MUSA MEDUSA | Entrevista com Adriana Calcanhotto

30/09/2022

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Leia a edição de outubro/22 da Revista E na íntegra

COMPOSITORA, CANTORA, ESCRITORA E PROFESSORA FAZ DA MÚSICA UM ESPELHO DO QUE ENCANTA E ESPANTA O SER HUMANO

A musa não se Medusa / contra o caos faz música. Vestida com os versos do poeta Haroldo de Campos (1929-2003), declamados na introdução de Ninguém na rua, faixa do álbum (2020), Adriana Calcanhotto respondeu à pandemia. Circunscrita num contingente crítico, transformou angústias e desejos em canções enquanto esteve isolada. Também foi de casa que se apresentou em lives, uma delas transmitida, há dois anos, na programação #EmCasaComSesc, disponível no canal do Sesc São Paulo no YouTube.

Se nesse período teve apenas o computador e a televisão como janelas para o mundo, hoje a cantora e compositora gaúcha descortina outras paisagens em turnês dentro e fora do Brasil. Ao longo de mais de três décadas de carreira, a autora de diversos livros, como Saga Lusa – O relato de uma viagem (Cobogó, 2008), e de canções gravadas por grandes nomes da música brasileira, a exemplo de Maria Bethânia e Marisa Monte, ainda é embaixadora da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde fez residência artística e lecionou o curso Como escrever canções. “Eu fui muito mais desafiada do que imaginava com perguntas e provocações. E isso foi muito rico”, contou à Revista E, nos bastidores do show realizado no teatro do Sesc Belenzinho, em agosto passado.

Durante esta Entrevista, Adriana Calcanhotto, que neste mês celebra 57 anos, fala mais sobre essa troca com o país de Fernando Pessoa (1888-1935), compartilha reflexões acerca do legado da Semana de Arte Moderna, e ainda dedilha pistas de seu processo criativo.

Assista a trechos desta entrevista em vídeo

No primeiro mês da pandemia, você criou o álbum (2020). Como foi esse processo de composição em sua casa, com parceiros à distância? Melodia e letra foram criadas ao mesmo tempo no seu processo criativo?

A maioria das canções em que fiz letra e música veio de voz e violão. Só que eu também tenho uma
limitação: não sou musicista. Então, é dentro de uma linha de “não privilégio” que eu faço minhas músicas com três, quatro acordes, e a ideia é essa mesma. Mas, às vezes, como na pandemia, quando eu acordava com essa urgência de fazer canções, se eu ficasse apenas no violão, não faria uma canção por dia durante dez dias. Então, fui atrás de bases prontas e disponíveis na internet, além dos três ou quatro acordes que compunha.

Isso foi, inclusive, uma das coisas que trabalhei para falar com os alunos [da Universidade de Coimbra]. Eles têm um pouco aquilo de: “Eu preciso tocar um instrumento para ser um compositor”. Bom, é melhor que você toque até mais de um instrumento, mas isso não é imprescindível. Quantos sambistas fizeram sambas antológicos na cabeça, não precisaram nem da caixinha de fósforo? Eu gosto de desmistificar essa coisa do instrumento e da composição.

Então, talvez por isso, eu tenha feito sem as minhas harmonias, sem os meus velhos conhecidos caminhos no violão. Eu ficava procurando batidas na internet, botava umas cinco ou seis por dia até vir uma que eu achava mais natural. A melodia vem já com uma ideia de divisão do que a frase está dizendo. Não tem isso de: “Ah, essa letra poderia ser um funk”, ou “Isso poderia ser um samba”. A frase, ou seja, isso que eu estou dizendo agora, já vem dentro de uma levada. É difícil de explicar. Cada canção inaugura a si própria. Ou seja, cada canção vai pedir o que ela quer pedir.

A canção Esquadros, de 1992, foi bastante reproduzida na pandemia como se pudesse sintetizar o momento que atravessamos: “Pela janela do carro, pela tela, pela janela / quem é ela, quem é ela / eu vejo tudo enquadrado / remoto controle.” Curiosamente, você volta a falar de janela em “O que temos”, no álbum Só, de 2020. Hoje, o que você vê pela janela?

