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Leonardo Fróes

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

por Leonardo Fróes
 

QUESTÃO DE RESPEITO

Digo bom dia para o sol
logo que acordo e abro a janela.
Depois eu cumprimento as rolinhas
que fazem ninho na varanda.
Elas respondem cururu cururu.
O sol se mantém calado. Mas brilha
com maior intensidade e me esquenta.

 

O JARDIM SIMBOLISTA

Era um sobrado abandonado
onde o avô da ninfa airosa,
que me abria os seus portões,
tinha vivido. Sob a casca do tempo,

que enferrujava até as árvores
do calado jardim senhorial,
irrompiam trejeitos de esculturas
em delicadas poses sensuais.

Faunos, bacantes, messalinas
repousavam neste jardim em ruínas
com seus colares de fungo sobre o mármore.
Tinha sido escultor o avô da ninfa

que pelos gestos, pelo andar, a finura
das suas expressões, mais parecia
aos olhos do passeante entusiasmado
uma outra obra entre as que ali jaziam.

Era forte o contraste entre a beleza
da juventude que nela se encarnava
e a antiguidade dos sonhos simbolistas
que o avô da bela talhara em pedra.

Era em Paris. Falava-se francês.
Já estando ele a ponto de se dizer touché,
ouviu da ninfa airosa esta expressão:
Vous avez l’air d’un oiseau blessé.

 

TAMBORES DA MADRUGADA

Vem a manhã que apaga os monstros
que andavam soltos pela casa.
O coração se aquieta, exausto de temer,
à luz que banha o corpo à janela.
O vento leve arrasta cismas e sombras
que faziam do quarto um campo de batalha.

Que teme o coração na hora incerta
em que o corpo desperta, e é madrugada?
Serão figurações em desalinho
que a memória retém da infância morta
para acioná-lo a travar seu vão combate?

Serão talvez doenças fictícias
ou sintomas reais que a mente inventa
quando é induzida a pensar na escuridão?
Algum remorso irrompe do passado,
alguma farpa fere o peito,
há algum espinho atravessado na carne?

Que sabe o coração quando ele acorda
aos pulos, como se a morte o aliciasse
para ouvir seus tambores? Como se nada
de interessante houvesse mais no mundo,
além de discutir consigo mesmo?

(Quem sabe o coração só desanima
ante tantos cruéis pressentimentos
e o dissabor das mágoas obscuras
que a noite lhe enfiou pela goela?)

Nada ele sabe, o tolo coração disparado,
senão que às portas da manhã
seu horror terminou pausadamente.
Passado o aperto, a brisa, por contraste,
o acaricia, restaura, consola e fortalece
para enfrentar novos testes de agonia,
iguais desabamentos de estrutura
que outras noites lhe tragam, qualquer dia.

 

O ANIMAL SOCIAL

Se fiz o mal que não quero
sem fazer o bem que eu quis,
nem por isso me desespero;
não me julgo um infeliz.

Faço o que posso para domar
os meus instáveis sentimentos.
Mas como saber o que esperar
dos outros, com seus intentos?

Quanto mais puro eu puder ser,
mais espontâneo e desarmado,
sei que melhor irei conter
quem me pretender dominado.

É bom viver sem ter rivais.
Mas o avanço da civilização nos rodeia
de primitivos instintos animais
que o rosto da educação tapeia.


Leonardo Fróes é poeta e tradutor.
Seu livro mais recente, Trilha: Poemas 1968-2015 (Azougue, 2015), é uma antologia que reúne quase cinco décadas de poesia.