Por Estevão Azevedo
Ilustrações José Lucas Queiroz
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Diante da casa em que vivia no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, o cientista social Carlos Gimenez estava intrigado: a van contratada pela empresa tinha copinhos de água gelada, snacks e era luxuosa demais para alguém a caminho de mais um trabalho de campo no interior. A vez nem era sua, era de seu colega João Paulo Paiva, que ficara doente. O tom do chefe ao telefone na convocação de última hora não permitia perguntas, então ele não ficou a par do destino: esperava se inteirar ao ser recebido onde quer que fosse. Nem em seus melhores sonhos, porém, imaginara a pequena cidade histórica toda enfeitada e o quarto com ar-condicionado na melhor pousada de lá. Nos próximos dias, enquanto aguardava a chegada das orientações para o estudo de infraestrutura, foi convidado a assistir palestras sobre poesia negra, literatura de povos originários, autoficção e outros temas com os quais não tinha tanta familiaridade, mas que no fim o agradaram bastante.
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Nesse mesmo dia, num apartamento em Belo Horizonte vizinho à casa da cena acima, a jovem poeta Ana Martins Marques se preparava para sua estreia em residências literárias, que teria lugar numa cidadezinha do interior do Estado, onde imaginava dispor do ócio e do tédio necessários para desencalacrar a escrita dos poemas que iriam compor — ela torcia — seu primeiro livro. O carro que veio buscá-la tinha na lataria o nome burocrático de uma empresa de consultoria. Ela estranhou, mas embarcou. Depois de dias tranquilos quase sem interação e sem nenhuma demanda específica no vilarejo de menos de quinhentos habitantes, os poemas começaram a brotar, e quando um homem de cara emburrada tocou a campainha e disse “Bom dia, já tem material para enviar?”, ela enfiou as folhas num envelope e o entregou, contente por estar cumprindo sua obrigação artística. Nos dias posteriores e até o fim da residência, a poeta entregou ao portador mais dezenas de folhas com as cópias de seus novos poemas.
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Desfeito o mal-entendido, Carlos Gimenez partiu contente para o próximo campo, intuindo que seu trabalho nas comunidades ameaçadas pelas grandes obras de infraestrutura ou qualquer outra forma do progresso tinha algum parentesco torto com a poesia. Ana Martins Marques voltou para casa satisfeita com os poemas de seu primeiro livro, que seria publicado alguns anos depois, em 2009.
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Quando o primeiro relatório chegou ao escritório da capital, foi parar na mesa de Enzo David, um recém-concursado de nível técnico. Os servidores com tempo de carreira tinham atribuições maiores — ou formas eficientes de evitar até as menores — do que determinar e fazer executar os investimentos em infraestrutura numa comunidade tradicional de cerca de quinhentos habitantes.
Como é da natureza das coisas públicas tardar sem consequências, Enzo ficou dias e dias com o relatório diante de si, receoso de pedir apoio logo na primeira tarefa digna de nota que lhe foi confiada e demonstrar alguma inaptidão para o posto. Dava até saudade dos áridos textos jurídicos que decorava no cursinho. O que lia no relatório era muito mais bonito, porém tão difícil quanto de interpretar:
E agora? Insistiu no texto que era diferente até na forma como ocupava as páginas:
E ainda:
Enzo matutou, matutou e matutou: que praças, pontilhões, conjuntos habitacionais e outras construções dariam conta de um diagnóstico como aquele?
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Por incrível que pareça, durante o tempo necessário para executar as obras solicitadas pela área responsável, o poder público cumpriu sua função sem liminares, sobrepreços, pedidos de esclarecimento ou desvios de verba, não sabemos se por falta de interesse ou de atenção ou se pelo receio de mexer no que é dos outros.
Agora, os poucos visitantes que enfrentam os quarenta e três quilômetros de estradas de terra que cortam os vales ou se equilibram nas encostas das serras, aqueles que superam os frequentes atoleiros ou saltam sobre os grossos troncos das árvores que por velhice ou relâmpago às vezes se deitam no caminho dos viajantes, esses raros visitantes, ao alcançar o cume a partir do qual enfim se avista Lapinha da Serra, deparam primeiro com uma infinidade de esculturas em madeira, barro, pedra, bronze, mármore e até em entulho, representando entidades conhecidas e desconhecidas de diversas matrizes, personagens folclóricos ou da literatura e outras estátuas de devoção mais corriqueira, como a de um gigantesco chaveiro de moto, a de um chup chup de limão, a de uma mesa ou de um pente de tirar piolhos, algumas tão monumentais que o visitante, se de carro, engata a ré a fim de tentar fazê-las caber inteiras no para-brisa, e outras tão ínfimas que ao seu lado alguém gentilmente abandonou uma lupa para a apreciação da absurda riqueza de detalhes, e em seguida observam de longe, esses visitantes, um labirinto de pontes suspensas, cujo brilho faz crê-las trançadas em capim dourado ou outra palha reluzente ou até mesmo desconfiar que são finíssimos fios de led ou outra tecnologia ainda por ser disseminada, pontes instaladas entre as árvores e das árvores até o topo da imponente serra de acordo com os cálculos insondáveis de alguma ciência certamente não matemática e em tão maior número que o de estradas ou de trilhas no solo que quem as vê pensa estar diante do habitat de alguma espécie que evoluiu a ponto de precisar urbanizar o céu, céu que durante o dia desaparece por detrás de uma abóboda escura e retrátil, em cujo forro escuro há milhares de lâmpadas multicor reproduzindo à perfeição as estrelas da via láctea no hemisfério Sul, de modo que os animais noturnos podem passear, caçar e encontrar seus pares ou suas presas mesmo quando o sol está a pino acima da larguíssima abóbada que à noite, graças a um mecanismo engenhoso de engrenagens produtoras de uma música um pouco hipnótica do naipe dos metais, se abre para nos permitir avistar a torre de mais de um quilômetro de altura, na ponta da qual está pendurado um majestoso globo dourado emissor de luz e calor tão fortes a ponto de transformar as noites de Lapinha da Serra em uma espécie de dia, fazendo a alegria das crianças livres de ir para a cama dormir e para continuar indefinidamente em suas brincadeiras, entre elas o mergulho nas águas do lago repleto de construções flutuantes e de túneis de vidro que avançam por suas profundezas em busca de algum mistério até hoje não desvendado ou desvendado de maneira secreta por cada um que permaneceu calado ao tentar decifrá-lo.
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