Cada vez mais presentes nos palcos e rodas de música, mulheres mostram que talento, técnica e instrumento não têm gênero (foto: Nilton Fukuda)
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Por Lígia Scalise
A década era 1970 e os palcos dedicados à música de concerto ainda eram dominados por homens. Em meio a esse cenário, diferentes orquestras ao redor do mundo passaram a incorporar cortinas em suas audições, “ocultando” quem se candidatava a ingressar nesses grupos. Esse modelo de avaliação, já adotado na seleção de artistas de outros gêneros musicais, foi um marco na história da música de concerto, multiplicando a presença feminina nesse campo.
Entre acordes, sopros e ritmos marcados com precisão, uma transformação acontece na música nas últimas décadas: a presença cada vez mais forte de mulheres instrumentistas em palcos, rodas, bandas e orquestras. Se antes a execução de certos instrumentos era vista como um território masculino – do contrabaixo ao saxofone, da percussão à sanfona –, hoje, musicistas de diversas gerações encontram espaço para provar que talento, técnica e música não têm gênero. E não existem instrumentos masculinos ou femininos: todas as pessoas têm postura, capacidade e força para tocar o que quiserem.
A questão é que, por séculos, o preconceito de gênero orquestrou os espaços que as mulheres podiam ou não ocupar na música profissional. Enquanto os homens tinham mais oportunidades para estudar e se especializar em certos instrumentos, na regência e na composição, às mulheres restava o piano, muitas vezes no ambiente doméstico, ou o microfone, muitas vezes sob a condição de “musa” – a voz que encanta, mas não comanda. A imagem da cantora cercada por outros músicos se tornou tão enraizada que a ausência de mulheres nos instrumentos sequer era questionada. “Elas não eram incentivadas a tocar, muito menos a se profissionalizar. E quando uma mulher ousava ocupar esses espaços, precisava provar constantemente sua competência”, afirma Luisa Toller, musicista e pesquisadora, mestre em música e gênero.
Felizmente – e com muita resistência e luta – essa realidade está mudando. “A discussão sobre representatividade nos instrumentos é relativamente recente, impulsionada pelo feminismo e pelas redes sociais nos últimos 30 anos. Hoje vemos musicistas atuando em diversos estilos e dominando todos os tipos de instrumentos. Ainda há uma prevalência masculina, mas o processo de transformação da cena instrumental está em curso”, reforça Toller que, em 2021, viralizou ao questionar a ausência de mulheres instrumentistas na Mostra de Música Instrumental Paulista. Na época, ela enfatizou: “Não é a primeira vez que nos deparamos com esse problema e o expomos aos quatro ventos. E, novamente, afirmamos: não aceitaremos mais ser excluídas dos eventos de música”.
Seja no meio da música de concerto, no qual a regência e os naipes de metais e percussão ainda são majoritariamente masculinos, seja na música popular, em que as mulheres precisam constantemente provar sua competência, a mudança está em andamento. Badi Assad, referência mundial no violão, é um exemplo disso. “Quantas vezes ouvi que toco como um homem? Perdi as contas. Quando jovem, via isso como um elogio, mas só na fase adulta percebi o peso dessa comparação. Como mulher na música, precisei me provar muito mais do que os meus colegas homens”, diz a violonista, cantora e compositora, com mais de 35 anos de carreira.
Grupos, bandas, rodas e orquestras exclusivamente femininas têm desempenhado um papel fundamental na construção desse novo cenário. Paula Valente, saxofonista e professora, conta que a Jazzmin’s, por exemplo, nasceu da escuta de suas alunas sobre a falta de inclusão no mercado da música instrumental. Em 2016, ao lado da pianista Lis Carvalho, ela fundou a primeira big band composta apenas por mulheres. “O objetivo é ampliar o espaço de aprendizado, trocas e trabalho, além de oferecer encorajamento para as musicistas. Essa é a palavra-chave: encorajamento. A representatividade é transformadora: quanto mais mulheres aparecem nos palcos, mais meninas se veem naquele lugar e entendem que também podem seguir esse caminho”, ressalta.
