O cinema como um campo de batalha

29/03/2023

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Por Duda Leite

Não deve ser nada fácil ser filho de um grande cineasta e escolher seguir pelo mesmo caminho profissional. No caso da diretora Samantha Fuller, filha do grande Samuel Fuller, o desafio foi ainda maior. Em sua estreia na direção, o documentário A Fuller Life, que retorna agora ao Sesc Digital, Samantha teve que dirigir cineastas e atores consagrados como William Friedkin, Wim Wenders, Monte Hellman, James Franco, Jennifer Beals e Constance Towers, entre outros. Baseado na autobiografia A Third Face, de Samuel, A Fuller Life não é um documentário tradicional. Em vez de ser entrevistados, os convidados interpretam trechos do livro, divididos por temas como jornalismo, guerra e cinema.

Conheci Samantha Fuller em 2013, durante sua passagem pela Mostra de Cinema de São Paulo. Na época, a cineasta veio à cidade lançar A Fuller Life. Samantha nasceu em 1975, em Los Angeles. Samuel Fuller já estava com 63 anos, portanto ambos sabiam que teriam um tempo limitado juntos. A mãe de Samantha é a atriz e produtora alemã Christa Lang. Samantha estreou nas telas dirigida por seu pai no filme “Agonia e Glória” (The Big Red One), em 1980, mas sua participação acabou ficando de fora do corte final. Em 1982, fez sua estreia oficial no manifesto antirracista “Cão Branco” (White Dog), novamente dirigida por seu pai.

Samuel Fuller é considerado um dos pais do cinema independente. Nasceu em 12 de agosto de 1912, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. Passou pela Grande Depressão em Nova York, nos anos 1930, lutou na Segunda Guerra Mundial como soldado do exército norte-americano e foi repórter policial no New York Evening Graphic, cuja dona era Rhea Gore Huston, esposa de Walter Huston e mãe do futuro cineasta John Huston. Fuller escreveu e dirigiu seu primeiro filme “Eu Matei Jesse James” (I Shot Jesse James) em 1949. Adorado pelos cineastas da Nouvelle Vague, fez uma participação no clássico “O Demônio das Onze Horas” (Pierrot le Fou) (1965) de Jean-Luc Godard. O personagem de Jean-Paul Belmondo vai até ele em uma festa em Paris e pergunta: “o que é o cinema exatamente?” e Fuller responde: “Um filme é um campo de batalha. É amor, ódio, ação, violência, morte. Em uma palavra: emoção.”

A cineasta Samantha Fuller recebeu o repórter via Zoom, direto do antigo escritório de seu pai, montado na garagem de sua casa, nas colinas de Los Angeles. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

DUDA LEITE – Você pode descrever o lugar onde você está agora?

SAMANTHA FULLER – Estou na garagem onde fica o escritório do meu pai. Essa é sua máquina de escrever, esse era seu capacete. Meu filme A Fuller Life foi inteiramente filmado aqui nesse lugar.

DUDA – Qual foi a origem do projeto A Fuller Life? Me lembro que você encontrou alguns filmes caseiros inéditos de Samuel.

