Miguel de Barros, entre a terra e o mar 

29/04/2025

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POR MARIA JÚLIA LLEDÓ 
FOTOS DE NILTON FUKUDA 

Tão logo a Guiné-Bissau conquistou sua independência, em 1973, a criação do novo Estado apontou para a educação como diretriz. Convidado pelo então ministro da educação Mário Cabral para formular um projeto de alfabetização de adultos, o educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) exerceu um papel fundamental no país para que as culturas tradicionais e a língua materna dialogassem com a pedagogia como prática para a liberdade. O legado de Paulo Freire permanece vivo na Guiné-Bissau, assim como a troca de saberes entre os países, de acordo com o sociólogo guineense Miguel de Barros, diretor-executivo da organização não governamental Tiniguena, que protege a biodiversidade local e auxilia os agricultores na adoção de práticas sustentáveis.  

Essa relação de intercâmbio entre as nações, aliás, evidencia-se neste mês, na primeira edição da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau (MoAC Biss), realizada na cidade de Bissau e da qual Barros é um dos organizadores. Na programação, participam cerca de 12 artistas brasileiros, como o escritor e roteirista Tom Farias, a dramaturga e roteirista Dione Carlos, a cantora Bia Ferreira e a artista plástica Sônia Gomes. “A Bienal também é uma proposta de transformação a partir desse legado de emancipação, de construção da própria liberdade. Por isso o lema ‘Identidades em liberdade’, que parte da necessidade de um país de grande potencial cultural”, explica Barros.  

Pouco maior do que o estado do Alagoas e com a população equivalente à do Sergipe, Guiné-Bissau agiganta-se pela cultura e por ser o segundo país mais rico em termos de concentração da biodiversidade na África Ocidental. Essa característica também a coloca em risco diante da crise climática, principalmente com o avanço do mar sobre o território, onde as comunidades tradicionais, guardiãs do patrimônio natural, também se encontram ameaçadas. Entre idas e vindas ao Brasil, o sociólogo participou, em março, da mesa de debate Ecos da Floresta: A Vida em Tempos de Emergência Climática, no Sesc Jundiaí, e de atividades no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.  

Nesta Entrevista, Miguel de Barros enfatiza a necessidade de repensarmos o atual modelo de desenvolvimento mundial diante da crise climática, fala sobre o legado de Paulo Freire, e destaca o papel da educação e da cultura para uma transformação social. 

As consequências da emergência climática que atravessamos atingem de maneira desigual o planeta. Como o continente africano, um dos mais impactados, responde a esse contexto? 
Devemos colocar essa questão de duas formas diferentes: uns provocam a crise climática, outros sofrem com a crise climática. Se formos olhar a responsabilidade, por exemplo, das emissões de dióxido de carbono, a África não é uma entidade emissora. Toda a emissão do continente africano não chega a 5% daquilo que é a emissão global. Então, não podemos pensar, a priori, que há uma responsabilidade partilhada. É verdade, também, que acabamos por constatar que não se trata de “injustiça climática”, mas uma injustiça do ponto de vista de como o modelo de produção e de consumo energético provoca essas alterações, sobretudo em contextos que não produzem essas energias, nem se beneficiam dela. E aí, o Norte global tem uma grande responsabilidade, assim como os países emergentes, a exemplo da China. Se contabilizarmos as emissões da China e dos Estados Unidos, teremos mais da metade daquilo que é a emissão global. Então, essa questão não deve ser colocada do ponto de vista da crise climática, e sim do ponto de vista da crise do modelo econômico neoliberal colonial, que olha para os espaços naturais na condição de reservas de matéria-prima que devem ser exploradas. Ou seja, se nós quisermos pensar sobre o nosso comportamento, que tem provocado essas desigualdades sociais e climáticas, temos, efetivamente, que mudar o modelo daquilo que chamamos hoje de civilização. 

“Se nós quisermos pensar sobre o nosso comportamento, que tem provocado essas desigualdades sociais e climáticas, temos, efetivamente, que mudar o modelo daquilo que chamamos hoje de civilização.”

