Lorna Tucker: “Quem nunca pensou que sua vida daria um filme?”

08/12/2022

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Lorna Tucker, a incrível jornada da ex-modelo que morou nas ruas de Londres, aprendeu a fazer cinema na marra e se tornou uma diretora premiada

Por Duda Leite

Quem nunca pensou que sua vida daria um filme? A diretora inglesa Lorna Tucker certamente foi uma delas. Só que, no caso dela, isso se concretizou. Lorna nasceu em Hertfordshire, uma pequena cidade ao sul da Inglaterra. Teve uma juventude marcada por uma série de dificuldades, sendo uma delas o fato de que sofria de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), o que atrasou seu aprendizado.

Ainda adolescente, Lorna tornou-se dependente de heroína e passou um período vivendo nas ruas do Soho (bairro boêmio londrino). Conseguiu um emprego em um Pub local, onde conheceu alguns músicos emergentes e começou a fotografá-los. As bandas gostaram tanto das suas fotos que, um belo dia, um músico a convidou para documentar a turnê deles. Lorna não sabia nada sobre vídeo, mas conseguiu emprestado uma câmera com um amigo, passou alguns dias lendo todos os manuais e livros técnicos disponíveis sobre como operá-la, e partiu para sua primeira experiência como documentarista. Em 2023, Lorna lançará sua estreia na ficção, o filme “Someone’s Daughter, Someone’s Son”, baseado justamente na sua experiência pessoal como moradora de rua. Entre seus próximos projetos, estão um documentário sobre a atriz Katharine Hepburn e um thriller feminista chamado “Kill Em All” (“Mate Todos Eles”, em tradução livre).

No período em que trabalhou como modelo, Lorna participou de um desfile da estilista Vivienne Westwood, uma das figuras mais icônicas da Inglaterra, conhecida por ter criado a estética do movimento Punk no final dos anos 1970. Na ocasião, Westwood disse a Lorna que ela tinha belos olhos. Mal sabiam as duas que, anos mais tarde, se reencontrariam através de um amigo em comum e esse encontro resultaria no documentário “Westwood: Punk, Icon, Activist”, disponível agora pelo #CinemaEmCasa da plataforma Sesc Digital. A energia criativa e o entusiasmo de Lorna são contagiantes.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a diretora Lorna Tucker, feita via Zoom de seu apartamento em Londres.

DUDA LEITE – Como surgiu seu interesse pelo cinema?

LORNA TUCKER – Foi uma jornada bem curiosa. Sempre achei que os filmes eram uma boa maneira de processar minhas emoções. Filmes são uma ótima maneira de contar histórias. Sempre fui obcecada por cinema desde muito jovem. Quando era mais jovem, tinha muita dificuldade em aprender, porém quando assistia a filmes, absorvia tudo com muita rapidez. Eu era uma criança bastante visual. Passei por um período em que vivi nas ruas e fiquei viciada em heroína, isso atrapalhou bastante minha formação. Quando comecei minha vida adulta, já estava com 20 anos e era mãe solteira. Nasci em uma cidade muito pequena no interior da Inglaterra,  onde ninguém imaginava que mulheres pudessem ser artistas. Simplesmente não havia essa possibilidade. Comecei minha carreira como modelo aos 21 anos, não era o trabalho dos sonhos, mas me permitiu conhecer lugares como Nova York, França e Itália. Acabei conhecendo mulheres que trabalhavam como fotógrafas, cineastas e jornalistas, e minha vida começou a mudar. Comecei a escrever, queria ser poeta, mas logo vi que aquele não era o meu caminho. A vida de modelo me aproximou novamente das drogas, e aos 26 anos estava de volta a uma clínica de reabilitação. Quando deixei a clínica, arrumei um emprego em um Pub. Do outro lado da rua, havia um estúdio de música. Acabei ficando amiga dos músicos e um deles me chamou para fotografá-los no estúdio. Eles gostaram das minhas fotos e um dia, um deles me perguntou se eu não queria documentar uma turnê que eles fariam. Eu disse que sim, claro, mas não tinha câmera nem sabia operar uma. Acabei conseguindo uma câmera emprestada, e li todos os livros técnicos que consegui. Essa foi minha primeira experiência com imagens em movimento. Deu certo, eles gostaram, e acabei dirigindo vários videoclipes para essas bandas. Resumindo, foi minha cara de pau que me levou para o cinema.

