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Cartografia modernista

Vista aérea do Parque da Luz. Foto: Joca Duarte
Vista aérea do Parque da Luz. Foto: Joca Duarte

O ser humano carrega consigo, muitas vezes, o desejo de viajar no tempo com a intenção de observar o modo de vida em uma época distante. Sem máquinas ou outras tecnologias para percorrer esse itinerário, nos consolamos com a criação de um simulacro a partir de coordenadas geográficas, mais precisamente de ruas, praças, parques e outros espaços por onde andaram personagens de séculos passados que marcaram a História. Lugares que podemos visitar e por meio dos quais podemos recriar, por exemplo, os passos de artistas que protagonizaram a Semana de Arte Moderna de 1922, na cidade de São Paulo. Um convite para se imaginar na plateia do Theatro Municipal entre os dias 13 e 17 de fevereiro daquele ano, há quase um século; para observar, de trás de alguma árvore do Jardim da Luz, a jovem artista Tarsila do Amaral com seu caderno de desenhos; ou mesmo tomar um café com Mário de Andrade em sua residência na Barra Funda. Mapa na mão? É hora de partir...

 

JARDIM DA LUZ

A região que hoje conhecemos como o centro histórico da capital paulista já foi cenário de transformações da economia, da industrialização, da chegada de imigrantes europeus e asiáticos, entre outros, bem como de mudanças culturais do início do século 20. Era um local de passagem, encontro e inspiração para os modernistas, a exemplo da artista Tarsila do Amaral (1886-1973). A artista chegou a morar no bairro Campos Elíseos e costumava caminhar de casa até o parque Jardim da Luz – criado originalmente como Horto Botânico e, em 1825, aberto ao público como Jardim Público da Luz. Aos que hoje frequentam o local, poderia ter se sentado em um dos bancos, à sombra das árvores, a jovem pintora, que costumava ir ao parque para desenhar em seu caderno. Mais tarde, seria em seu ateliê na Rua Vitória, nº 133, no bairro Santa Ifigênia, que a pintora de Abaporu (1928) receberia amigos do movimento modernista. Recém-chegada ao Brasil, vinda da Europa quatro meses depois da Semana de 1922, “nesse período, irradiando talento e simpatia, favorecia uma convivência amigável entre as pessoas do ‘grupinho’ (Grupo dos 5: formado por Tarsila, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e Menotti del Picchia), enquanto se alimentava da São Paulo modernista de junho a dezembro de 1922”, descreveu Nádia Battella Gotlib, professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Tarsila do Amaral: A Modernista (Edições Sesc São Paulo, 2018).

 

Escultura de bronze Três Jovens (1939), de Lasar Segall | Joca Duarte
 

CASA MÁRIO DE ANDRADE

Um dos principais mentores do modernismo brasileiro e da Semana de Arte Moderna de 1922, Mário de Andrade (1893-1945) mudou-se para a Rua Lopes Chaves, nº 546, na Barra Funda, em 1921, e sua residência logo se tornaria reduto de encontros do movimento. O afeto pela casa, que ele compartilhava com a mãe, a irmã e uma tia, o levou a escrever em homenagem ao lar o Poema XVII, integrante do livro Losango Cáqui (1926), publicado após a mudança da família para o bairro na zona oeste de São Paulo:

 

Minha casa…

Tudo caiado de novo!

É tão grande a manhã!

É tão bom respirar!

É tão gostoso gostar da vida!

A própria dor é uma felicidade!