A janela de “O que temos” era a minha janela para o mundo – eu, que moro no mato –, era a televisão e a internet para saber que pandemia é essa, e o que está acontecendo com o mundo. Agora, a janela que eu vivo hoje é a janela de “Esquadros”: a janela da turnê, do carro, do hotel, do aeroporto, do teatro. Tudo igual, só que nunca igual. Tudo igual, só que nunca a mesma coisa. Mas, as janelas da pandemia eram aquelas janelas das pessoas cantando nas sacadas, aquela coisa bem italiana das pessoas cantando ópera nos balcões. E ao mesmo tempo, a janela dos panelaços.

Adriana Calcanhotto é a entrevistada da Revista E, em outubro de 2022. Foto: Adriana Vichi.

A CANÇÃO TRABALHA O TEMPO TODO COM UMA TENTATIVA VÃ DE APREENSÃO DO TEMPO

Adriana Calcanhotto

Você já deu um depoimento dizendo que aos 15 anos ganhou um livro do Oswald de Andrade e, desde então, mergulhou no modernismo brasileiro. Também disse que esse movimento artístico influenciou sua escolha pela música. De que forma?

A minha escolha pela música veio porque eu sempre tive muita música na minha formação, na minha vida. Sou filha de músico e de bailarina, ou seja, a música sempre esteve em casa. Mas, o interesse e a vontade de fazer música, de dedicar minha vida à música, veio quando comecei a sacar as letras. Quando comecei a ouvir Vinícius de Moraes, Cecília Meireles musicada por Fagner, Ferreira Gullar musicado por Fagner… Foi a poesia que me levou para a música mais do que a própria música.

E o modernismo está muito ligado a essa escolha, sempre esteve. Eu conhecia canções [do movimento tropicalista] e algumas obras que foram muito influenciadas pelo modernismo, mas eu não sabia ainda direito o que era o modernismo. Eu não tinha entrado em contato direto com aquilo, e quando entrei em contato, fiquei totalmente maravilhada.

Neste ano de debates e de outras programações voltadas ao centenário da Semana de Arte Moderna, o que ficou de legado para os artistas de hoje?

Na verdade, a Semana é um emblema. Muitas coisas do modernismo só vieram a acontecer depois, tanto que nela não estava Tarsila do Amaral, por exemplo. Mas, em compensação, antes da Semana já estavam acontecendo coisas com Villa-Lobos, com Anita Malfatti. Eu acho que o legado é o das ideias modernas que vão evoluindo e se atualizando. Elas ficam revelando o Brasil a nós mesmos.

Então, a Semana de 1922 é algo para a gente devorar, como eu tenho dito. Aí, eu acho que um trabalho como o de Denilson Baniwa [premiado artista e curador indígena nascido em 1984, que questiona em suas obras um imaginário do que é “ser indígena”] é a apoteose de tudo o que o modernismo estava querendo propor, revelar ou construir. Parece que agora dá para conversar, ou seja, dá para haver uma conversa de todo mundo. Por isso, eu acho que foi muito importante que ela tenha acontecido.

Hoje a gente está aqui pensando a respeito, cem anos depois, e algumas pessoas ainda discutem se a Semana de 1922 poderia não ter existido. Eu acho que deveria ter existido porque muitas coisas importantes nas artes não aconteceriam se não fosse assim. Também não dá para fazer um julgamento com revisão histórica, porque não tem cabimento. Eu acho que, como saldo, a Semana de Arte Moderna foi importantíssima.

Sobre seu momento em Portugal, como residente e professora da Universidade de Coimbra, como foi “devorar” Portugal ou “ser devorada” por Portugal?

Eu gosto mais de ser devorada por Portugal, porque devorar Portugal não posso dizer que tenha conseguido. A primeira vez que fui a Portugal, lembro que as pessoas diziam: “Ah, você vai ver como certas fichas vão cair. Certas coisas que você olhar na rua vai reconhecer o Brasil, a nossa identidade”. E, de fato, isso aconteceu. Mas essa é uma primeira leitura, que tem muito a ver com a arquitetura, com espécies da vegetação…Isso é uma primeira camada.

Depois, a coisa só “piora”, como diria Fernanda Montenegro (risos), porque vai ficando muito mais
complexo, e aí o desafio começa a ficar muito interessante. A minha porta de entrada para Portugal foi a poesia, justamente os poetas, tanto contemporâneos, quanto os não contemporâneos. E eles foram chegando para mim todos ao mesmo tempo. Então, eu não fiz um reconhecimento dos poetas portugueses a partir de uma visão cronológica e histórica. Não. Eu fui conhecendo tudo ao mesmo tempo e isso foi bem interessante.

