Meu pedacinho de África

26/10/2023

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A ialorixá Mãe Wanda D’Oxum é homenageada pelos anos dedicados à preservação da cultura africana na exposição Festas, Sambas e Outros Carnavais

É numa casa simples, no Parque Peruche, que se encontra o terreiro de candomblé Ilè Ìyá Mí Òsún Mùíywá, conhecido como o mais antigo do bairro da Casa Verde. No salão, atabaques, uma poltrona de madeira para a líder espiritual da casa, cadeiras para os devotos, um vaso com lírios da paz, algumas poucas imagens nas paredes e espaço livre para ritualizar são os elementos que compõem o santuário. “Não é uma dessas casas suntuosas que existem hoje em dia, mas o que importa é o axé que acontece aqui“, afirma Mãe Wanda D’Oxum, enquanto bate no chão claro do salão.

Era início da década de 60 quando a benzedeira Isabel Maria da Conceição de Oliveira, também conhecida como Mãe Kateçu, se tornou ialorixá, ou mãe de santo, e transformou um cômodo de sua casa em terreiro. Depois de sua morte, a filha Wanda assumiu seu posto. Mas Wanda não parou por aí: pelas vivências da Casa Verde, descobriu o interesse pela política, o ativismo contra a intolerância religiosa e a forte relação com o samba, que a levou a fundar o Afoxé Omo Dadá, ou Filhos da Coroa de Dadá, que abre o carnaval paulistano desde os anos 80.

Seu legado para a região e a cidade é imenso, tanto que Mãe Wanda D’Oxum, hoje aos 75 anos, é uma das grandes homenageadas no abre alas da exposição Festas, Sambas e Outros Carnavais, que inaugura o Sesc Casa Verde. Às vésperas desse grande momento, Wanda nos recebeu em sua casa para uma conversa sobre sua história e visão de mundo.

Qual a sua relação com o bairro da Casa Verde?
Sou nascida e criada nesse chão, nesse pedacinho de África. Eu costumo dizer que eu sou paulistana mesmo porque nasci no Hospital São Paulo, entendeu? Desde que eu nasci, moro nessa mesma casa. E, assim, minha vida foi toda formada aqui. Fui criada num bairro de negros, e aprendi com as pessoas daqui a datilografar e costurar. Comecei como overloquista e a partir daí trabalhei muitos anos como costureira.

Isso foi antes ou depois de se tornar uma mãe de santo?
Ah, foi antes. Nessa época minha mãe era viva ainda, ela foi a primeira ialorixá dessa casa. Começou nos anos 50, uns dez anos depois de eu nascer, com mesa branca. Depois montou o terreiro de umbanda junto com a minha tia. Elas eram oito irmãs e todas eram espíritas. Foi em 1962 que a minha mãe conheceu o Seu João da Golmeia e nós fomos para o Rio de Janeiro, onde ela fez o santo com ele. Eu fiz em 1964.

E aí a senhora já sabia que seria a próxima ialorixá da casa?
Sabia. Eu sabia que ia continuar por ser consanguínea dela. Sou a caçulinha da família e acabei herdando essa casa, em 2002. Minha mãe faleceu em 2001 e um ano depois aconteceu a posse, quando meu pai de santo Waldomiro de Xangô me sentou como ialorixá dessa casa.

Nesses mais ou menos setenta anos de terreiro, como a vizinhança lidou com o fato de ter uma casa de candomblé no bairro?
Mamãe teve uma facilidade muito grande de se achegar à comunidade da Casa Verde e do Peruche porque era benzedeira. Ela benzia eczemas, fazia garrafadas para homens – vocês conhecem a garrafada, né? Ela sempre foi muito comunidade. Chegou uma época em que começou a fazer a festa de São Pedro, a quem sempre foi devota. Ela fazia a procissão aqui na rua, fazia fogueira, chamava os vizinhos todos para virem… Então desde a época que minha mãe esteve aqui até hoje, nunca tivemos problema com vizinhos. Sempre foi um contato harmonioso.