Primeira guitarrista
Lucinha Turnbull é considerada a primeira mulher a tocar guitarra profissionalmente no país e, desde então, construiu uma carreira marcante. O que sempre esteve evidente em seus 60 anos de trajetória foi a paixão pela música e o encantamento pelo instrumento que escolheu como profissão. “Eu tinha só 19 anos, e desde a primeira vez, toquei guitarra para me divertir. Meu pai me incentivava, já minha mãe se preocupava com meu futuro. Mesmo assim, insisti e acabei furando a bolha do domínio masculino no instrumento”, relembra.
Nos anos 1970, fez seu primeiro show profissional no Teatro Oficina, na capital, onde abriu uma apresentação de Os Mutantes. Foi o início de uma trajetória que a levou a parcerias com Rita Lee (1947-2023), Caetano Veloso, Moraes Moreira (1947-2020), Guilherme Arantes e Gilberto Gil. “Uma gravação me abriu portas para outra, e no fim, sempre chamavam ‘a menina da guitarra’, e acabei me tornando referência”, conta.
Hoje, aos 72 anos, Lucinha reflete sobre sua carreira com orgulho. “Acredito que perdi algumas oportunidades por ser mulher, porque homem geralmente indica homem, mas fui conquistando meu espaço. E sempre que precisei, me posicionei. O que me manteve firme todos esses anos foi acreditar no meu trabalho”.
Única na orquestra
Quando Ana Valéria Poles começou a tocar contrabaixo, não tinha referências femininas no comando do instrumento. Como gosta de dizer, “era terra arrasada”. Justamente por isso, tornar-se inspiração para outras meninas é algo que a enche de orgulho. “Completei 50 anos de carreira, sendo 37 deles na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Hoje, sou chefe do naipe de contrabaixo e a única mulher entre dez homens. Quando comecei a estudar piano no Conservatório de Tatuí, aos 12 anos, jamais imaginaria trilhar esse caminho. O contrabaixo surgiu por sugestão de um professor que queria formar uma orquestra infantojuvenil. Foi ele quem me levou a tocar em orquestras no exterior e me tornei referência no Brasil”, celebra.
Após conquistar prêmios nacionais e se apresentar como solista em importantes orquestras brasileiras, Ana Valéria recebeu uma bolsa do Governo do Estado de São Paulo para estudar na Escola Superior de Música e Artes Cênicas de Viena (hoje Universidade de Música), sob a orientação do renomado professor Ludwig Streicher (1920-2003). Durante sua trajetória na Europa, integrou o conjunto Novos Solistas de Viena, a Primeira Orquestra de Mulheres da Áustria e a Orquestra Franz Lehár, além de ter se apresentado com a Orquestra Mozarteum de Salzburg.
“Aprendi muito com os professores que tive. Também adorava dar aula para mulheres. Toda vez que duvidaram da minha capacidade, respondi com resultados. Nunca me deixei abalar. Essa é a mensagem que passo para minhas alunas: focar nos estudos e ignorar críticas sem fundamento”, destaca.
Hoje, Ana Valéria vê com entusiasmo a transformação da música instrumental no Brasil. “Talvez a mudança não aconteça na velocidade que gostaríamos, mas está acontecendo. Sou uma das precursoras no meu instrumento e, agora, vejo muitas meninas na ativa. Isso é maravilhoso”, comemora. Exemplo desse movimento é o Instrumental Sesc Brasil, projeto realizado há mais de três décadas pelo Sesc São Paulo, que apresenta semanalmente shows instrumentais – atualmente no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação – e, cuja curadoria atual prima pelo protagonismo feminino.
(foto: Mario Daloia)
Nova geração
A música sempre esteve presente na vida de Valentina Faccury. Neta de pianista, filha de um trombonista e de uma educadora musical, cresceu cercada por sons e ritmos. Mas foi nas aulas de capoeira, ainda criança, que descobriu sua verdadeira paixão: a percussão. Hoje, é um dos principais nomes da nova geração e integra três grandes bandas de música instrumental, incluindo o Bixiga 70, grupo de formação majoritariamente masculina.