Quando você morou em Portugal, sua poesia mudou junto com seu olhar sobre o país?

Eu não cheguei a morar, e não gosto de dizer que morei em Portugal, porque eu ia para Coimbra, dava aulas, e voltava para cá. Então, não tenho essa experiência de ter morado fora. Mas, fiquei alguns períodos fora. Como também fico na estrada, que é a minha vida – e eu gosto muito, eu não me senti morando em Coimbra porque nunca desejei morar fora do Brasil. Até hoje, não tive esse desejo.

Mas, fiquei longos períodos de tempo por lá trabalhando com composição musical e vi coisas que eu não sabia. Por exemplo, todos os nomes maravilhosos do fado em Portugal ouviram e são formados em Tom Jobim, Vinicius de Moraes… Em harmonias que não se usam no fado, mas todos conhecem e têm uma cultura da música brasileira impressionante. Então, descobri umas coisas assim. E estando em Coimbra, você vai refazendo caminhos, fisicamente e literalmente, pelos corredores, escadas, salas por onde passaram pessoas importantes que pensaram o Brasil desde Coimbra, há muito tempo, como os inconfidentes [protagonistas da Inconfidência Mineira, rebelião contra o domínio colonial português, no século 18]. Muitas ideias a respeito do Brasil, do que poderia vir a ser o Brasil, nasceram lá.

Adriana Calcanhotto é a entrevistada da Revista E, em outubro de 2022. Foto: Adriana Vichi.

(…) O SAMBA É O DENOMINADOR COMUM
O SURDO UM NA MULTIDÃO
A BATIDA ENSURDECEDORA DOS SILENCIADOS
ABAPORU COM DENDÊ
CHUPAR A GELEIA GERAL DOS DEDOS
TRAZER ENTRE OS DENTES UMA FACA SÓ LÂMINA
(OLHA QUE A MUSA NOS CORTA A LÍNGUA)
MASCAR AS MÁSCARAS
A CABEÇA DE MÁRIO DE ANDRADE NUMA CESTA INDÍGENA
TORRESMO DE OSWALD
SOBRE
MESAS
NESTA MANIFESTA.

Trecho de poema-manifesto escrito por Adriana Calcanhotto, que dialoga com a Semana de Arte Moderna, para o jornal Folha de S. Paulo, publicado em 22 de fevereiro de 2022.

E como foi a experiência de lecionar o curso Como escrever canções?

Essa troca foi muito mais do que eu podia imaginar. Eu nunca tinha dado aulas, nunca tinha pensado nisso, embora venha de uma família de professores – mesmo os que são músicos. Eu não achava que dar aulas fosse para mim. Eu entendi que, para isso, você precisava estudar muito. Aliás, essa é a parte boa.

Teve muita troca (com os alunos) no sentido de que fui muito mais desafiada do que eu imaginava, com perguntas e provocações. E isso foi muito rico. Também mexeu com muitas coisas a respeito do meu processo de composição, coisas que as pessoas querem saber, que a imprensa pergunta, porque todo mundo quer saber do ato criativo, desse momento em que a canção nasce, mas a gente não tem controle. Na verdade, por mais que você queira se aproximar desse instante, você já o perdeu, ele já foi. Mas, eu tento me aproximar desse momento ao máximo para poder responder às perguntas que os alunos me fazem.

Então, foi no disco que eu fiz na pandemia (, 2020) que prestei atenção nisso, porque antes eu estava viajando para dar aulas em Coimbra mas, com as restrições, não fui. Aí, eu acabei fazendo um disco de crônicas do que vinha acontecendo durante a pandemia, mas com um cuidado, com uma consciência de tudo que eu estava fazendo, algo que não costumo ter. E eu falo muito para eles [os alunos] que [o processo de criação das canções] não é o momento de censurar ideias – “Ah, mas isso é bobo”; “Isso já foi feito” etc. Não. Eu digo: deixa vir. O momento de “censurar” é depois.