Mãe Wanda D’Oxum. Foto: Carla M Furtado

Nos anos 70, a senhora se aproximou do Movimento Negro Unificado e em 2018 se candidatou a Deputada Estadual, com uma campanha focada no combate à intolerância religiosa. Como o ímpeto de fazer parte da política partidária se desenvolveu na sua vida?
A vida religiosa te leva a muitas coisas, a muitas oportunidades. Eu participei do Movimento Negro Unificado porque eu queria entender aquilo tudo que acontecia e aconteceu com o negro. Foi ali que eu entendi que nós não nascemos escravos, nós fomos escravizados. Pra mim foi muito importante esse contato com o Movimento Negro. E, com isso, eu tive a oportunidade de trabalhar na Secretaria de Estado, quando fomos convidados a ir à África, em 1986. Fomos conhecer a nossa história de forma direta e foi maravilhoso. Aí, na volta, me chamavam pra fazer uma conversa aqui, uma palestra ali, até que em 2018 eu acabei saindo como candidata à deputada estadual.
Eu estava preocupada com o que estávamos passando na época, das agressões às casas de candomblé, pessoas quebrando o nosso sagrado. Então quando fui convidada pensei: “poxa, se eu sair candidata vou ter a oportunidade de ajudar a minha comunidade”. Mas não é tão fácil, porque é preciso ter dinheiro, apoio, mídia, que é o que nós não temos.

Depois dessa experiência, como a senhora pensa que é possível colaborar nessas causas sendo apenas cidadã?
Eu acabei chegando à conclusão que eu não preciso estar lá para brigar sobre isso, mas sim estar presente com quem já está lá. Aproveitar a oportunidade de sentar com políticos eleitos e pedir a ajuda deles. Eles têm a obrigação de nos ajudar, porque foram votados e colocados lá para cuidar do povo e nós, religiosos, não somos nada mais nada menos que povo também.

A senhora também fundou o Afoxé Ile Omo Dada, em 1980. É o único afoxé de São Paulo que mantém a tradição antiga com a corte, a comissão de frente e a charanga, aos moldes das grandes orquestras africanas. A ideia do Afoxé foi política, para ocupar esse espaço no carnaval paulistano, ou da vontade de festejar ao seu modo?
O afoxé surgiu muito sem pretensão de nada. O Carlão do Peruche, na época era presidente do Peruche, e eles vinham homenageando um orixá. Eu não me lembro bem porque eu era bem mocinha. Vieram chamar minha mãe para chamar os amigos dela para participarem, porque ele queria um grupo de pessoas religiosas dentro do Peruche. E a partir daí que nós começamos a fazer parte todo ano.
Em 1971, meu marido na época, Gilberto de Exu, que era muito estudioso, falou assim: “Por que vocês estão botando azeitona na empada dos outros? Isso que vocês fazem chama-se afoxé. Vamos montar um afoxé!”. Então nós fomos conversar sobre isso com meu falecido pai de santo, Waldomiro de Xangô, que era baiano. Por ser uma coisa religiosa, tinha de ter os nossos mais velhos participando e nos orientando do que a gente deveria fazer. Ele falou que ele já tinha até o nome para esse afoxé, que era de uma família que veio de Salvador para São Paulo: Os Filhos da Coroa de Dadá. E assim desfilamos em 1981 pela primeira vez, abrindo o carnaval de São Paulo.

Qual o papel do afoxé?
Nossa participação é cuidar de Exú, que é o dono do carnaval. Nós o agradamos, fazemos sacrifício a ele, o que não significa só derramar sangue, significa que trabalhamos o ano todo, juntamos dinheiro para dar comida a esse espírito que abre o nosso caminho, que é sempre o primeiro a ser homenageado em qualquer festa que se faz. Nós damos comida a ele ao meio-dia do sábado que desfilamos, depois umas cinco, seis horas, é rodado o padê aqui na rua, onde toda a comunidade dança pra ele, despachamos, aí entramos no ônibus e vamos para a avenida. Esse é o nosso papel.

O que significa exatamente um afoxé? Qual a diferença de um afoxé para uma outra celebração de carnaval?
Um afoxé é um símbolo religioso. Quando você fala “afoxé”, você já remete a uma coisa importante da religião, porque a gente não faz nada sem primeiro cuidar da parte religiosa.

É possível dizer que é a união do profano com o sagrado?
Sim, porque é um candomblé de rua. Nós saímos de dentro da casa religiosa e levamos nosso profano para a rua.

Como está se sentindo em ser uma das homenageadas da exposição Festas, Sambas e Outros Carnavais?
Eu fui convidada pelo Tadeu Kaçula, nosso escritor, sociólogo, uma pessoa maravilhosa que tem ajudado bastante a nos colocar no lugar em que merecemos. Com todo esse tempo que eu estou fazendo alguma coisa pela minha religião, pela minha cultura, eu estou super emocionada, só de falar eu já fico muito emocionada. Imagine você entrar em um lugar onde vai ter muita gente que vai passar por lá e conhecer a sua história e a de um grupo de pessoas que faz parte de um quilombo que se chama Peruche e Casa Verde! Para mim isso é muito importante. Eu quero agradecer desde já por vocês abrirem a porta para a nossa história, muito obrigada.


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