“A percussão, assim como quase todos os instrumentos, ainda tem uma maioria de homens. Isso é reflexo de um contexto histórico no qual eles sempre tiveram o privilégio de se dedicar exclusivamente à carreira, enquanto as mulheres precisavam dividir seu tempo com diversas responsabilidades. Mas isso está mudando. Aos poucos, fomos reivindicando e ocupando esse espaço profissional. Minha geração e as próximas estão cada vez mais fortes”, constata. Embora tenha enfrentado situações desconfortáveis no início da carreira, quando o conhecimento técnico era questionado apenas pelo fato de ser mulher, Valentina reconhece a importância do apoio que recebeu ao longo do caminho.
Elas na sanfona
Vitória Faria entendeu muito cedo que, para conquistar seu espaço na música como instrumentista, teria que enfrentar muitas batalhas. “Comecei a tocar sanfona aos nove anos, incentivada pela minha mãe, que é artista plástica e mantinha um centro cultural em casa com meu padrasto. Nossa residência era um espaço de trocas muito rico, por onde passavam diversos artistas. Com o tempo, percebi que a liderança estava sempre nas mãos dos homens. Quando ingressei na faculdade, essa realidade se repetiu. Não havia vestibular com especialização no meu instrumento, então entrei para o curso de composição popular. Passei em primeiro lugar, mas era a única mulher e sofri muita hostilidade”, relembra.
Vitória conta que, muitas vezes, se sentiu isolada, no canto do palco ou colocada como a “cereja do bolo” – por ser a única mulher. Para ser respeitada como musicista, precisou provar seu talento incontáveis vezes. “Outro dia, fui a uma roda de choro tradicional e levei minha sanfona. Havia uns 20 homens na roda, e, quando cheguei com meu instrumento, vi olhares de deboche. Quando me sentei para tocar, senti os olhos esperando que eu errasse uma nota. Conheço bem essa cena. Mas, para a surpresa deles, eu não errei. Ainda assim, precisei ouvir comentários como um selo de aprovação. Eu me pergunto: por que os homens ainda se surpreendem tanto com a capacidade de uma mulher?”.
Imbuída da missão de lutar, cantar e tocar pelos direitos das mulheres, Vitória vê mudanças acontecendo. “A gente só vai até onde acredita ser possível, e sinto que há cada vez mais referências femininas na música, o que impacta diretamente outras mulheres. Estamos criando espaços mais acolhedores para existir. Espero que um dia isso não seja mais necessário, mas, por enquanto, ainda é. O reconhecimento coletivo fortalece. Meu novo álbum canta e toca por todas nós”, conclui.
Harmonia em conjunto
Há quase 50 anos, o Centro de Música do Sesc São Paulo fomenta a construção musical coletiva, compreendendo-a como um direito de todas as pessoas
Criado na década de 1970, o Centro de Música do Sesc São Paulo promove a troca e a multiplicação de saberes musicais, tanto na teoria quanto na prática, entre diferentes públicos. Em cursos, workshops, vivências e encontros, o programa fomenta o ensino dessa arte de forma acessível, assumindo-a como um direito relacionado à cidadania.
O programa é realizado de maneira permanente em diferentes unidades do Sesc no estado de São Paulo. As unidades do Consolação, Guarulhos e Vila Mariana também contam com estruturas voltadas a cursos regulares e outras atividades formativas, com um acervo de instrumentos musicais, métodos, partituras e equipamentos multimídia.
“O Sesc prioriza o ensino coletivo, o lazer por meio do fazer musical prazeroso e a pesquisa na linguagem, buscando contemplar os mais diversos gêneros musicais. Nessa concepção, fazer música em grupo contribui para a construção de sujeitos autônomos e de suas comunidades”, afirma Priscila Rahal, da Gerência de Ação Cultural do Sesc.
Saiba mais sobre cursos e inscrições em: sescsp.org.br/projetos/centro-de-musica
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