Manuscritos borram a fronteira entre documento histórico e obra de arte

30/11/2022

Compartilhe:
Leia a edição de dezembro/22 da Revista E na íntegra

Cartas, autógrafos e dedicatórias escritos à mão propõem um olhar possível por entre frestas do tempo, borrando a fronteira entre documento e obra de arte

Por Luna D´Alama 

Num mundo onde a maioria dos textos é digitada, imagine conhecer os contornos da caligrafia de Machado de Assis (1839-1908), as claves da partitura original de Chega de Saudade, canção composta por Tom Jobim (1927-1994), ou um esboço de Michelangelo (1475-1564) para calcular as medidas de um bloco de mármore em sua primeira grande encomenda arquitetônica.

A partir do contato com papéis pessoais e letras cursivas de personalidades brasileiras e internacionais, é possível mergulhar num universo íntimo, repleto de sentimentos, paixões, hesitações e vulnerabilidades. Por trás desses rascunhos, processos criativos, métodos de trabalho e bastidores de eventos históricos, revelam-se a humanidade presente em cada traço e as biografias escondidas nas entrelinhas de cada caligrafia.  

“Um manuscrito [do latim manu scriptus, ou escrito à mão] não é feito, originalmente, para ser publicado ou divulgado, apenas lido. Ele nasce de um contexto compartilhado somente entre quem escreve e quem o lerá naquele momento. O leitor final geralmente não tem acesso ao processo, só ao resultado. E é por isso que há realmente uma magia quando o universo de quem escreve é revelado, e o leitor consegue mergulhar na perspectiva do autor, situar-se ao lado dele para compreender o processo que estava em curso”, analisa o pesquisador em filologia e história da língua portuguesa Phablo Fachin, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). 

Especialista em textos redigidos em português entre os séculos 14 e 19, em Portugal e no Brasil, Fachin explica que um filólogo serve para conhecer a história dos textos, dos autores, copistas e editores, bem como dos sentidos escondidos em suas entrelinhas, materialidades e formas de transmissão. “A escrita também tem uma história. E, para cada século, há certos modelos ensinados e padronizações. Ao pesquisar manuscritos, podemos saber a identidade de quem escreveu, em que circunstância e quem foi silenciado, por exemplo. Para um crítico, uma rasura é um pesadelo, mas, para mim, é uma beleza: ela revela um processo”, afirma Fachin, que também é autor do livro Descaminhos e Dificuldades: Leitura de Manuscritos do Século XVIII (Trilhas Urbanas, 2008). 

Manuscritos de Tom Jobim a Oscar Niemeyer, de Santos Dumont a Pelé, passando por Ayrton Senna, Ronaldo Nazário, Grande Otelo, Nelson Mandela, Martin Luther King Jr., Marie Curie, Simone de Beauvoir e outras figuras de relevância mundial estão na exposição A Magia do Manuscrito, em cartaz no Sesc Avenida Paulista [Leia mais em Letras do tempo]. O acervo foi organizado em seis categorias: Literatura, Artes Visuais, Música, Entretenimento e Esporte, Ciência e Filosofia, e História [Antiga e Moderna, considerando, desta, apenas o século 20]. O documento mais antigo da coleção é um pergaminho de pele de cabra escrito em latim, no ano de 1153, e assinado por um papa e quatro cardeais.  

Já os objetos mais recentes são uma fotografia autografada pelo ator Daniel Radcliffe vestido de Harry Potter (2003), uma foto assinada e uma carta-autógrafo da atriz Fernanda Montenegro (2018), além de uma imagem do cantor Caetano Veloso, de 1982, e um manuscrito-autógrafo com a letra da música Gravidade (1975), ambos assinados pelo artista baiano em 2022, quando completou 80 anos. 

Expostos lado a lado, os manuscritos também dialogam entre si. “Há uma conversa entre os autores [de diferentes épocas e correntes artísticas ou históricas]. Albert Einstein, por exemplo, criticava a teoria de Freud, e agora os dois estão dispostos em sequência”, destaca Fachin. 

DE HOBBY A PROFISSÃO

Dono de uma das maiores coleções particulares de manuscritos do mundo ocidental, o curador da exposição A Magia do Manuscrito, Pedro Corrêa do Lago, começou a compor seu acervo ainda na pré-adolescência, há mais de 50 anos. “Colecionar manuscritos é algo que enriquece muito a minha vida, com o qual aprendo e me divirto. A busca é incessante e, quando encontro algo que estava procurando há muito tempo, e vejo que posso pagar por isso, é maravilhoso. Levo para casa, estudo, leio livros sobre o assunto, coloco cada documento em seu contexto histórico”, conta o curador, que compilou parte de sua coleção no livro A Magia do Manuscrito (Taschen, 2021), e acaba de lançar Marcel Proust: Uma Vida de Cartas e Imagens (Éditions Gallimard, 2022), ainda sem tradução para o português.

Lago explica que a exposição que o Sesc realiza neste ano foi concebida, originalmente, para a mostra The Magic of Handwriting, inaugurada em Nova York (EUA), no verão de 2018. Mais de 85 mil visitantes viram de perto os 140 manuscritos dispostos em um mobiliário especial, projetado pelos cenógrafos Daniela Thomas e Felipe Tassara, que também veio para o Brasil. Por aqui, entraram outros manuscritos de nomes brasileiros como Tiradentes, Luiz Gama, Di Cavalcanti, Candido Portinari e Sebastião Salgado, além de artistas modernistas, escritores (Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Jorge Amado), músicos (Chiquinha Gonzaga, Gal Costa, Chico Buarque e Villa-Lobos), atores, atletas, políticos e outros. 

