“Quarteto Ritual Nº 6” (acrílico sobre tela), de Abdias Nascimento, obra que integra a exposição Abdias Nascimento – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, em cartaz no Sesc Franca até 15 de junho.
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POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Em diversos livros de história do Brasil, o capítulo dedicado às narrativas das pessoas negras que chegaram ao continente americano centrava-se no período do século 16 ao 19, quando homens, mulheres e crianças oriundos principalmente, da África Ocidental foram trazidos à força, escravizados, impedidos de manifestar suas línguas, suas crenças, seus pensamentos e cosmovisões. O que muitas obras não contaram ou o fizeram de modo tênue é que, coletivamente nesse processo, esses povos forjaram e continuam forjando a identidade da nação – resistiram e preservaram suas culturas por meio da oralidade, em cantos, narrativas e rezas, ou em gestos, comidas, vocábulos e danças.
Desde então, líderes abolicionistas como Zumbi dos Palmares (1655-1695) e o advogado Luiz Gama (1830-1882), até pensadores contemporâneos, como o dramaturgo e artista visual Abdias Nascimento (1914-2011), primeiro político a propor leis de ações afirmativas em defesa da população negra, e a escritora e filósofa Sueli Carneiro criaram ferramentas de resgate e fortalecimento de suas identidades e de combate ao racismo. Fruto da luta do movimento negro, as ações afirmativas ampliaram a produção e a divulgação intelectual dessa população, promovendo, com isso, a valorização de tecnologias, saberes, ciências, espiritualidade e linguagens artísticas. “Não existe uma história do Brasil sem o povo negro, mas ainda nos falta assumir o protagonismo e contar os fatos com base em nossas lutas e vitórias”, constata o antropólogo e babalorixá Rodney William.
Segundo o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Muniz Sodré, fala-se da cultura e da espiritualidade como heranças que predominam no presente. “A cultura popular é a mais evidente, porque é mal conhecida a atuação negra no campo das artes durante o Império (igrejas de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco comprovam), nas letras (Machado de Assis e Lima Barreto, principalmente) e na música, tanto erudita (o barroco mineiro) quanto popular. Quanto à espiritualidade, a força litúrgica dos terreiros impregna a consciência e a fé de largos substratos da população”, descreve. Para Sodré, celebrar esses legados vai além de reinterpretar o passado. “Também é enriquecer o presente com a energia do renascimento. A celebração é uma das faces do eterno retorno, isto é, da vida que sempre retorna. Celebrada, a negritude institui uma história paralela do Brasil”, ressalta.
RESSIGNIFICAR A NEGRITUDE
Originalmente, o termo negritude foi adotado e utilizado por países do ocidente a fim de diferenciar, hierarquizar e subjugar aqueles e aquelas cujos traços, culturas e ideias tivessem origem no continente africano, como explica a artista visual, educadora e ex-deputada estadual Erica Malunguinho. No entanto, o mesmo termo foi subvertido pela população negra e ganhou outro significado. “Uma vez que a gente reconfigura a negritude como um lugar de afirmação, isso se torna um poder para nós. Então, torna-se uma questão de exaltação da nossa afirmação, da nossa autoestima, da nossa construção enquanto sujeitas e sujeitos negros, depois de processos violentos e excludentes. Negritude no sentido de positividade, de afirmação, de resistência. Tem uma frase que eu gosto muito da Victoria Santa Cruz [artista e ativista afro-peruana (1922-2014)]: ‘agora que gritaram negra, pois negra soy’”.
Na essência do que vem a ser a celebração da negritude, Malunguinho acredita estar indissociável a ancestralidade. “Um elemento muito forte para mim, de celebração, é sentir a presença africana todos os dias. E aí, eu estou falando de sentir essa presença dentro da minha história, da espiritualidade, dos meus princípios filosóficos, dos meus princípios estéticos, plásticos e, obviamente, dos meus princípios em torno da sociabilidade”, observa. Da mesma forma, a musicalidade se encontra nas raízes afro-diaspóricas. “É inegável ter o prazer e a honra de apreciar construções que são fundantes da cultura brasileira, que fazem a cultura brasileira ser o que ela é, como o maracatu, o jongo, o maculelê, os caboclinhos, o samba, a capoeira. Todo esse repertório musical e corporal são elementos muito fortes.”
Outra expressão que atravessa os séculos e brinda a contemporaneidade, segundo Malunguinho, é a literatura. “Estou falando do que está escrito, do que foi escrito e de uma literatura mais viajante, do vento, que é a oralidade. A despeito de não poder ter acesso aos recursos da escrita nesse processo da violência colonial, a gente conseguiu salvaguardar memórias pela fala, pelo próprio gesto, pela espiritualidade, pela fé”, orgulha-se.
