Marina Colasanti, tecelã de histórias 

29/04/2025

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POR LUCIANA ONCKEN

Cinco maneiras diferentes de contar uma mesma história. Foi assim, desafiando-se com as palavras, construindo narrativas distintas, que a escritora Marina Colasanti (1937-2025) elaborou seu conto “A cidade dos cinco ciprestes”, publicado em livro homônimo, em 2019. Inúmeras são também as versões de si e, do mesmo modo, partindo de múltiplos ângulos, formas e perspectivas, é possível apresentar a vida dessa autora. Com a diferença de que, neste caso, não se trata de ficção. 

Entre as possibilidades de leitura de sua trajetória, pode-se iniciar com a artista plástica ou com a jornalista. Com a criança recém-chegada à cidade do Rio de Janeiro no pós-guerra, ou antes, com uma nômade que aportou em terras brasileiras, vinda da Eritreia (na África oriental), aqui fincando raízes. É possível começar com a cronista, a contista, a poeta. Com a feminina, feminista. Com a mãe de Fabiana e de Alessandra, avó de Nuno; com a parceira de vida do escritor e poeta Affonso Romano de SantˇAnna (1937-2025); com a sobrinha da cantora lírica Gabriella Besanzoni e Henrique Lage, com a irmã de Arduíno, artista de cinema. 

Com tantas versões, o fato é que Marina Colasanti excede qualquer texto. Nos anos 1960, já formada em artes plásticas, Marina Colasanti iniciou seu trabalho como redatora (copidesque) do Jornal do Brasil. Ali, conheceria grandes amigos, como a escritora Clarice Lispector (1920-1977), e seu parceiro de toda vida, Affonso. Passaria a ocupar o cargo de cronista, sua estreia como escritora. Das crônicas, migraria para os contos e a poesia, sem abandonar o lado artístico, ao ilustrar suas próprias obras. 

O primeiro livro veio em 1968, Eu sozinha, relançado em 2018 pela Global Editora. De lá para cá, entre obras autorais e traduções, foram mais de 70 livros publicados. E tantos prêmios, entre os quais, os principais da literatura brasileira, como o Jabuti, o prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), pelo conjunto da obra, em 2023. 

O avesso das coisas 
Embora tenha despertado para a literatura quando começou a trabalhar no Jornal do Brasil, foi forjada muito antes, e ao longo de muitos anos. Marina Colasanti nasceu em Asmara, Eritreia, quando a região ainda estava sob o domínio da Itália. Viveu em Trípoli, na Líbia, e na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1948, aos dez anos, chegou ao Brasil, onde fincou raízes. “A gente ia se deslocando, porque as cidades iam ficando perigosas. E nessas andanças, nada se leva”, contou à plateia do projeto Sempre um Papo, no Sesc 24 de Maio, em 2018. Seu refúgio eram os livros.  

“Não tínhamos amigos, não conhecíamos ninguém, não brincávamos na rua, então nossos pais iam à livraria e compravam adaptações dos clássicos”, relatou na mesma ocasião, relembrando também a riqueza da experiência de ler em dupla com o irmão Arduíno Colasanti (1936-2014), que viria a se tornar ator de cinema, por poderem partilhar as impressões sobre cada leitura. A experiência multicultural não apenas a influenciou, mas constituiu sua própria identidade. Mulher de duas nacionalidades, de duas línguas, de três continentes, atribuía ao nomadismo a necessidade de observar atentamente tudo ao seu redor para se apropriar de novos ambientes e se entrosar, o que, como ela dizia, a tornou uma eterna estrangeira, alguém que não pertence totalmente a um lugar específico.   

A vida de Colasanti é repleta do lado avesso das coisas, com o mundo visto sob uma perspectiva única. Ela se reconhecia como escritora brasileira por escrever em língua portuguesa (do Brasil, como fazia questão de frisar), mas suas descrições de paisagens e influências são outras, refletindo sua trajetória de vida. “Eu não cresci lendo Monteiro Lobato (1882-1948), visitando o sítio da vovó, eu não tinha conhecimento de figuras do folclore brasileiro como o Saci Pererê. Em vez disso, eu lia Homero adaptado para a juventude, lia [Rudyard] Kipling (1865-1936), e os mitos gregos”, relembrou a escritora, em 2018. 

“A linguagem simbólica foi a primeira que recebi da literatura. Aquela com a qual melhor me expresso. Apagados esses contos da minha vida, eu dificilmente saberia percorrer o caminho que leva ao nascedouro do maravilhoso. Nem teria, tanto tempo depois, escrito meus próprios contos de fada, para levar outras pessoas pela mão até os sonhos”, escreveu Colasanti em Como se fizesse um cavalo (2012). 

A casa da tia 
A chácara onde sua família foi recebida pela tia-avó, a cantora lírica Gabriela Besanzoni (1888-1962) e seu marido Henrique Lage (1881-1941), quando chegou ao Brasil, também ajudou a compor o imaginário da escritora. “Eu sou, talvez, a última pessoa que mais ama essa casa, eu me sinto um pouco a guardiã das lembranças dela”, dizia sobre o local em que viveu parte da sua infância e que hoje abriga o Parque Lage, na capital fluminense. Um lugar encantador que, além da mansão histórica, é cercado por trilhas e tem ao fundo a vista do Cristo Redentor. 

