Missão Tornado 

28/02/2025

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Prestes a completar 95 anos, cantor e ator Tony Tornado celebra uma trajetória marcada pela luta antirracista, arte e resistência 

Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra

POR LÍGIA SCALISE 

“Tudo certo para o show, don? Estou pronto”, avisa Tony Tornado, minutos antes de subir ao palco do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, com sua banda Funkessência, composta também por seu filho caçula, Lincoln Tornado. Na apresentação, ele interpreta alguns de seus maiores sucessos e compartilha lembranças marcantes de sua carreira. Seus olhos acompanham o público, orientam os músicos, e não disfarçam o orgulho ao ver o filho cantar, dançar e reverberar mensagens da luta antirracista, aprendidas com o pai. “Para quem não sabe, nasci em 26 de maio de 1930 e acumulo quase 95 anos de luta. Estou a caminho dos 100”, declara, sob aplausos emocionados da plateia.  

Pelo retrovisor, a história do cantor e ator indica que ele estava destinado ao palco e a lutar por seus sonhos. Batizado como Antônio Viana Gomes, nasceu em Mirante do Paranapanema, no oeste paulista, e aos 12 anos, avisou: “Mamãe, vou para o Rio; isso aqui é pequeno para mim”. Seus pais não acreditaram, mas Tony Tornado foi em busca da carreira de artista.  

Engraxou sapatos, vendeu amendoins e balas, dormiu em trens e sob viadutos. Assim sobreviveu no Rio de Janeiro dos anos 1940. Com um pouco de sorte, pagava por uma noite em um hotel do centro da cidade. Exausto de correr da polícia, decidiu ir até uma delegacia pedir ajuda: “Preciso de uma escola. Assim, não vou sair dessa vida de vender amendoim e bala puxa”, recorda. Frequentou as aulas até atingir a idade para ingressar no exército como paraquedista. Foi lá que conheceu Silvio Santos (1930-2024), com quem cultivou uma amizade. 

Tornou-se conhecido por imitar o cantor e dançarino estadunidense Chubby Checker, que popularizou o twist, e foi por isso apelidado de Tony Checker. O talento abriu portas e ele foi convidado para se apresentar no programa Festival dos Brotos, na TV Continental, ao lado de Roberto e Erasmo Carlos (1941-2022). Aquele era o prenúncio da black e da soul music no Brasil, que teve Tornado como um dos precursores.  

Pouco tempo depois, embarcou para os Estados Unidos com o grupo Coisas do Brasil. Quando a banda voltou ao país, ele permaneceu no Harlem, bairro de Nova York (Estados Unidos), onde viveu ilegalmente e aprendeu sobre os movimentos negros. Nesse período, também ajudou um brasileiro preso – Sebastião, mais tarde conhecido como Tim Maia (1942-1998). Foi o início de uma amizade e de uma revolução pessoal. “Eu não queria causar tumulto no Brasil, mas queria que os negros daqui tivessem consciência de seu potencial”, relembra. 

De volta ao país, conquistou o prêmio do Festival Internacional da Canção de 1970 com “BR-3”, música composta por Antonio Adolfo e Tibério Gaspar. O reconhecimento transformou sua vida, permitindo–lhe novas conquistas e assumindo o nome artístico de Tony Tornado – apelido dado por Mariozinho Rocha, ex-diretor musical da Globo, ao vê-lo dançar como um furacão. Neste Depoimento, o cantor e ator recorda momentos significativos da carreira, a luta antirracista e o legado que fica para as próximas gerações. 

pai 
Se meu pai fosse mais esperto, ele teria entrado para o livro dos recordes pelo tempo que viveu. Mas os antigos tinham o costume de deixar para registrar o nascimento só quando fossem até a cidade. Foi o que aconteceu com ele. Oficialmente, meu pai [Ray Antenon, que nasceu em Georgetown, capital da Guiana] viveu até os 102 anos, mas acredito que ele tenha partido com uns 114. É muito tempo de vida e de histórias. Apesar de ter nascido depois da abolição da escravidão, meu pai foi escravizado em fazendas do interior.  

liberdade 
Minha família trabalhava no campo, mas a vida de roçado não era para mim. Eu precisava de liberty, sabe? Adoro Mirante do Paranapanema, a cidade onde nasci, mas aquilo era pequeno demais para mim. Desde garoto, já sonhava grande e queria ser artista. Tentei fugir com o circo algumas vezes, mas acabei saindo de casa com as minhas próprias pernas, sozinho. Meus pais não acreditavam que eu teria coragem, mas fui tentar a vida no Rio de Janeiro (RJ). Esse foi meu primeiro ato de atrevimento. Assim como tudo que fiz na vida. 

