Tradição em desfile 

28/02/2025

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No mês do Carnaval, conheça elementos que fundamentam as práticas e poéticas das escolas de samba  

Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra

POR RACHEL SCIRÉ

No universo das escolas de samba, é comum ouvir que quando o Carnaval começa, na verdade, ele está terminando. O que as agremiações apresentam na avenida não é só o resultado de um ano de trabalho, mas um acúmulo de tradições, saberes e performances, revividas pela comunidade, a partir de uma noção de tempo cíclico, que é o tempo da ancestralidade. Neste Almanaque, destacamos alguns elementos que fundamentam a história das escolas, as práticas comunitárias que dão sentido à folia e as matrizes africanas do samba. 

Ginga  
A base rítmica do samba se caracteriza pela presença da síncope musical, que também evidencia sua origem africana. De forma simplificada, a síncope é um elemento que produz o deslocamento da acentuação rítmica da parte fraca para a parte forte do tempo. Isso cria um efeito de imprevisibilidade e uma sensação de vazio, que impacta a maneira como a música é percebida e como o corpo se movimenta. Ela é traduzida, por exemplo, pela ginga do malandro que risca a avenida, pelo samba no pé da passista que transforma seu corpo em uma poesia visual do ritmo, pelas levadas do surdo de terceira, que toca entre o vazio da marcação do surdo de primeira e a resposta do surdo de segunda. Ao romper com o que é esperado, ela também abre espaço para novas formas de existência, que restituem o corpo negro em diáspora como lugar de vida, de festa e de potência. 

Cordão e escola 
Há uma relação histórica entre os cordões e as escolas de samba em São Paulo. O pioneiro e mais conhecido foi fundado por Dionísio Barbosa, em 12 de março de 1914, como Grupo Carnavalesco da Barra Funda, depois chamado Camisa Verde e, por fim, Camisa Verde e Branco. O cordão saiu até 1939 e, em 1953, por iniciativa de Inocêncio Tobias (Inocêncio Mulata), seria refundado como Associação Cultural e Social Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco. Trajetória semelhante marca o Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Vai-Vai, de 1972, que se originou do cordão Grupo Carnavalesco Vae-Vae, criado em 1º de janeiro de 1930. Em 1935, no bairro da Pompeia, foi criada a primeira escola de samba da capital paulista, encabeçada por Elpídio Faria e sob o nome A Primeira de São Paulo, que existiu por cerca de sete anos. Por isso, a Lavapés, fundada por Deolinda Madre (Madrinha Eunice) e Francisco Papa (Chico Pinga) em 1937, no bairro da Liberdade, é reconhecida como a primeira e mais importante escola do início do século 20 na capital paulista – foi sete vezes campeã do Grupo Especial nos anos 1950 e 1960. Atualmente chamada de Sociedade Recreativa Beneficente e Esportiva Lavapés Pirata Negro, a escola continua em atividade, na região do Jabaquara, e desfila no Grupo Especial de Bairros. 

Bamba 
No quimbundo, uma das línguas banto que formaram o português falado no Brasil, a palavra “mbamba” indica quem é referência em algum assunto ou área do conhecimento. Um dos bambas do samba de São Paulo, Carlos Alberto Caetano, mais conhecido como Seu Carlão do Peruche, nos deixou em fevereiro de 2025, aos 94 anos. Sua história se confunde com a trajetória do samba e com os territórios negros da cidade. Nascido na Barra Funda, quando menino frequentou os batuques de Pirapora do Bom Jesus (SP). Mudou-se para o Bixiga e, jovem, participou das rodas de samba de engraxates no Centro da cidade, além de tocar na escola de samba Lavapés. Já instalado na zona Norte, fundou a Unidos do Peruche, em 1956. Seu Carlão lutou pela descriminalização do samba e pela oficialização do Carnaval, que só aconteceu em 1968, quando ficou conhecido como um dos cardeais do samba, ao lado de Inocêncio Mulata (Camisa Verde e Branco), Pé Rachado (Vai-Vai), Madrinha Eunice (Lavapés) e Seu Nenê (Nenê de Vila Matilde). Percussionista, cantor e compositor, foi parceiro de Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro, teve sambas gravados por Germano Mathias, Demônios da Garoa, Osvaldinho da Cuíca, entre outros, e lançou um álbum autoral em 2022. 

Seu Carlão do Peruche homenageado no enredo da Unidos do Peruche no Carnaval de 2025.  (foto: Felipe Araujo / Liga SP)

Pavilhão  
Um dos momentos mais emocionantes para uma escola de samba é a apresentação do pavilhão oficial pelo primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira. Ele é o símbolo maior da escola, traz o nome, as cores, a data de fundação. As bandeiras e os estandartes são forças mediadoras que ligam a terra ao céu, os antepassados aos vivos. Ao rodopiar no ar, irradiam energia pelo espaço e entre todos os presentes. Sua sacralidade também se relaciona com as firmezas espirituais que costumam ser feitas para a escola, a partir do pavilhão. Por representar e exaltar toda a comunidade, o pavilhão exige reverência. É sinal de respeito cumprimentá-lo à distância: se curvar, tirar o chapéu, aplaudir — o que não deve ser feito com copo de bebida nas mãos. Tampouco é educado dar as costas. Só se deve beijar o pavilhão quando o casal de mestre-sala e porta-bandeira convidarem, honra máxima concedida a uma pessoa. Ainda assim, o costume é segurar de leve a ponta do tecido e dar um beijo nas costas da própria mão, sem encostar a boca. Apenas em ocasiões específicas pessoas autorizadas podem transportar o pavilhão e precisam estar devidamente trajadas: as mulheres, com saia abaixo dos joelhos; os homens, com calça e camisa social. 

O mestre-sala e a porta-bandeira do Vai-Vai reverenciam e apresentam ao público o pavilhão: símbolo maior da escola de samba. (Foto: Felipe Araujo / Liga SP)

Baianas 
Essa ala faz referência às “tias baianas”, como Ciata, Bebiana, Carmem, Perciliana, mulheres baianas que desempenharam papel fundamental nas comunidades negras no Rio de Janeiro, na virada do século 20. Por meio de atividades econômicas, como a venda de quitutes, elas garantiram a sustentação material do grupo, ao mesmo tempo em que ofereceram proteção espiritual, como lideranças religiosas. Devido à influência política e social, suas casas foram espaços de convivência onde se praticava o samba junto a outras tradições de matrizes africanas. A atuação de matriarcas negras foi decisiva tanto em ranchos e cordões carnavalescos quanto nas escolas de samba. Nas agremiações, entre outras funções, elas costumavam integrar o coro, escolher os sambas apresentados durante os ensaios e, no âmbito espiritual, zelar pelo pavilhão. A ala remonta ainda à presença dessas mulheres em rituais, procissões e festas populares. Nos desfiles, tradicionalmente, as baianas começam a girar ao redor do próprio eixo sempre em sentido anti-horário, o que simboliza uma conexão com o tempo dos ancestrais, assim como acontece nos terreiros. Ao se movimentar na avenida, pedem licença e reverenciam a ancestralidade, realizam uma limpeza e abrem os caminhos, já que, como se diz em diversas tradições afro-brasileiras, “debaixo da saia, tem mironga”, ou seja, mistério, energia. 

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