Em uma entrevista para a Global Editora, em 2014, a escritora recorda o encantamento com a natureza tropical brasileira e como ela impactou sua percepção. “Devo dizer que a enormidade da casa não me surpreendeu. O que me fascinou foi a selva, porque a selva era tropical, diferente das florestas de bosques de castanheiras que eu conhecia. Minha mãe fez para nós  [Marina e seu irmão Arduíno] uns macacões e saíamos de manhã por esse mato, duas crianças soltas na selva”, descreveu.  

Colasanti era uma leitora voraz. Escrevia diários e estava exposta a todo tipo de arte; as artes plásticas sempre estiveram presentes ao longo de sua vida. “O desenho de Marina é pura Marina”, definiu Ziraldo (1932-2024), durante um bate-papo com a amiga dos tempos do jornalismo, em seu programa ABC do Ziraldo, para a TV Brasil, em 2016. O escritor e desenhista disse, inclusive, que Colasanti era multimídia antes mesmo de o termo existir, ao que ela corrigiu: “sou pré-multimídia”, deixando-se levar por sua gargalhada generosa e inconfundível. 

(foto: Natalia Fregoso/FIL Guadalajara)

Ressignificar o tradicional 
Colasanti buscava novas paisagens e olhares para renovar seu pensamento e evitar a estagnação, o que também se manifestava na sua forma de transitar pelos gêneros literários. Ela usava, com frequência, a analogia com os trilhos para explicar seu processo de trabalho por projeto, uma influência também do jornalismo. Os trilhos eram os gêneros: poesia, prosa, autoficção, ilustração, tradução. Quando começava um projeto, seguia nele até o fim. Cada livro tinha uma temática unificada.  

“Marina é relevante para os estudos literários por vários motivos técnicos, teóricos e, também, estéticos. É uma das poucas escritoras contemporâneas, e mesmo no sentido mais amplo, que se revela, mantendo a alta qualidade textual em todos os gêneros: poesia, romance, memórias, conto e, neste último, desdobrando-se em contos para adultos e contos para jovens e crianças”, considera Ana Beatriz Demarchi Barel, professora de Literaturas de Língua Portuguesa e Teoria Literária da Universidade Estadual de Goiás (UEG). 

O universo de Colasanti é o inesperado, a surpresa e o encantamento. “Marina subverte clichês e lugares comuns”, destaca a pesquisadora Vera Maria Tietzmann em seu livro Nos avessos do texto: um passeio pela obra de Marina Colasanti (2021), em que explora a forma como a autora ressignifica as versões tradicionais do texto, subvertendo estrutura e significados tradicionais. 

A escritora e cronista Mariana Ianelli, em depoimento ao programa Conversa com escritor [uma live com o professor Marcelo Batalha, em 2021], que teve Colasanti como convidada, descreveu a sua obra como múltipla, comparando-a com um arquipélago formado por fábulas, crônicas, ficção, memórias e poesia. Para Ianelli, o que circunda essas ilhas é o maravilhoso da vida, presente nos textos da escritora. “Em sua obra, há uma sabedoria da alegria que irradia da vida para a literatura”, ressaltou.  

Na visão da professora e pesquisadora na área de letras e literatura, Eliana Yunes, co-criadora da Cátedra Unesco de Leitura no Brasil e da Rede de Estudos Avançados em Leitura (Reler), Marina Colasanti é uma das mais originais e importantes escritoras brasileiras. Para Yunes, a marca registrada e particularidade do gênero de Colasanti é o poético, “que sem tirar os pés do chão, eleva”, disse em depoimento gravado para o mesmo programa.  

Literatura atemporal 
Uma característica da obra de Colasanti é a atemporalidade. “A sua obra não existe no mundo para distrair, passar o tempo, e, sim, para pensar o tempo, o correr do rio da vida”, analisa a professora Barel. “Marina veio para a literatura de forma duradoura, para sempre”, completa. Colasanti também dizia escrever textos verticais, com infinitas possibilidades de leitura e adaptáveis a qualquer idade. Não acreditava que havia temas que não pudessem ser abordados para as infâncias. Tratava o leitor infanto-juvenil com a mesma reverência que o leitor adulto, dotado de inteligência.  

A poesia, para ela, era o gênero máximo da literatura, o que lhe exigia mais, sobretudo a poesia infantojuvenil. Eram os trilhos que ela percorria por mais tempo quando embarcava em um projeto. Seus poemas abordam a essência do ser humano e os sentimentos mais profundos, como amor, ciúme, inveja, medo e morte para qualquer idade. “Marina é um oásis para a criança e o adolescente, pois em sua obra, eles são tratados com respeito e sensibilidade”, observa Barel.  