 

Imagem da exposição de longa duração A Morada do Coração Perdido, na Casa Mário de Andrade, que reúne objetos pessoais do modernista, móveis originais da residência, textos, fotos e vídeos | André Hoff

 

Em 1941, em carta à poeta e crítica literária Henriqueta Lisboa (1901-1985), voltou a descrever a residência da Lopes Chaves: “Um dia você ainda há de vir a esta casa, Henriqueta, e verá como é gostoso o cantinho em que moro, meus livros, minhas coleções de desenhos, de objetos populares, de imagens antigas e meus quadros e meus badulaques que não acabam mais”. Henriqueta conheceu a “Morada do Coração Perdido” – como o lugar também ficou conhecido – dias antes da morte do modernista, em fevereiro de 1945. O imóvel é tombado em nível estadual em 1975 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – Condephaat, e em 1991 via esfera municipal pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp, quando foi aberto à visitação com o nome Oficina da Palavra. Até que, em 2015, o espaço foi reaberto como Casa Mário de Andrade,  e três anos depois tornou-se formalmente um museu que conta episódios da vida e obra do artista, entrelaçados também pela história do movimento modernista. Em uma exposição permanente, é possível visitar o acervo composto por objetos pessoais e documentos de imagem e áudio. Espaço que integra a Rede de Museus-Casas Literários da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, gerenciada pelo instituto Poiesis, a Casa Mário de Andrade realiza uma programação de atividades culturais e educativas dedicada ao centenário da Semana de 22. Conheça: www.casamariodeandrade.org.br

 

Em maio de 2020 a Casa Mário de Andrade inaugurou, com uma nova edição a cada ano, o Programa Formativo “Patrimônio, Memória e Gestão Cultural”, áreas em que o escritor e gestor cultural foi pioneiro por ter criado, na década de 1930, o anteprojeto que deu forma ao atual Iphan, sendo que a Casa foi a primeira sede do Iphan | André Hoff

 

THEATRO MUNICIPAL

Palco da programação da Semana de Arte Moderna, o Theatro Municipal de São Paulo, localizado no bairro da Sé, recebeu o “grand monde” político e cultural da cidade de São Paulo para conhecer o que havia de novo em produção e pensamento representados em múltiplas linguagens artísticas. Inaugurado 11 anos antes do festival, o teatro de arquitetura inspirada na Ópera Nacional de Paris recebeu para a ocasião uma mostra com cerca de 100 obras – esculturas,  pinturas, croquis e maquetes de projetos arquitetônicos – expostas no saguão, além de três sessões líteromusicais noturnas, com a organização e participação de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida e outros artistas. Na esteira das celebrações do centenário da Semana de 22, o Theatro Municipal realiza o projeto Novos Modernistas, que visa retomar o caráter multicultural do evento em espetáculos mensais. No site oficial, há a descrição da proposta: “Por meio de apresentações de temática contemporânea, esses espetáculos, cada um à sua maneira, derrubam muros e expandem territórios”. Bem ao espírito da emblemática Semana ali realizada no século 20. Confira: theatromunicipal.org.br.

 

Stig de Lavor

 

CASA GUILHERME DE ALMEIDA

Poeta, tradutor, jornalista, advogado e um dos expoentes do modernismo, Guilherme de Almeida (1890-1969) viveu na Rua Macapá, nº 187, no bairro de Perdizes, de 1946 até o ano de sua morte. A “Casa Colina”, como ficou conhecida, acolhia uma rica coleção de obras – gravuras, desenhos, pinturas e esculturas –, em grande parte presenteadas pelos principais artistas do modernismo brasileiro, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Lasar Segall e Victor Brecheret. Em 1979, a residência se tornou uma instituição da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, aberta ao público e gerenciada pela Poiesis. A Casa Guilherme de Almeida reúne não só um acervo composto pela coleção de obras de arte de seu antigo dono, como também a biblioteca, a hemeroteca e o arquivo fotográfico do modernista. O mobiliário e os objetos decorativos, escolhidos por Guilherme e sua esposa, Baby de Almeida, compõem esse cenário de volta ao passado. No museu, são realizadas regularmente atividades gratuitas relacionadas a todas as áreas de atuação de Guilherme de Almeida, da literatura traduzida ao cinema, passando pelo jornalismo e pelo teatro. Soma-se, ainda, uma programação dedicada aos 100 anos da Semana de Arte Moderna. Saiba mais: www.casaguilhermedealmeida.org.br.

 

André Hoff