Então, essas [canções do álbum Só] eu fiz assim: botava a hora, mais ou menos, em que ela estava sendo inaugurada, e tinha uma consciência, por exemplo, de que essa parte aqui seria o refrão, ou, isso aqui eu vou botar para lá. Era uma consciência como se eu tivesse que contar para eles, depois, como é que aquilo tinha sido armado. Coisa que eu não fazia antes, porque tinha até um medo de me dividir na hora de fazer a canção. Bom, ou eu estou fazendo a canção, ou estou reportando o ato de fazer a canção, né? Mas, isso foi bom, e foi o resultado de dar essas aulas, porque eu vi que dá para fazer as duas coisas: fazer a canção e prestar atenção no que estou fazendo.

Nesse curso na Universidade de Coimbra, além de falar sobre esse processo de nascimento da canção, você falou sobre as origens da canção até os dias de hoje. O que mudou ou como é a canção contemporânea?

Eu não acho que vem mudando muita coisa no sentido que a canção é um resultado da junção da música com a poesia. Na Grécia, as canções existiam para poder veicular o poema. Se você decora um poema sem música, você decora com mais dificuldade. Por isso, nas aulas eu dava os exemplos dos jingles. Tem também os professores de cursinho pré-vestibular que colocam melodias em fórmulas de física, de química, de matemática, e você guarda aquilo.

Esse é o intuito da canção quando ela começa na Grécia. Até hoje, ela é mais ou menos isso. Ela cumpre os requisitos da repetição, para que aquilo fique fácil, para que você guarde, para que você transmita. Nesse sentido, a canção trabalha o tempo todo com uma tentativa vã de apreensão do tempo. Mas, ela também serve para transmitir palavras, além de ter um papel político, como toda coisa que se cria.

Em maio deste ano, você representou a Universidade de Coimbra, como embaixadora, na Semana da Lusofonia realizada no Consulado Geral de Portugal, na capital fluminense. O que você pensa sobre a plasticidade e o futuro da língua portuguesa?

A língua portuguesa nasce antes de Portugal. Às vezes, a gente pesa a mão nessa coisa de Portugal em relação à língua. Eu acho que nós falamos uma língua portuguesa que tem palavras indígenas de várias línguas, palavras africanas de várias etnias, de vários lugares, com vários sentidos. A língua portuguesa é esponjosa e muito plástica porque ela se adapta. Eu acho que a gente tem o privilégio enorme de falar essa língua portuguesa de hoje – os portugueses que estudam a língua portuguesa do tempo de Dom Diniz, por exemplo, dizem que aqui, no Brasil, a gente fala este português que dá as vogais ainda [dar vogais no sentido de prolongar a entonação das vogais], porque é um português arcaico.

A gente se orgulha de dar as vogais, mas é porque a gente fala a língua portuguesa há muito menos tempo. E a gente tem palavras incríveis e palavras inventadas, o que é muito a dinâmica da língua portuguesa. E por todas as línguas urbanas, pelas gírias, ela é incrível. É a pergunta do Caetano [Veloso]: O que quer e o que pode essa língua? Eu acho um privilégio ter a língua portuguesa como língua mãe.

Assista a trechos da Entrevista com a cantora Adriana Calcanhotto:

Adriana Calcanhotto na edição de outubro/22 da Revista E. Entrevista: Maria Julia Lledó. Captação e edição de vídeo: Guilherme Barreto.

A EDIÇÃO DE OUTUBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, celebramos as ações solidárias organizadas pela sociedade civil para o combate à fome no país. Na reportagem “Alimentar a mudança”, divulgamos dados alarmantes sobre o cenário de insegurança alimentar no Brasil e indicamos iniciativas e projetos transformadores para enfrentar essa situação, como o Organicamente Rango, a Gastronomia Periférica e o Experimenta!

Além disso, a Revista E de outubro traz outros destaques: uma reportagem que destaca a força do jazz enquanto música afrodiaspórica, diversa e combativa; uma entrevista sobre música, literatura e sociedade com Adriana Calcanhotto; um depoimento de Cassio Scapin sobre a força da comédia e o despertar dos musicais brasileiros; um passeio visual pelas obras da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros; um perfil de Dias Gomes (1922-1999), nome primordial da dramaturgia brasileira; um encontro com o coordenador da Agência Lupa Chico Marés, que fala sobre checagem de informações; um roteiro por 6 espaços que propõem atividades artísticas para aguçar a sensibilidade das crianças, em outubro; poemas inéditos do escritor Paulo Scott; e dois artigos que destacam a importância da educação midiática para o combate à desinformação.

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