don 
Se um americano falar comigo, eu provavelmente não vou entender nada. Meu inglês é das ruas, a língua que aprendi no Harlem. E nunca esqueci, don. Don, aliás, é só uma expressão para chamar as pessoas, como “cara” aqui no Brasil. Não importa o nome, trato todo mundo com respeito. Durante os anos em que morei nos Estados Unidos, aprendi muita coisa. Quando voltei, a primeira coisa que fiz foi abrasileirar a música e a dança que aprendi lá fora. Queria mostrar aos pretos daqui o orgulho de ser quem somos. Isso ficou marcado em mim. 

conhecimento 
Só lendo a gente aprende, né? Foi assim que descobri muito sobre a cultura negra americana e me inspirei nos grandes líderes. Aprendi tudo por conta própria e queria entender por que os negros de lá conquistavam tanto, enquanto aqui ainda vivíamos o “sim, senhor, não senhor”. Minha luta sempre foi por igualdade. Não gosto de política paternalista, muito menos de sentimento de pena. Sempre quis ser respeitado pela minha capacidade, não pela minha raça. Teve quem me chamasse de metido, mas conquistei meu respeito de cabeça erguida, de igual para igual. Sei que meu jeito chocava as pessoas na época, mas fui audacioso. E quando ganhei aquele festival, deixei minha marca na história. Isso mudou a minha vida e abriu espaço para os que vieram depois. Sempre repito: quando duas mãos se encontram, a sombra que refletem no chão tem a mesma cor. 

Sempre repito: quando duas mãos se encontram, a sombra que refletem no chão tem a mesma cor

festival 
Lembro o anúncio da nossa apresentação: “com vocês, ‘BR-3’, interpretada por Tony Tornado e Trio Ternura”. O Maracanã ficou em silêncio. Ninguém sabia quem éramos. Subimos no mesmo palco que os maiores artistas da época. Chegaram a dizer que eu era gringo. Mas mostrei que era muito brasileiro: tinha swing. As chances de vencer eram mínimas, mas disse: “vou subir e quebrar tudo. Essa é minha chance”. E foi o que fiz. Dei tudo de mim. Foi uma emoção geral, a maior que já vivi. Ganhei o prêmio e, pela primeira vez, dormi em uma cama de hotel com dignidade. Até então, morava na pobreza do centro do Rio. Foi uma mudança radical. 

missão 
Quando me perguntam quem é Tony Tornado, só tenho uma resposta: sou um cara com uma missão. Precisei cumpri-la em nome de todo um povo que veio antes de mim. Faltava uma voz firme, que não lutasse com arrogância, mas com respeito e liderança. Minha missão sempre foi dizer ao mundo que nós temos o direito de ser. Não me considero o precursor, mas estou entre aqueles que acreditam e lutam pelo espaço do povo negro. Ainda há muito a conquistar, mas já melhorou muito. E foi assim que consegui meu espaço, e veja só, estou na TV Globo há quase 50 anos.  

O artista em show no Sesc Osasco, acompanhado pelo grupo Funkessência, em outubro de 2023. (Foto: Nilton Fukuda)

continuidade 
Estou a caminho dos 100 anos e carrego muitas histórias. Minha vida parece um roteiro de novela. Só sinto o peso da idade quando vou dormir, refletindo sobre a vida, ou quando estou na fila preferencial do mercado. Não tenho fórmula para envelhecer bem. Acho que o segredo é não morrer, né? Esse é o grande lance. Se manter vivo já é difícil, don. O resto é cultivar respeito e bom humor. Quando observo meu filho no palco, vejo a mim mesmo, só que em uma versão muito melhorada. Lincoln Tornado é minha esperança e a continuidade da minha luta. Ele é minha cabeça, meu coração, meu tudo. A cada show, fico esperando-o entrar no palco e quebrar tudo. E ele arrebenta, né? 

sonho 
Estou na ativa e pretendo continuar enquanto puder. Acho que ainda tenho chão pela frente. Recentemente, participei de um filme com Ary Fontoura, Fernanda Montenegro, Vladimir Brichta e Bruna Marquezine. É uma comédia de ação, chamada Velhos bandidos, dirigida por Cláudio Torres. Adoro cinema, novelas e os palcos. Já realizei muita coisa, mas ainda tenho um sonho. Não posso revelar, mas todos saberão quando ele se realizar. Meu único medo é partir antes disso, mas acho que vai dar certo. Afinal, tudo deu certo até agora, não foi? 

Assista a trechos desse Depoimento com o cantor e ator Tony Tornado, realizado no Sesc Pinheiros, em dezembro de 2024. 

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