 13/7. Domingo, às 11h. GRÁTIS.
Birigui
Impressões de Clichês de Madeira
Com Xilomóvel
Nesta oficina, os participantes brincam com a impressão de matrizes de xilogravura recortadas. Os diversos clichês de madeira podem ser montados livremente pelos participantes em camas de impressão, utilizando duas cores de tinta gráfica e equipamentos tradicionais da gravura, como o rolo de entintagem e a prensa. Dia 12/7. Sábado, às 14h. Dia 13/7. Domingo, às 14h. GRÁTIS.
Ribeirão Preto
Coração Morada
Com Coletivo Meio Fio
O que mora no seu coração? A oficina convida participantes de todas as idades a bordar livremente, em um tecido, seus desejos e sonhos, sobre um coração anatômico impresso. Dia 12/7. Sábado, às 15:30. Dia 13/7. Domingo, às 13h e às 15h30. GRÁTIS.
Sesc Digital
Introdução à marcenaria – Móvel modular
Com Joici Ohashi
Neste curso online, a designer de móveis e marceneira Joici Ohashi apresenta o universo da marcenaria da teoria à prática, ensinando a criar móveis modulares versáteis e funcionais. Para isso, unem-se habilidades técnicas e conceitos de design funcional para o participante explorar a criação manual com autonomia e segurança e descobrir a da marcenaria, como forma de expressão, trabalho e realização pessoal. Inscreva-se em sescsp.org.br/ead. GRÁTIS.
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