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O eterno poeta da Vila

Autocaricatura Noel Rosa. Domínio público

COM HUMOR ÁCIDO E OLHAR VOLTADO AO COTIDIANO URBANO CARIOCA,
NOEL ROSA COMPÔS MAIS DE 300 CANÇÕES EM UMA VIDA CURTA, MAS INTENSA

 

Um problema durante o parto deu a Noel de Medeiros Rosa uma de suas características físicas mais conhecidas: o maxilar diminuto, reduzido em comparação ao rosto, como resultado do uso do fórceps. O procedimento trouxe consequências que o acompanharam na vida adulta, provocando dificuldades para se alimentar, as quais, somadas à vida boêmia e desregrada, potencializaram a tuberculose, fatal na época. Nascido em 11 de dezembro de 1910, o rapaz franzino viveu até os 26 anos, numa trajetória curta, porém intensa: foram mais de 300 composições.

 

SEM DRAMA

As limitações da saúde frágil e as complicações com o maxilar não foram impedimento para Noel. No dedilhar do violão e com muito humor, ele não se fazia de rogado. O menino tímido tornou-se o boêmio que abandonou a Faculdade de Medicina e andava pelo Rio de Janeiro na companhia da amiga e intérprete Aracy de Almeida. Desbravava o bairro da Lapa, caminhava pela Vila Isabel (onde viveu) e pelo Morro da Mangueira. “Era um mediador cultural. Tinha formação mais rebuscada, enquanto os compositores populares eram mais simples, mais rudimentares em sua formação. Noel era o grande flâneur da cidade”, diz o pesquisador de música brasileira André Diniz, usando a definição do poeta francês Charles Baudelaire e do filósofo alemão Walter Benjamin para identificar o caminhante que se funde com a cidade, percorrendo-a e interpretando seus personagens. “Ele trouxe para dentro de sua poesia a modernidade do Rio de Janeiro, dando igual espaço às coisas boas e ruins encontradas na cidade”, afirma.

Em 1927, Noel já estava na ativa: com os compositores Almirante e Braguinha, fazia parte do Bando dos Tangarás. Foi nessa época que surgiram suas primeiras composições, “Minha Viola” e “Festa no Céu”.
Durante o curto período de vida do filho do comerciante Manuel Medeiros Rosa e da professora Marta de Medeiros Rosa, a gema carioca experimentava a expansão de locais de entretenimento, a diversificação tecnológica de reprodução de imagem e som, o aumento da população urbana. Essas transformações ocorridas no Rio de Janeiro no início do século 20 impactaram a obra de Noel Rosa, que produziu verdadeiras crônicas bem-humoradas da vida carioca e tematizou o amor sob abordagens diversas. Tudo isso com uma linguagem simples e objetiva, distante dos rococós e rebuscamentos típicos da música produzida até o início da década 1930.

Noel Rosa. Acervo Bilbioteca Nacional

 

Até o ano de sua morte, em 1937, o talento precoce ficou registrado nas inúmeras canções realizadas com dezenas de parceiros. São dessa década sucessos como “Feitiço da Vila”, “Filosofia”, “Fita Amarela”, “Gago Apaixonado”, “O X do Problema”, “Palpite Infeliz” e “Pra que Mentir”.

 

CRÍTICO E PESSOAL

O poeta da Vila Isabel teve muitos relacionamentos amorosos em suas noitadas. Conheceu a paixão com a jovem Ceci, dançarina do Cabaré Apolo, localizado no bairro da Lapa. Canções em sua homenagem não faltaram, como a “Dama do Cabaré” e “Último Desejo”, mas o músico acabou se casando com outra, Lindaura, em 1934.

Mesmo com o coração tomado, era conhecido por ser namorador. A vida curta não deu conta de tamanha intensidade. Noites nos bares cariocas, excesso de álcool e cigarro foram minando Noel aos poucos, à medida que a tuberculose se agravava. Em entrevista publicada no Diário Carioca, em 4 de janeiro de 1936, o sambista “defende a informalidade, o coloquialismo e os versos livres do samba em detrimento do rebuscamento que marcou a poesia e a música das décadas anteriores”, acrescenta Rodrigo Vicente, doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador de pós-doutorado sobre Noel Rosa no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).

Na ocasião, Noel afirmou à imprensa: “O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa autêntica expressão artística, produto exclusivo da nossa sensibilidade. A poesia espontânea do nosso povo levou a melhor na luta contra o feitiço do academismo em que os intelectuais do Brasil viveram durante muitos anos ingloriamente escravizados. Não duvido que Bilac, se fosse vivo, tomasse o bonde do samba”.