A autora também é muito conhecida pelos seus contos fantásticos (ou maravilhosos), os chamados contos de fada. Mas não espere encontrar em sua obra finais felizes ou lições de moral. Colasanti oferece finais abertos que convidam à interpretação e à reflexão. “É isso que pode proporcionar às crianças uma percepção clara dos problemas e ajudá-las a elaborar inconscientemente suas próprias soluções”, refletiu a autora, no programa Conversa com escritor, em 2021. 

Marina Colasanti (1937-2025), trecho da introdução do livro Mais classificados e nem tanto (2019) 

Aqui não se encontra nada do que se busca. Muito pelo contrário. Oferecemos somente o inesperado, o lado do avesso das coisas, o mundo visto de ponta-cabeça, a surpresa, o encantamento. Aqui os trilhos não são paralelos, os olhos enxergam sempre adiante dos óculos, e a linha reta dá voltas ao imaginário. 

Além do texto, o viver 
“Marina é a escritora mais completa da literatura brasileira”, disse seu companheiro, o escritor e poeta Affonso Romano de Sant´Anna, em entrevista à Global Editora, em comemoração aos 80 anos da artista. “Affonso me deu uma confiança intelectual absoluta. Um respeito intelectual total. E uma rede de segurança para fazer os voos que quisesse no trapézio. Os saltos mortais triplos que quisesse dar. Ele sempre me garantiu intelectualmente”, disse Colasanti, na mesma ocasião. 

O casal, que nasceu com seis meses de diferença, em 1937, e morreu em um intervalo de dois meses, em 2025, tinha uma ligação e uma parceria para além da família que constituíram. Era como se as obras de cada um fossem também frutos dessa união. Colasanti sempre fazia questão de falar sobre a importância do marido na sua vida. Eram os primeiros leitores da obra de cada um. “Quem abre um livro de Marina encontra Affonso. Quem lê Affonso sente Marina por perto. Não há como separá-los. Nunca houve”, escreveu Fabrício Correia, escritor, jornalista e produtor cultural em um texto para a Academia Caçapavense de Letras e União Brasileira de Escritores. 

Sua obra e sua vida são escritas sobre uma linha que dá muitas voltas ao imaginário e de várias formas diferentes. “Se eu tivesse um epitáfio seria assim: ʻAqui jaz Marina Colasanti, a mulher que viveu por um fioʼ”, contou para a plateia da Biblioteca Pública do Paraná, na celebração aos seus 80 anos – o “se” era porque a escritora desejou ser cremada. “Eu sempre tenho um fio na mão, eu costuro a minha própria roupa, faço crochê, fiz um tapete para ver como era fazer um tapete, fiz um sapato, tipo sandália nipônica de palha, para ver como era fazer isso. Gosto de poder fazer as coisas”, acrescentou na ocasião. 

E esse gostar de fazer coisas é evidente no curta-metragem Marina Colasanti: entre a sístole e a diástole (2024), que a filha, a multiartista Alessandra Colasanti, fez em homenagem à mãe. Nele encontram-se as várias versões de Marina Colasanti: avó, dona de casa, aquela que cozinha, faz pão, ilustra e cuida das pessoas. Uma mulher que se coloca em sua vida e sua obra como essa artesã dos fazeres e das possibilidades. Em um trecho do documentário, Marina Colasanti diz: “Eu não acredito em realidade. Eu não trabalho com esse item. Eu trabalho com aquilo que eu chamo de realidade expandida. A vida fica melhor assim, se você entrar em outras dimensões. Sair da sua micropele”. 

para ver no sesc / bio 
Literatura na TV 
Em episódio da série Super Libris, do SescTV, Marina Colasanti reflete sobre a carreira e a presença da mulher na cena literária em diferentes épocas 

A escritora Marina Colasanti foi a entrevistada no episódio “Mulheres, essas bárbaras que ameaçam o império”, da série Super Libris (2016), uma realização do SescTV, com direção de José Roberto Torero. Na ocasião, falou sobre a literatura feminina, em um papo descontraído. Entre os temas tratados, destaca que, antigamente, falava-se em “literatura feminina” como algo menor, mas essa visão mudou, e defendeu que as mulheres já estavam presentes em todos os gêneros literários com muito sucesso. No programa, também abordou o rompimento das mulheres com uma literatura de imitação da tradição e de contenção. Para ela, Clarice Lispector (1920-1977) rompe com isso. “A literatura de Clarice é uma literatura inegavelmente de mulher”, analisa.  

Na entrevista, também reflete sobre o momento da literatura brasileira, o papel das mulheres como leitoras, o impacto disso na produção literária e o sonho de não precisarmos ter um gênero dominante.  

A escritora Marina Colasanti foi a entrevistada do episódio “Mulheres, essas bárbaras que ameaçam o império”, da série Super Libris, do SescTV. 

SescTV  
Série Super Libris
Episódio “Mulheres, essas bárbaras que ameaçam o império” 
Direção de José Roberto Torero 
Dia 14/5, às 19h30. Assista também sob demanda em sesctv.org.br/superlibris 

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