De que forma as tecnologias ancestrais dos povos africanos apontam para alternativas em modelos sociais e econômicos?  
Devemos voltar à base, recuperar aquilo que os povos tradicionais têm nos ensinado: os seres humanos são parte integrante da natureza. Devemos respeitar o calendário natural de produção alimentar e, ao mesmo tempo, salvaguardar a regeneração natural dos espaços produtivos, além de permitir a possibilidade da partilha de bens e serviços de forma equitativa. Isso para que, efetivamente, sejamos capazes de produzir um novo contrato social, no qual nem a competição, nem o extrativismo sejam os padrões, mas sim os modelos de solidariedade e de justiça social. Ao mesmo tempo, olhar para modos de vida mais adequados às práticas culturais, produtivas, sociais e às práticas de políticas que permitam que esses povos estejam no centro da própria governança do patrimônio natural, cultural, econômico e civilizacional. Se nós conseguirmos dar esse salto, serão maiores as possibilidades de ter um sistema de produção de alimentos mais justo, mais limpo, mais saudável e, ao mesmo tempo, de termos a garantia de formas de partilha que permitam maior distribuição desses bens. 

“O mar está a comer a terra”, você disse em entrevistas sobre as consequências da crise climática, o que nos fez lembrar da frase do líder quilombola e filósofo Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo (1959-2023): “a terra dá, a terra quer”. Quais as consequências do avanço do mar sobre a Guiné-Bissau? 
Há vários processos que colocam em xeque a continuidade da Terra tal qual a conhecemos. Fatores combinados que são muito perigosos devido à ação humana. Por exemplo, nós falamos da questão do desflorestamento – as florestas são infraestruturas naturais que permitem estancar a revolta do mar. São entidades que geram muito impacto, não só por sequestrar carbono, mas por permitir o encontro entre o mar e a terra: uma espécie de mediação. É como prolongar a vida da terra e esse prolongar também salvaguarda o acesso a modos e recursos de vida. São nas zonas de floresta de mangue, por exemplo, onde podemos encontrar todos os microrganismos essenciais para a manutenção das espécies marinhas. Não é por acaso que há uma concentração humana nas zonas costeiras em nível global, porque os recursos mais interessantes estão nessas zonas. Mas há três atividades que estão colocando-as em risco: a indústria militar, a pesca industrial, que é hoje uma das maiores ameaças do mundo, e a quantidade de resíduos de plásticos nos oceanos, a mais perigosa dos últimos tempos. Meu país é o segundo em vulnerabilidade, depois de Bangladesh, e pode deixar de existir se continuarmos com esse comportamento. Então, quando digo “o mar está a comer a terra”, esse é um grito de apelo, de que é importante uma mudança a partir do paradigma do consumo, de que não é com contrapartidas de apoio de mitigação ao sul global que resolveremos o problema climático, mas mudando o padrão de comportamento individual, coletivo e do próprio Estado. 

A organização não governamental Tiniguena atua diretamente sobre esses impactos, visando a proteção da biodiversidade local e auxiliando agricultores. Como nasceu a ONG e qual sua relação com o educador Paulo Freire? 
Tiniguena significa “esta terra é nossa”, numa língua da etnia Cassanga, do norte da Guiné-Bissau, cujo povo está em vias de extinção. O nome surgiu do trabalho da fundadora da Tiniguena, a assistente social Augusta Henriques, que foi a principal auxiliar de Paulo Freire na Guiné-Bissau, no programa de alfabetização em língua materna, durante a construção de uma nação recém-independente. Uma alfabetização em função das necessidades dos próprios camponeses, porque eles detêm um saber, embora não sejam letrados. Fundada em 1991, a Tiniguena surge exatamente quando a Guiné-Bissau decidiu adotar o programa de ajustamento estrutural, promovido pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). O nome Tiniguena é uma reivindicação de que nós temos que lutar pela nossa terra e ao mesmo tempo trazer a nossa terra enquanto elemento de autoestima e de orgulho. Augusta Henriques traz esse ensinamento, essa memória dos programas de alfabetização de língua materna, e cria uma organização voltada para a terra, para os agricultores camponeses, para proteção, valorização da biodiversidade e dos saberes culturais. 

