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Primeiros passos

por Marcelo Santos

No Brasil há 24,5 milhões de pessoas com deficiência e a maioria não dispõe de recursos para ter uma boa qualidade de vida. Estima-se que 70% estejam em condições de severa pobreza, tendo de se equilibrar com um orçamento mensal médio de R$ 350, e por isso dependem de doações ou do Sistema Único de Saúde (SUS) para conseguir modelos bastante simples de órteses – como cadeiras de rodas – ou próteses – pernas e braços mecânicos, por exemplo.

Algumas dessas pessoas vivem com limitações tão graves que é como se estivessem enclausuradas no próprio corpo. Douglas Jericó, de 29 anos, é um desses casos. Apesar de pertencer a uma família de classe média de Osasco (SP) e de ter formação que lhe permitiu conseguir bons empregos na área de tecnologia e informática, a queda de cima de um muro, há dois anos, transformou sua vida, deixando-o tetraplégico. Ele passou seis meses internado, sem poder se mover e, pior, sem conseguir se comunicar. Familiares chegaram a improvisar um cartaz com as letras do alfabeto, com o qual o jovem, por meio de piscadelas, formava sílabas e frases. Era um exercício longo e torturante.

Nesse período, enquanto realizava terapia ocupacional, tomou conhecimento de dois programas de computador desenvolvidos na Espanha e que poderiam ser obtidos gratuitamente pelo site do Ministério das Comunicações brasileiro. Eram o Headmouse e o Teclado Virtual, com versão em português, que o salvaram de uma vida vegetativa e alheia ao mundo.

Com o uso dessas ferramentas, que consistem em um teclado digital e softwares que permitem controlar o cursor do mouse com movimentos da cabeça, “arrastar” arquivos por meio de gestos faciais e clicar com o piscar dos olhos, é possível redigir textos sem a necessidade de utilizar as mãos. “Com os programas posso me comunicar, trabalhar e estudar. Poucos anos atrás não imaginaria que isso fosse possível”, diz Douglas, que tem mobilidade apenas do pescoço para cima.

Apesar de todas essas limitações, hoje ele trabalha em uma multinacional do setor de informática, cursa sua segunda faculdade e até namora. Em outras palavras, seu drama pôde ao menos ser suavizado graças ao uso da tecnologia assistiva, termo utilizado para identificar o arsenal de recursos que contribuem para proporcionar ou ampliar a funcionalidade de pessoas com deficiência e consequentemente promover sua inclusão.

Cara e importada

Embora a tecnologia assistiva faça uma enorme diferença na qualidade de vida de quem a utiliza, no Brasil seu uso ainda é privilégio de poucos. Programas gratuitos que atendem as necessidades de pessoas com deficiência são raros e a maior parte dos equipamentos e tecnologias para esse fim, cerca de 90%, vem do exterior e tem preços proibitivos para a grande maioria. Para se ter uma ideia, enquanto uma impressora a jato de tinta de modelo básico não chega a custar R$ 200, uma que imprime em braille, também de modelo simples, não sai por menos de R$ 10 mil.

Os altos preços dos equipamentos de tecnologia assistiva importados se devem em boa parte à incidência de tributos, já que os impostos recolhidos por quem compra uma impressora para cegos, uma bengala com sensores – que identifica obstáculos e emite um sinal sonoro – ou uma cadeira de rodas motorizada são iguais àqueles pagos pelos que desejam artigos de consumo também trazidos do exterior: 60%. Isso explica por que um sistema de vídeo-ampliação, usado por pessoas com deficiência visual, é vendido por US$ 1.000 nos Estados Unidos, onde é fabricado, e por R$ 8 mil no Brasil.

Essa situação, porém, pode estar prestes a mudar. O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Aloizio Mercadante, anunciou um conjunto de ações destinadas a facilitar o acesso à tecnologia assistiva. “Será um programa amplo para atender essa demanda. Afinal, são mais de 20 milhões de brasileiros que necessitam desse tipo de atenção e estamos dispostos a fazer a inclusão produtiva e mudar a qualidade de vida desses cidadãos.”

Mercadante pretende também conceder créditos através da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) – que este ano dispõe de R$ 8 bilhões em caixa – a quem produzir equipamentos com essa finalidade. Os bancos públicos, por sua vez, se encarregarão de prover linhas de empréstimos com taxas reduzidas para pessoas de baixa renda. Também foi realizado um levantamento de mais de mil produtos que serão expostos numa espécie de catálogo oficial dentro do próprio site do MCTI.