“Há cartas de amor, de ruptura, de condenação à morte, de perdão. Por trás desses papéis, existiu gente de carne e osso. São pedaços de vida que estão registrados e chegaram até as minhas mãos. Assim, é possível estabelecer um contato direto com alguém que já morreu, às vezes antes mesmo de nós nascermos, como se fosse uma fração do tempo daquela pessoa a que temos acesso, capaz de conectar gerações”, destaca Lago, que ainda sonha em conseguir uma carta, ou documento, do artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1909-1989).

MANUSCRITOS DO FUTURO

O colecionador Pedro Corrêa do Lago acredita que as próximas gerações vão escrever e pesquisar de outra forma, buscando na “nuvem” e-mails e documentos importantes, perdidos nos servidores. “Mas, um texto digitado não pode virar um manuscrito, porque pode ser reproduzido ao infinito. Já há escolas estadunidenses, inclusive, que não ensinam mais os alunos a escrever com letra cursiva: apenas letra de forma ou digitação no computador. As novas gerações escrevem cada vez menos, tanto que autógrafos e textos à mão assinados por Steve Jobs (1955-2011) [fundador da Apple], por exemplo, são raros. Porém, enquanto as pessoas escreverem, haverá manuscritos e haverá procura”, prevê.

Mesmo vivendo num mundo em que, cada vez mais, perde-se o hábito de manter um diário, de escrever cartões de aniversário ou bilhetes apaixonados, o filólogo e professor Phablo Fachin é otimista quanto ao futuro: “Meus filhos vivem conectados, porém o texto escrito para eles ainda é muito forte. Mandam recados para mim, desenham, deixam a sua marca, o seu registro, o seu legado. A criança se constrói pela escrita, antes mesmo da alfabetização. E nem por isso vamos negar a modernidade, as novas tecnologias, ou deixar de entender que tudo faz parte de um processo, e que cada dimensão e manifestação da linguagem têm as suas potencialidades”. Como diz o provérbio latino, verba volant, scripta manent, ou seja: “as palavras verbalizadas voam para longe, enquanto as escritas permanecem”. 

Letras do tempo 

Exposição em cartaz no Sesc Avenida Paulista reúne cerca de 180 manuscritos de grandes nomes da humanidade, percorrendo um arco temporal que materializa a história 

Por meio de fragmentos de histórias e memórias, cerca de 180 documentos da coleção do curador Pedro Corrêa do Lago são capazes de transmitir ao público do século 21 o poder do papel, da caneta e da escrita ao longo da história. Com visitação gratuita, a exposição A Magia do Manuscrito ocupa o quinto andar do Sesc Avenida Paulista até janeiro de 2023.

Segundo Juliana Braga de Mattos, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, essa exposição faz um arco histórico e social curioso, apresentando uma pequena parte da preciosa coleção de Lago. “Para além de seu valor documental histórico, esses manuscritos têm mesmo algo mágico: materializam um olhar possível por entre frestas no tempo, presentes no ânimo da caligrafia, na energia dos pensamentos expressos em cartas, no preservar cuidadoso, em meio a histórias individuais de nossas memórias coletivas”, explica.

Paralelamente à mostra, o Sesc Avenida Paulista também realiza, no sexto andar da unidade, uma série de atividades educativas, de oficinas a performances, a fim de ampliar o olhar do público sobre o tema e instigar outras possibilidades de interpretação. Os visitantes podem, ainda, fazer o próprio manuscrito na ação Escreva uma carta para, que teve início em 28 de setembro, quando a exposição foi inaugurada. Também é feito outro convite: as pessoas podem deixar um telegrama, lembrete, haicai, bilhete, poema, recado, carimbo ou texto datilografado à máquina – e endereçá-lo (ou não) a alguém. A exposição é realizada pelo Sesc São Paulo e Ministério do Turismo, com apoio cultural do Instituto Levy & Salomão.


SESC AVENIDA PAULISTA

A Magia do Manuscrito

Curadoria: Pedro Corrêa do Lago

Até 15/1/2023. Terça a sexta, das 10h às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. Grátis.

A EDIÇÃO DE DEZEMBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, discutimos como os cursos livres de EAD (educação a distância) democratizam o acesso ao conhecimento, aproximam especialistas em diversas áreas de alunos interessados em se capacitar em novos saberes, e com isso ampliam o repertório cultural. A reportagem principal de dezembro aproveita o crescente número de matriculados em espaços de educação a distância, principalmente depois da pandemia, para apresentar a plataforma EAD do Sesc São Paulo, onde estão disponíveis, gratuitamente, 13 cursos livres.

Além disso, a Revista E de dezembro/22 traz outros conteúdos: uma reportagem que mostra como manuscritos borram a fronteira entre documento e obra de arte, propondo um olhar possível por entre frestas do tempo; uma entrevista com o diretor Miguel Rubio Zapata sobre as convergências do teatro peruano com o Brasil e a defesa da criação coletiva como atitude, e não método; um depoimento com a atriz Julia Lemmertz sobre os 40 anos de carreira e a dedicação ao teatro; um passeio visual por imagens que celebram o legado do pensador utópico Darcy Ribeiro no ano em que ele faria um século de vida; um perfil do romancista Lima Barreto, morto há 100 anos e um dos mais brilhantes nomes da nossa literatura; um encontro com o canto sagrado da cantora Virgínia Rodrigues; um roteiro por cinco espaços culturais da capital paulista que mantêm lojas e livrarias abertas ao público; um conto inédito da escritora e poeta Eliane Potiguara; e dois artigos que refletem sobre a coragem.

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de DEZEMBRO/22 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.