Qual foi a importância da pedagogia de Paulo Freire na Guiné-Bissau durante a década de 1970? 
Notamos que a maior parte da sociedade não tem noção de quem foi Paulo Freire, tanto no Brasil quanto na África. Ele foi um convidado do Estado da Guiné-Bissau para aplicar a sua pedagogia, no sentido de ajudar o país a criar aquela que foi uma das narrativas mais fortes no processo de independência da África: o homem novo. O homem novo, uma entidade que conseguiu superar as amarras do colonialismo e que assume a missão de construção da nação e, ao mesmo tempo, da sua identidade, cultura, contexto econômico, responsabilidade política. Então, Paulo Freire chega ao território guineense convidado por Mário Cabral, então ministro da educação. Freire foi extremamente hábil pois não chegou e aplicou a pedagogia do oprimido. Ele chega à Guiné-Bissau e lê os discursos de Amílcar Cabral [1924-1973] – fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que dirigiu a luta de libertação na Guiné-Bissau, apoiou os processos de luta de libertação em Angola, Moçambique, São Tomé e foi a principal figura das independências das colônias sob domínio de Portugal. Quando Paulo Freire lê os escritos de Cabral, conclui: na Guiné-Bissau, temos que aplicar outra pedagogia, a pedagogia da libertação. Sua abordagem permitiu ao país pensar num plano nacional de educação e isso repercutiu para outros países onde ele também esteve, como Angola e Moçambique. 

Sabemos que as comunidades e povos tradicionais, guardiões de biomas que fazem parte de áreas protegidas, sofrem contínuas ameaças em diferentes partes do planeta. Como é esse cenário na Guiné-Bissau?  
As áreas protegidas existem porque existem essas comunidades tradicionais. Temos mais de 26% do território nacional de áreas protegidas e nenhuma está militarizada. Todas essas áreas têm comunidades, porque esse processo de construção do Estado e de formalização não antecede as comunidades. As comunidades tradicionais africanas antecederam a existência do Estado, assim como os povos indígenas no Brasil. O Sistema Nacional das Áreas Protegidas na Guiné-Bissau não só reconhece esses povos, como também os integra no processo da governança sustentável desses patrimônios naturais. A Tiniguena vem acompanhando esse processo e contribui para a existência de uma figura que não existia no plano jurídico: áreas protegidas em regime comunitário. Nelas, todo o manejo se faz em cogestão entre instituições públicas, sociedade civil e instituições das comunidades locais. E isso acontece porque essas zonas de preservação são os sítios sagrados desses povos. Ou seja, já havia aí um conhecimento do papel desse espaço e dos processos que permitem a regeneração desses territórios, mas também uma certa reprodução de recursos que permita a própria manutenção das comunidades. Por isso, a Tiniguena vem trabalhando para que grupos, que estavam marginalizados, entrem nessa dinâmica da governança participativa. 

Esse modelo permite uma maior proteção contra desmatamentos e outras ações humanas criminosas em áreas preservadas, por exemplo? 
Não há nenhum desmatamento que aconteça sem conhecimento do Estado. O que nós acabamos por encontrar são duas tendências completamente diferentes: o Estado que pensa a partir de uma perspectiva de crescimento, e as comunidades que pensam a partir de uma perspectiva de longevidade. São dois modelos que, no meu ponto de vista, não podem andar juntos. Tendo em conta aquilo que é a minha experiência, podemos criar formas de vida com alto nível de produtividade sem levar ao esgotamento dos recursos. Mas, para que isso aconteça, esses recursos têm que ser vistos como patrimônios. Patrimônios coletivos que devem existir para as necessidades das gerações presentes e futuras. E quando há um consenso, podemos partir para formas de transformação desses patrimônios que salvaguardam o equilíbrio ecológico, econômico, cultural e a proteção social. Creio que temos falhado na nossa agenda de transformação, tanto países africanos quanto o Brasil, na capacidade de retribuir aqueles que salvaguardam o nosso patrimônio com serviços de qualidade e de segurança. Com mobilidade social ascendente, em termos de acesso a lugares de decisão, e o reconhecimento de que eles têm direito à saúde, à habitação, à educação, ao transporte e, também, a construir seus sonhos, como qualquer outro povo. Quando conseguirmos concretizar esse pensamento em formas práticas de vida, as políticas públicas vão mudar. Porque as políticas públicas serão feitas com essas comunidades e não para essas comunidades.  