COMPASSO CRIATIVO
Do jongo ao rap, da feijoada ao acarajé, da literatura ao cinema. Toda expressão afro-brasileira nas artes e em outras expressões culturais responde por nomes que, ao longo da história do país, resistiram para deixar suas marcas. Personalidades como Maria Firmina dos Reis (1822-1917), a primeira romancista do Brasil, o diretor Zózimo Bulbul (1937-2013), um dos primeiros a cunhar a importância da construção de um cinema negro no Brasil, a cantora lírica Maria d’Apparecida (1926-2017), que foi recusada pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro e fez carreira na Ópera de Paris. Esses e tantos artistas lutaram contra tentativas de apagamento e se tornaram referências por gerações.
“Todas as contribuições negras em todas as áreas são de extrema importância e fundamentais. A arte e a cultura, trazendo para o foco a grandiosidade da música negra e a culinária singular são alicerces. Trago aqui, da música, Clementina de Jesus (1901-1987), Moacir Santos (1926-2006), Johnny Alf (1929-2010) – o criador da bossa nova –, Elza Soares (1930-2022), Jorge Ben Jor, Mano Brown e Racionais MC’s e tantos incríveis, além dos gêneros musicais: o samba, o funk, o jazz, o rock, o soul, o rap, o trap. Na atuação, trago os alicerces: Grande Otelo (1915-1993), Ruth de Souza (1921-2019), Léa Garcia (1933-2023), Antônio Pitanga e Tony Tornado. A moda negra, com o seu estilo urbano e muito personalizado, tem uma estética única. E na literatura feminina e brasileira, reverencio o trabalho de Carolina de Jesus (1914-1977), Lélia Gonzalez (1935-1994), Conceição Evaristo, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro, mulheres que transformam o mundo com a sua escrita, genialidade, humanidade e vivência”, elenca a cantora e compositora Paula Lima.
Desde a infância, quando já cantarolava aos três anos, até os 21, época em que percebeu que não seguiria a carreira de advogada, Paula Lima carrega consigo essas referências, que celebra dentro e fora dos palcos. “Sou uma mulher negra brasileira. De fé. Consciente sobre o mundo e do meu lugar. Gostaria, se houvesse esse caminho, de voltar em um mundo mais justo, tolerante, mais respeitoso, com igualdade e oportunidades para todos. Um mundo de uma real meritocracia. Amo o meu ofício. Gostaria também de ‘continuar’ uma cantante, levando a minha arte amorosa para uma infinidade de lugares, compartilhando bons sentimentos e as nossas boas, belas e negras verdades”, almeja.
(Foto: Diego Mello)
AGENTES DE MUDANÇA
Jovens comunicadores negros e negras vêm ampliando uma perspectiva que até poucas décadas atrás encontrava-se restrita. Em diferentes plataformas, é possível ter acesso a cada vez mais pautas que dizem respeito a 56,7% da população brasileira autodeclarada negra, seja nas seções de cultura, de economia, de ciência ou de política. Para Midiã Noelle, jornalista e mestra em cultura e sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), a celebração da negritude passa pelo reconhecimento e valorização dessas histórias. “É essencial para transformar as formas como nos comunicamos e convivemos, pois a presença negra é parte fundamental da construção do Brasil – em sua cultura, economia, ciência, espiritualidade e arte”, enfatiza.
Autora do recém-lançado Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares (Planeta, 2025), Noelle acredita que refletir sobre as contribuições da população negra na sociedade brasileira é celebrar sua existência. Isso exige, complementa Noelle, um exercício crítico de revisão das narrativas históricas e midiáticas que, por tanto tempo, negaram o protagonismo negro. “A imprensa negra, por exemplo, surge como um espaço estratégico de resistência, reivindicando representatividade e dignidade em meio a um cenário de exclusão. Por meio dela, vozes negras encontraram formas de denunciar injustiças e afirmar novas possibilidades de existir e comunicar. Essa tradição demonstra que a comunicação sempre foi uma ferramenta poderosa para disputar sentidos, visibilizar vivências e criar espaços de emancipação”, constata.
Uma das responsáveis pela redação e implementação do Plano Nacional de Comunicação pela Igualdade Racial na Administração Pública Federal, publicação da Secretaria de Comunicação da Presidência da República e do Ministério da Igualdade Racial, Midiã Noelle acredita que a celebração da negritude não é apenas um ato simbólico. “É uma afirmação política e cultural da humanidade negra, que desafia as narrativas coloniais e racistas que tentaram apagar suas contribuições. Ao reconhecer a riqueza das contribuições negras e combater os estigmas históricos, tornamo-nos agentes de mudança”, defende.
