Com uma trajetória de quase sete décadas marcada pela luta por protagonismo, atriz e cineasta Helena Ignez aposta em experimentações criativas nos palcos e telas
Por Lígia Scalise
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Quem olha para a obra artística de Helena Ignez, que atravessa décadas de atuação no teatro e cinema brasileiros, não enxerga apenas uma atriz e diretora. Encontra uma mulher movida pela ousadia ao desafiar convenções, sacudir estruturas e erguer a voz em um cenário marcado pelo machismo e conservadorismo.
Nascida em Salvador (BA), em 1939, Helena rompeu com o destino que lhe fora desenhado. Abandonou a faculdade de direito para estudar artes cênicas, e foi no pátio da faculdade que conheceu um rapaz de ideias mirabolantes e geniais, chamado Glauber Rocha (1939-1981). “Era uma admiração enorme por aquela criatura louca, muito jovem e já com tanta coisa feita. Eu me apaixonei pelo frescor, no meio daquela sociedade que era tão sufocante e hipócrita”, relembra. O encantamento mútuo foi apadrinhado pelo escritor Jorge Amado (1912-2001) e resultou em casamento e em uma filha, a cineasta Paloma Rocha.
A estreia de Helena como atriz foi também a première de Glauber Rocha como diretor, com o curta-metragem experimental O Pátio (1959). Foi a partir daí que Helena passou a ser conhecida publicamente como “musa do Cinema Novo” e “mulher de Glauber Rocha”, rótulos que sempre rejeitou. Aliás, a antimusa nunca quis ser sombra de ninguém.
Anos depois da separação de Glauber e Helena, em 1961, a Bahia ficou pequena para a liberdade visceral de Helena Ignez. Foi aí que ela se mudou para o Rio de Janeiro, onde continuou fazendo sucesso em longas-metragens como A Grande Feira (1961), Assalto ao Trem Pagador (1962) e O Padre e a Moça (1966).
Em 1968, foi chamada para participar de O Bandido da Luz Vermelha, na pele da prostituta Janete Jane. E foi no set que conheceu o diretor Rogério Sganzerla (1946-2004), com quem se casou e teve duas filhas, Sinai e Djin, além de uma frutífera parceria na arte. Foi ao lado de Sganzerla que Helena fundou a Belair Filmes, também em sociedade com o cineasta Júlio Bressane.
A atriz se tornou um dos nomes mais importantes do então chamado Cinema Marginal – movimento que rompeu com o Cinema Novo – e chamou atenção em obras fundamentais dos anos 1970, como Sem Essa, Aranha (1970) e Copacabana Mon Amour (1970), ambas dirigidas por Sganzerla, além de filmes assinados. Helena e Sganzerla viveram juntos por 35 anos, até 2004. Ao morrer, Sganzerla deixou um “baú cheio de roteiros”, ela conta. Desde então, ela trabalha como diretora e atriz.
Recentemente, levou ao palco do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, sua versão da montagem de Vestido de Noiva, obra de Nelson Rodrigues (1912-1980). Aos 86 anos de uma vida dedicada às artes, Helena Ignez compartilha, neste Encontros, recortes de uma trajetória de uma existência que nunca se acomodou em espaços pré-definidos.
Se tivéssemos tido um relacionamento aberto, acho que teríamos ficado mais tempo juntos. Mas Glauber era machista – e qual homem não era? – e logo quis que eu mudasse a cor dos cabelos para chamar menos atenção. Imediatamente virei “a mulher do Glauber Rocha”. As pessoas queriam olhar para mim e ouvir o que ele pensava. Sempre lutei pela minha expressão, mas, estar ao lado de um cara como Glauber era ainda mais intimidador. Quando o nosso casamento acabou e perdi a guarda da nossa filha, sofri horrores. Se hoje já é delicado viver uma situação como essa, imagine naquela época?
Não achei que fosse ter forças para lidar com a perda do meu único grande amor (o cineasta Rogério Sganzerla), mas hoje parece que eu trazia em mim essa despedida. Não com ele indo, porque eu sempre achei que eu morreria antes, mas com ele promovendo, outra vez, uma transformação enorme na minha vida. Depois de sua morte, assumi o texto, a produção e a parte da direção, que dividi com o diretor Ícaro Martins, e coloquei no mundo Filho do Bandido (2012), com Djin Sganzerla, nossa filha, tendo o ator André Guerreiro Lopes e o cantor Ney Matogrosso no elenco. Foi um luxo espiritual tocar a saga sganzerliana em família e trabalhar juntas na preservação e difusão do legado artístico de Rogério.