SAMANTHA – Embaixo dessa mesma escrivaninha! Meu pai era um colecionador. Tinha uma grande coleção de memorabilia. Uma parte da história do cinema está aqui. Foi bem interessante voltar aqui após a sua morte. Sentar nessa cadeira é como entrar na sua mente. E descobrir onde ele buscava suas fontes de inspiração. Todos os livros da sua biblioteca têm anotações feitas por ele. A cada gaveta há muito a ser descoberto sobre sua vida e seus filmes. Ele ainda está vivo nesse escritório. Para dizer a verdade, cada vez que entro aqui, eu digo “olá” para ele. Ele está presente. Eu provavelmente estou sentada no seu colo. É uma ótima maneira de mantê-lo vivo, no sentido físico. Porque, em espírito, ele estará sempre vivo através dos seus filmes. Toda sua obra está aqui. Eu sou filha única, ele me teve bem tarde, portanto é um presente maravilhoso poder passar um tempo com ele aqui. Basicamente, é uma garagem convertida em escritório. Passei muito tempo aqui depois que ele morreu. Quando ele era vivo, nunca me atrevia vir aqui. Passamos um período vivendo na França, então ele deixou seu escritório por aqui intacto. Sempre o ajudava a organizar suas coisas, eu era sua assistente. Mas nunca escrevemos nada juntos. Eu apenas organizava as coisas. Ele tinha essas pastas cheias de ideias escritas para filmes, além de recortes de jornal, com temas que interessavam a ele. Ele tinha a mente de um repórter. E ele viveu antes da era da internet, então tudo era manual. É um escritório analógico, o que é incrível. Temos recortes de jornais datando desde os anos 1930! E todos os seus roteiros estão aqui. Ele tinha 63 anos quando eu nasci, portanto sempre soubemos que nosso tempo junto seria limitado. Ele costumava dizer que viveria até os 100 anos, e que faríamos uma grande festa. Então, ele completou 80, 81. Organizamos festas. Infelizmente ele faleceu aos 85 anos. Em 2012 ele completaria 100 anos. Eu pensei: “precisamos celebrar seu centenário”. Ele havia escrito sua biografia chamada “A Third Face”, publicada nos Estados Unidos, França e Japão. O livro cobre quase toda a história do século XX. Começa em 1912, quando ele nasceu em Nova York. Vai até a Grande Depressão, e toda a cena dos bares speakeasies de Nova York. Quando criança, aos 6 anos, ele acompanhou a Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, lutou na Segunda Guerra. Esse homem teve uma vida extraordinária.

DUDA – E você usou a biografia como referência para seu filme, certo?

SAMANTHA – Sim, palavra por palavra. O livro teria originalmente 2000 páginas, que foram editadas para 600. Eu destaquei algumas passagens e as transformei no roteiro que seus amigos e colabores leem no filme. Transformei o livro em um roteiro de 80 páginas. Criei uma estrutura dividia em três partes: jornalismo, suas experiências na Guerra, e o cinema. O livro só foi lançado após sua morte, em 2004. Pensei que daria um ótimo audiobook, mas ele não estava mais entre nós para gravar suas histórias. Ele tinha uma forma muito peculiar de falar. Foi então que pensei em fazer o documentário.

DUDA – Como foi realizar o filme inteiro dentro do escritório dele?

SAMANTHA – Foi muito complexo. Tive que ser criativa. O filme precisava ter movimento. Coloquei Jennifer Beals caminhando por aqui. Tive que pensar em vários ângulos diferentes. Meu pai me ensinou uma coisa importante: “o público pode amar ou odiar seus filmes, mas você não deve nunca entediá-lo”. Eu precisava entreter meu público. Seria fácil fazer um filme de 10 horas sobre sua vida. Na verdade, se tivesse mais tempo, estaria preparando uma minissérie sobre sua vida. É um dos projetos aos quais pretendo me dedicar.

DUDA – Vamos falar sobre o elenco. Você conseguiu juntar um grupo impressionante de talentos para seu filme: Jennifer Beals, James Franco, Wim Wenders, Constance Towers… Como você reuniu todas essas pessoas?

SAMANTHA – Bom, para começar, esse não é um documentário tradicional. As pessoas envolvidas não foram entrevistadas, elas estão lendo trechos da biografia do meu pai. Conforme escrevia o roteiro fui pensando em algumas pessoas diferentes. É claro que pensei em Wim Wenders para ler os trechos sobre a Alemanha e Marlene Dietrich. Monte Hellman estava conosco quando fomos ao Festival de Karlovy Vary, na República Tcheca. Visitamos as locações onde ficava o campo de concentração que meu pai filmou a libertação. Então, pensei nele para a parte dos campos. Para a fase final da vida do meu pai, pensei em William Friedkin, que tem uma carreira muito longa. Portanto, fui pensando em pessoas diferentes que tinham ligação com a vida e obra do meu pai.

DUDA – Como surgiu a ideia de chamar Jennifer Beals?