DUDA – Quem eram essas bandas? Quem mais te ajudou nessa época?

LORNA – Um deles foi o ator Rhys Ifans, que tinha uma banda na época. Mas, eu ainda estava aprendendo e os videoclipes que dirigi nesse período eram péssimos. Minhas primeiras grandes oportunidades surgiram quando conheci Josh Homme, vocalista da banda Queens of Stone Age e Ian Astbury, líder do The Cult. Ian me deu um livro chamado “Conquest”, sobre o genocídio dos indígenas norte-americanos e a luta das mulheres indígenas por seus direitos reprodutivos. Eu não sabia nada sobre o tema mas Ian achou que aquela história daria um bom documentário e que eu era a pessoa certa para dirigi-lo. Acabei pesquisando mais sobre o tema, fiquei fascinada por aquelas mulheres, e o resultado foi o documentário, “Amá” (2018). Já Josh me contou que iria gravar uma canção de RAP com a participação de Vivienne Westwood e me convidou para registrar a gravação. Eu não sabia nada sobre ela, a não ser que era uma figura excêntrica e um pouco louca. Só quando vi Vivienne no estúdio, me lembrei que já havia participado de um desfile dela. Me lembrei que havia roubado um perfume dela nesse dia. Fiquei bastante nervosa com isso (risos). Apesar disso nosso encontro foi incrível. Nos intervalos da gravação, ela veio conversar comigo e me perguntou o que eu fazia. Contei sobre o projeto do “Amá”, e ela se interessou pelo tema. Contei que era mãe solteira e esse foi um outro ponto de identificação. Vivienne também havia passado pela mesma experiência. Então, ela começou a me contar sobre seu ativismo voltado para as questões climáticas. Eu não sabia nada sobre o tema e fiquei fascinada. Disse a ela que sua história precisava ser documentada. Uma semana depois, uma pessoa da sua equipe entrou em contato comigo me chamando para uma reunião. A princípio, Westwood não se interessou pelo projeto de fazer um documentário sobre sua vida. Ela queria documentar apenas seu trabalho como ativista. Foi bastante difícil convencê-la a falar sobre sua ligação com os Sex Pistols e com (o produtor) Malcolm McLaren. Ela simplesmente não queria, achava o tema aborrecido. Acabei convencendo Vivienne a duras penas, e quando o filme ficou pronto em 2018, foi selecionado para o Festival de Sundance. Foi um sonho.

DUDA – Porém, quando o filme foi lançado em Sundance, a equipe de relações públicas de Vivienne fez um post em uma rede social falando que o filme deveria ser boicotado. Como foi isso para você?

LORNA – Foi muito duro. Ela queria que o filme focasse exclusivamente no seu lado militante. Expliquei que ninguém iria querer assistir ao filme se não mostrássemos toda a sua história. Além disso, expliquei que sua vida inteira era um ato de ativismo. As pessoas precisavam entender sua importância para o mundo da moda antes de se conectarem com seu ativismo. Foi uma luta para convencê-la. Quando finalmente mostramos o filme para ela, ela disse que não havia gostado nada. Ela me pediu várias alterações. Foi um momento decisivo. Meus produtores me convenceram que eu deveria deixar o filme como estava e imprimir minha visão como diretora, e foi o que eu fiz. Segui meu instinto e mantive o filme como estava. Desde então, nunca mais tive nenhum contato com Vivienne, e isso me deixou bem triste. Até hoje espero que, um dia, ela entenda que o filme é uma homenagem a ela, além de mostrar como sua trajetória serviu de inspiração para muita gente, inclusive para mim. Mas, entendo que essa atitude dela foi completamente punk.

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WESTWOOD: PUNK, ICON, ACTIVIST
Dir.: Lorna Tucker | Reino Unido | 2018 | 84 min | Documentário | Livre

Dame Vivienne Westwood é a grande dama do Punk Rock. A provocadora decana da moda britânica, uma rainha celta com consciência ecológica, é uma das mais influentes criadoras da história recente. O filme explora sua árdua luta pelo o sucesso, com um olhar atento para sua arte, seu ativismo e seu significado cultural. Misturando imagens de arquivo icônicas que definiram uma era com cenas observacionais recém filmadas, essa história é contada através das palavras da própria Westwood, além de entrevistas tocantes com seu círculo íntimo de familiares, amigos e colaboradores.

Assista gratuitamente em sescsp.org.br/cinemaemcasa

Disponível até 10.05.2023

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