Sua carreira teve início na época em que a gravação elétrica e o microfone haviam sido inventados. “Essas inovações tornaram possível, por exemplo, o registro de vozes menos ‘potentes’, como a do próprio Noel”, contextualiza Vicente. Segundo o pesquisador, ao lado de Mário Reis, o compositor de Vila Isabel contribuiu para o desenvolvimento do estilo de interpretação conhecido como canto-falado, que ia ao encontro do tom coloquial e despojado das letras dos seus sambas. “Além da voz, instrumentos com sonoridade mais frágil também foram incorporados nas gravações”, completa.

 

LEMBRANÇA CONSTANTE

Noel e suas composições foram fonte para gerações de grandes músicos brasileiros a partir do resgate de sua obra, que, de acordo com Vicente, ocorreu com o surgimento da bossa nova.

Da década de 1950 para cá, seu legado está presente no repertório de sambistas e outros representantes de peso da MPB. Um exemplo notório é Martinho da Vila, que reverencia Noel por ter feito a ponte entre o samba do morro e o asfalto. 

Chico Buarque também está no topo da lista. O artista construiu uma memória afetiva com as músicas de Noel, escolhidas a dedo pelo pai – o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda – e a mãe, Maria Amélia Buarque de Hollanda. Na composição A Rita, por exemplo, em que a personagem título vai embora e leva consigo todas as coisas importantes, a homenagem ao poeta da Vila Isabel é explícita: “Levou seu retrato, seu trapo, seu prato / Que papel! / Uma imagem de São Francisco / E um bom disco de Noel”.

 

Playlist

Siga um roteiro selecionado pelo pesquisador de música brasileira André Diniz, presidente da Fundação de Arte de Niterói e autor do livro Noel Rosa: o Poeta do Samba e da Cidade (2010, edição esgotada) para mergulhar no universo sonoro de um dos maiores compositores nacionais.


COM QUE ROUPA?
O clássico é sua primeira música de sucesso no carnaval de 1930. Foi escrita em 1929 fazendo alusão à crise que o Brasil e o mundo ocidental atravessavam com a quebra da bolsa de Nova York. Sem dinheiro, menos roupa para o brasileiro. A letra utiliza uma gíria da época, Com que roupa eu vou (com que dinheiro eu vou) ao samba que você me convidou?, para tratar com ironia da fase de instabilidade econômica.

ÚLTIMO DESEJO
Um primor de composição, datada de 1934. Aqui, letra e música se encaixam de forma harmônica, perfeita. Noel fez essa música já no fim da vida, acometido pela tuberculose. Era uma carta de amor para Ceci, a “dama do cabaré” da Lapa, seu grande amor.

CONVERSA DE BOTEQUIM
Essa obra de 1935 evidencia o Noel modernista, que via no samba a transformação da poesia popular, construindo em seus versos o sotaque carioca, utilizando em sua linguagem o jeito de falar do povo e valorizando seu ambiente. Aqui o Noel poeta não usa refrão. Um traço modernista da sua obra.

 

Repertório de brasilidades


PALESTRA SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO AMOR NA OBRA
DE PAULINHO DA VIOLA E CONVERSA COM LÔ BORGES
SÃO DESTAQUES NA PROGRAMAÇÃO DE DEZEMBRO


Depois da palestra O Poeta da Vila: 80 Anos sem Noel Rosa, ministrada pelos músicos Paulão Sete Cordas e Ramón Araújo, em outubro, e do curso Música e Letra: Alquimia da Canção, com o músico Eduardo Gudin, que também visitou a obra de Noel, finalizado em novembro, neste mês o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) segue com outras atividades dedicadas à música brasileira.

No dia 8, será realizada a palestra de Celso Delneri sobre o violonista Garoto, abordando o estilo de suas composições. Outra palestra, no dia 14, com a pesquisadora Eliete Negreiros, tratará da representação do amor na obra do sambista Paulinho da Viola, bem como da imersão do músico no âmbito da tradição do pensamento e da lírica ocidentais. Para encerrar, na atividade Em Primeira Pessoa, em que uma personalidade da cena musical compartilha com o público marcos de sua trajetória, é a vez do mineiro Lô Borges (foto) contar histórias sobre o Clube da Esquina e sua carreira solo, no dia 15. Confira a programação completa de atividades do CPF no Em Cartaz.

 

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