Quando digo “o mar está a comer a terra”, esse é um grito de apelo, de que é importante uma mudança a partir do paradigma do consumo, de que não é com contrapartidas de apoio de mitigação ao sul global que resolveremos o problema climático, mas mudando o padrão de comportamento individual,
coletivo e do próprio Estado. 

Muitas projeções repercutem na mídia quanto aos desafios da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP 30, a ser realizada no Brasil em novembro, em Belém (PA). Quais as suas expectativas para essa COP? O que podemos esperar da carta de intenção com as diretrizes para enfrentamento da crise climática?  
Eu costumo dizer que não podemos pensar que a COP se resume à carta. A carta é, sobretudo, a possibilidade de termos capacidade, depois, de olhar como é que nós fizemos uma trajetória de partida, chegada e para onde queremos ir. Eu vejo uma oportunidade na ausência dos Estados Unidos, porque, com sua presença os nossos dirigentes não têm conseguido tomar decisões mais assertivas, deixando que os Estados Unidos assumam a liderança do ponto de vista da contribuição financeira e, também, daquilo que são os níveis de emissão de gases. Quando podemos isolar a Rússia, os Estados Unidos e a China, teremos mais possibilidades de construir uma governança climática alternativa. Não só pela possibilidade de nossas vozes serem ouvidas, mas pela possibilidade de ver como podem construir um modelo econômico alternativo que leve em consideração soluções baseadas na natureza e na cultura local. O fato de o Brasil acolher a COP neste ano é, também, uma oportunidade para o sul global mostrar sua visão sobre as próximas décadas quanto à regulação dos modos de vida. Ou seja, uma oportunidade para as regiões da Pan-Amazônia, formada pelos países em torno da Amazônia, selarem um pacto em relação ao engajamento com a proteção desse território e com a melhoria das condições de vida de suas comunidades.   

Neste mês, acontece a Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau. Quais linguagens compõem a curadoria? E como será a participação do Brasil? 
Definimos cinco áreas curatoriais: políticas públicas, artes plásticas e visuais, literatura – com muita aposta na literatura infantojuvenil –, artes performativas e música. Queremos trazer a produção artística guineense para a contemporaneidade, mas dialogando com outras culturas, povos e sociedades. Por isso, deverão participar cerca de 50 artistas internacionais. A princípio, já temos registrado 15 países. Todos os países da expressão oficial portuguesa, mas também países da Europa: França, Alemanha e Espanha. Teremos países africanos, como Senegal, Cabo Verde, Mali e Costa do Marfim e dois países que são extremamente importantes, devido aos percursos de mobilidade dos artistas guineenses: Portugal e Brasil. No fim, queremos avançar na criação do Centro Cultural de Bissau, onde haverá espaço para residências artísticas, exposição permanente, auditórios ao ar livre etc. 

Além desse centro cultural, qual legado a Bienal pretende deixar? 
Queremos avançar na construção de espaços museológicos, com a valorização da cultura tradicional guineense, como o tear e o artesanato. Queremos elevar a língua guineense ao estatuto de Patrimônio Cultural Nacional e fazer o Museu da Língua Guineense. Então, são propostas que nos permitem ver que, de alguma forma, ao mesmo tempo em que trabalhamos para uma maior mobilidade da Guiné-Bissau e de seus artistas, transformamos Guiné-Bissau em um centro de produção cultural contemporânea, para que artistas globais procurem esse espaço para produzir suas obras, trocarem e mostrarem ao mundo novas sínteses culturais. Acreditamos que essa primeira Bienal seja um ponto de partida que vai permitir ao Estado da Guiné-Bissau redefinir sua visão sobre políticas públicas educativas. Porque o país não tem orçamento para a cultura, nem ações que promovam a cultura do ponto de vista de políticas públicas. Todo esse debate vai permitir envolver os guineenses, não só os que estão no país, mas a sua diáspora, o que é muito importante na veiculação da sua cultura e da sua tradição para um novo compromisso em torno da economia criativa. 

Assista a trechos dessa Entrevista com o sociólogo guineense Miguel de Barros, realizada no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, no dia 19 de março de 2025. 

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