SAMANTHA – A princípio, eu só havia pensado em homens. Levei a lista para minha mãe, Christa, e ela deu uma olhada e me disse: “mas essa lista só tem homens! Seu pai era um diretor de mulheres. Veja Barbara Stanwick. Ele dirigiu todas essas mulheres fortes. Ele conseguia contar histórias sob o ponto de vista feminino”. Então pensei em Jennifer Beals e Constance Towers. Jennifer Beals fez um filme dirigido pelo meu pai chamado “The Madonna and The Dragon” (1990). Jennifer faz uma repórter, o filme se passa nas Filipinas. Meu pai faz seu editor. Portanto, ela foi perfeita para a parte quando meu pai foi repórter criminal. Cada pessoa tem um motivo para estar ali, nada foi aleatório.

DUDA – Constance Towers está inesquecível em “Beijo Amargo” (The Naked Kiss) (1964). Como foi dirigi-la?

SAMANTHA – Nós todos ficamos muito próximos. Constance Towers está em ótima forma, como dá para ver. Ela foi tão profissional que nem precisou olhar no espelho para passar seu batom. Perguntei se ela precisava de um maquiador e ela disse que não. Estava fabulosa. Aprendi muito crescendo com meu pai, em termos de como fazer um filme. E lá estava eu fazendo meu primeiro filme, justamente um documentário sobre ele. Dirigindo atores e diretores consagrados. Existe atuação no meu filme, não é exatamente um documentário. Eu queria que eles incorporassem meu pai, sem soar falso. A primeira pessoa que filmei foi Bill Duke. Ele sentou nessa cadeira e fez uma imitação perfeita do meu pai, com aquela forma única que ele tinha de falar. Foi incrível, mas pensei que se todos fizessem dessa forma, o filme ficaria louco demais. Foi ai que encontrei o tom. Expliquei que eles não tinham que imitá-lo, nem precisavam decorar o texto. Eu imprimi o texto para eles. Eles podiam até mesmo ler diretamente do livro, já que não estariam na frente da câmera o tempo todo. Eu tinha muito material de arquivo para cobrir as leituras. A única pessoa que nunca havia trabalhado com meu pai foi James Franco. Mas precisávamos de alguém mais jovem para falar sobre seus dias de juventude. E James Franco fala sobre ser ambicioso e disponível para tentar de tudo. E ele é de fato assim. É um artista que faz muitas coisas diferentes. James é um grande admirador do meu pai. E havia uma outra conexão: o primeiro papel de Franco foi numa cinebiografia de James Dean, onde ele fazia o próprio. E meu pai foi o primeiro a descobrir Dean, no filme “Baionetas Caladas” (Fixed Bayonets!) (1951), antes mesmo de Nicholas Ray. Foi a primeira vez que Dean apareceu nas telas. Meu pai costumava dizer: “esse garoto é bem interessante”. Ele disse isso para Nicholas Ray, que em seguida o convidou para estrelar “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause) (1955). Portanto, havia essa conexão.

DUDA – Seu pai era uma figura icônica na história do cinema. Como você vê sua influência?

SAMANTHA – Sim, Samuel Fuller era meu pai, mas eu o considero também uma figura paterna do cinema. Ele inspirou tantos cineastas, como Jim Jarmusch, Martin Scorsese, entre muitos outros. Vários diretores reverenciam seu trabalho. E ele fez filmes de diferentes gêneros: westerns, film noir, apesar de nunca ter dirigido uma comédia, seus filmes sempre tinham humor. Eu considero que ele foi um dos maiores diretores da história do cinema. E ele trabalhava com orçamentos minúsculos, com escalas bem apertadas. Mesmo assim, conseguia fazer ótimos filmes. Ele foi uma grande inspiração para mim. Ele não precisava de estrelas.

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A FULLER LIFE
Dir.: Samantha Fuller | EUA | 2013 | 80 min | Documentário | 14 anos

A Fuller Life celebra o espírito independente de um verdadeiro rebelde norte-americano, cuja obra única inovou no jornalismo, na produção de filmes, na narração de histórias e até no serviço ao seu país. A história nos leva pelos destaques da vida não convencional e aventureira de Samuel Fuller, abrangendo um século de história americana, a rica história de um grande homem, uma canção de amor à democracia e um hino à independência, originalidade e resistência!

Assista gratuitamente em sescsp.org.br/cinemaemcasa

Disponível até 23.09.2023

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