Já casada com Rogério, e com nossas duas filhas entrando na adolescência, decidi ir em busca da minha espiritualidade e trabalhar melhor a minha mediunidade. Tinha muitas angústias existenciais, interrogações sobre a eternidade, e vi que várias culturas religiosas clássicas se debruçam sobre esses temas. Fui estudá-las e acabei conhecendo melhor o hinduísmo e o taoismo, mas também entendo bastante a mente budista. Acho que tenho muitas religiões. Trouxe para a minha vida a prática do tai chi chuan, arte marcial chinesa, e isso é essencial para minha saúde e rotina. Acredito que é por isso que ainda tenho tanta energia com mais de 80 anos. No tai chi, a gente aprende a ter uma cabeça paralela ao céu e uma coluna reta e relaxada, mas isso leva tempo. Eu pude cometer essa loucura de me dedicar ao meu ser místico.
A vanguarda não tem idade e o cinema que a gente faz é instável e independente
Foto: Leo Lara/Universo Produção
Em 2009, levei a Gramado (RS) e a festivais independentes fora do país o filme com o qual estreei como diretora, Canção de Baal (2008), uma adaptação do texto de Bertolt Brecht (1898-1956). Recebi aplausos pela mistura autoral de elementos do teatro à narrativa do cinema e ganhei um prêmio na Itália pela contribuição à linguagem. O que mais gostei foi de ler a manchete de um jornal da cidade italiana de Trieste, que dizia que a vanguarda brasileira estava nas mãos de uma “ragazzina settant anni”, ou seja, de uma garota de 70 anos. Isso me mostrou que a vanguarda não tem idade e o cinema que a gente faz é instável e independente. Para mim, o Cinema Marginal é apenas um título. Faço um cinema de bons filmes, premiados, elogiados pela crítica e de alcance internacional.
Assim como Nelson Rodrigues tinha obsessão pelo nome duplo Helena Ignez, eu sou uma obcecada pela arte e pela genialidade de Nelson. Eu o conheci aos 23 anos, em 1963, quando trabalhava na TV Rio [uma precursora da TV Globo] e apresentava um programa em que ele constantemente participava. O convite para que, seis décadas depois, eu remontasse e dirigisse Vestido de Noiva no teatro foi sugestão de Lucélia Santos, por meio de Djin, minha filha, com quem Lucélia trabalhou no filme Mulher Oceano (2020). Achei incrível essa sugestão e pensei que, em comum com Lucélia, nós amávamos Nelson Rodrigues. Fiquei um ano dedicada a essa peça, e não parava de achar graça da ironia dele. Nelson é atual, e eu quis fazer uma leitura nova também. Quis repensar as rubricas rodriguianas, sobretudo as que enquadram as mulheres em certas convenções sociais e morais datadas.
Era detestável ser chamada de “musa do Cinema Novo” numa época em que estávamos lutando pelos nossos direitos como mulher. Ser musa significava ser linda, mas silenciada. Uma musa ficava sentada junto ao seu marido, e só. As atrizes do Cinema Novo foram extremamente condicionadas; não havia outro jeito. Por isso, eu me neguei a ser chamada assim. Era um ambiente muito machista. Eles não percebiam que essa adoração às musas e as homenagens que faziam à beleza feminina matavam as mulheres (de maneira simbólica).
Ninguém imagina o que foi viver uma ditadura, sem estar nela. Foi uma experiência fortíssima que marcou a todos nós. Me lembro de sempre me deparar com dois homens vigiando a minha casa. Eu morava num apartamento no primeiro andar, numa esquina do Leblon [bairro na zona Sul da capital fluminense], e tinha muito medo de acabar na prisão pelos livros que eu tinha em casa. Em um determinado momento, escondi tudo. Vivemos um momento tenebroso e corríamos muitos riscos por conta da Belair Filmes. O filme Copacabana Mon Amour por exemplo, tinha cenas políticas muito corajosas. Hoje, me sinto feliz por ver as salas de cinema lotadas com fãs de novas gerações assistindo aos filmes que fizemos nessa época. Isso me emociona.
A atriz e diretora Helena Ignez participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 12 de dezembro de 2024. A mediação do bate-papo foi do jornalista Rodrigo Eloi, que integra a equipe de programação do Sesc Consolação.
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