LEGADO IMENSURÁVEL
Doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o antropólogo e babalorixá Rodney William faz do seu canal no YouTube e das redes sociais um meio para difundir conhecimento e reconhecimento da cultura afro-brasileira. Colunista da revista Carta Capital e autor de livros como A benção aos mais velhos: poder e senioridade nos terreiros de candomblé (Arole Cultural, 2017) e Apropriação cultural (Pólen Livros, 2019), William acredita que deve ser aproveitada toda oportunidade que permite mudar uma história oficial que promoveu o apagamento das contribuições negras na construção do Brasil, na cultura e na identidade de seu povo.
“Um movimento contracolonial vem crescendo e impulsionando a notoriedade de intelectuais negros do passado e do presente. O resgate de escritoras como Maria Firmina dos Reis (1822-1917) ou o reconhecimento de Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018) entre os acadêmicos é um sinal de que as produções contemporâneas, ao referenciar esses autores, colaboram significativamente para uma reforma em diversas áreas. Na educação, por exemplo, textos de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e do Racionais, entre os exigidos nos vestibulares ou temas de redação que refletem a condição da população negra, demonstram um avanço na visibilidade de um legado imensurável, que não se resume a samba ou religiosidade”, observa.
(Foto: Acervo Rodney William).
De acordo com o antropólogo, há, contudo, inúmeras personalidades negras que precisam ser valorizadas e, também, aquelas que foram embranquecidas ao longo dos séculos. “Recuperar a negritude de Carlos Gomes (1836-1896) e Machado de Assis (1839-1908) é tão fundamental quanto restabelecer a história de Teodoro Sampaio [engenheiro e geógrafo (1855-1937)] e Juliano Moreira [médico e psiquiatra (1873-1933)]. Sem contar os levantes que sequer são citados nos livros, e as organizações que desde sempre aspiraram cidadania e outras formas de coletividade, como os quilombos e os terreiros”, destacou William, que em 2019 foi escolhido por premiação da Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das pessoas negras mais influentes do mundo.
Para o antropólogo e babalorixá, “cada um de nós celebra a sobrevivência de uma cultura e memória inscrita na pele”. Sendo assim, “se sambar é rezar com o corpo, a cada gingado de um capoeira, a cada ijexá nos candomblés e afoxés, a cada repicar de um tamborim ou atabaque revivemos a força ancestral que nos movimenta e nos motiva a enfrentar e afrontar a morte que nos procura todos os dias”, descreve. “Porque se a vida é boa, sambamos para festejar, e se a vida é ruim, sambamos para esquecer. Nosso maior mistério é essa felicidade que insiste em nos acompanhar apesar de tudo. Que nos invejem os que só sabem ser tristes, os que fizeram do dinheiro e da acumulação seu único meio de existir no mundo. Nós fizemos da circularidade nosso ethos, e cantamos os sonhos dos que se foram e dos que ainda virão”, arremata.
para ver no sesc / negritude
Culturas negras
Protagonismo negro em pluralidade de linguagens, pensamentos e práticas faz parte das ações permanentes do Sesc São Paulo
Durante todo o ano, o Sesc São Paulo realiza ações permanentes que destaca a negritude, em suas unidades da capital e grande São Paulo, interior e litoral do estado. São ações transversais e atividades diversas que incluem personalidades negras do Brasil e de outros países, atuantes em diferentes áreas do conhecimento. Indivíduos e coletivos que participam de debates, oficinas, cursos, espetáculos teatrais entre outras atividades. Além disso, o Sesc realiza projetos pontuais, com destaque para o Festival Sesc Culturas Negras, que neste ano será realizado de 10 a 15 de junho, abordando tanto aspectos históricos, sociais e culturais, como promovendo a valorização, o conhecimento, a convivência e a preservação de tradições.
“A existência negra é um conceito que transcende o simples ato de viver. Ela reflete uma trajetória histórica de saberes, de tecnologias, de resistência e resiliência moldada por legados ancestrais que, apesar das violências da escravidão e do racismo estrutural, persistem como potências vivas. Esse conceito abraça a continuidade de identidades que se construiu ao longo de séculos, e ao mesmo tempo se reinventa, afirma-se e expande-se a partir de múltiplos territórios – físicos e simbólicos – da experiência negra”, explica Fabiano Maranhão, que integra a equipe da Gerência de Programas Sociais do Sesc São Paulo.
Confira outros destaques da programação:
EAD Sesc Digital
Curso: Dispositivo de Racialidade (2024)
Em seis aulas, a filósofa e escritora Sueli Carneiro aborda os mecanismos do racismo no Brasil, a partir do conceito de “dispositivo” de Michel Foucault (1926-1984), e discute temas como epistemicídio, ativismo negro e educação. Grátis.
Inscreva-se: sescsp.org.br/ead
(Foto: Matheus José Maria)
SescTV
Nós, Negros (Brasil, 2020)
Direção de Ana Paula Mathias
Composta por dez vídeos artísticos, essa série apresenta uma diversidade de narrativas poéticas em que protagonistas negros ocupam o centro de cada história.
Assista: sesctv.org.br
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