Ainda no âmbito desse pacote de medidas está prevista a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na compra de órteses e próteses. “É a primeira vez no país que a questão da tecnologia assistiva é entendida como política governamental. Acho que essa caminhada é irreversível”, elogia Irma Passoni, gerente executiva do Instituto de Tecnologia Social (ITS Brasil). Em março deste ano, ela participou de um seminário no MCTI em que foi discutida a proposta de criação do Centro Nacional de Tecnologia Assistiva (CNTA), em parceria do ITS com a Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social do MCTI e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

De acordo com a proposta do ITS, o centro abrigaria salas de aula, jardins sensoriais – para que as pessoas pudessem experienciar as limitações impostas pela deficiência física –, centro de exposição e demonstração de produtos, biblioteca, laboratórios para desenvolvimento de projetos inovadores e casas-modelo. O MCTI, porém, considerou que, “de início, o melhor seria, em vez de investir numa construção, aproveitar áreas que já trabalham com tecnologia assistiva e criar uma rede entre os diversos centros espalhados pelo país para oferecer esses serviços”, explica o professor Jesus Carlos Delgado Garcia, coordenador de projetos do ITS e professor da Faculdade de Medicina do ABC, em Santo André (SP), onde coordena o curso de pós-graduação em tecnologia assistiva.

Inovação a baixo custo

O ITS, em parceria com o MCTI, também tem financiado alguns projetos no país. No início do ano, nove propostas escolhidas receberam cada uma um investimento de até R$ 30 mil. Mesmo com essa verba pouco expressiva, o engenheiro elétrico Acbal Rucas Andrade Achy, pesquisador da Universidade Federal da Bahia e fundador da empresa de inovação NNSolutions Desenvolvimento de Sistemas Integrados, conseguiu criar o Scanner Leitor Portátil (Slep).

Trata-se de um software para celular destinado a pessoas com deficiência visual. O programa, instalado num aparelho com câmera, captura a imagem do texto e “lê”, por meio de uma voz sintetizada, seu conteúdo. “Estamos desenvolvendo a aplicação do Slep e a identificação de luminosidade para outras plataformas de celular, ampliando com softwares complementares o reconhecimento de cédulas e a identificação das cores dos objetos”, explica Andrade.

Na opinião do cientista baiano, o país ainda “está engatinhando” no que se refere à tecnologia assistiva, tanto em termos de nacionalização das já existentes como de criação de novas soluções. “Isso se deve principalmente ao pouco interesse em pesquisa, desenvolvimento e inovação. A venda do produto final é pontual, o que gera um preço muito elevado, impedindo que muitas pessoas possam comprar, e isso forma um ciclo interminável.” Segundo ele, uma política de subsídios, que pode ser feita indiretamente com a redução de tributos, ajudaria o país a atender as demandas internas e, posteriormente, se transformar em fornecedor de insumos com maior valor agregado. “Competência tecnológica e demanda de mercado o Brasil tem de sobra.”

Outro projeto contemplado foi a lousa magnética Communicare, um equipamento que facilita a alfabetização e a integração de crianças cegas. “Trata-se de uma manta imantada, recortada de forma quadricular, com círculos de ímãs e texturas que representam pontos em braille. Na própria lousa podem ser encontrados tanto em braille quanto em tinta o alfabeto e outros símbolos básicos da escrita”, explica Aline Piccoli Otalara, coordenadora de desenvolvimento e pesquisa da empresa Tecnologia e Ciência Educacional (Tece), de Rio Claro (SP). “O equipamento permite o uso por pessoas com baixa visão, cegas e também por crianças sem deficiência.”

Para criar a lousa, Aline contou com a participação do educador Uilian Donizeti Vigentim. “Quando se sente na pele o peso da limitação, seu objeto de pesquisa fica mais real e os resultados se adequam melhor às necessidades”, afirma Vigentim, que é cego.

Já a professora carioca Ethel Rosenfeld, cega desde os 13 anos, também é uma entusiasta das tecnologias que possibilitam a inclusão de pessoas com deficiência. “Sou privilegiada, mas muitas pessoas não têm acesso aos equipamentos que poderiam facilitar sua vida.” Aos 65 anos, ela mora sozinha e, mesmo aposentada, costuma viajar para prestar consultoria e dar palestras sobre educação de pessoas cegas e de baixa visão, sua especialidade. Em sua casa, aparelhos sofisticados, que reconhecem as cores dos objetos e as informam por voz, além de programas específicos de computador, fazem com que ela tenha acesso à internet e às demandas da vida digital. “Alguns deles comprei em viagens ao exterior ou pedi a amigos que vinham de lá.”

Customização e criatividade

Outra dificuldade que encarece a produção de tecnologia assistiva é a necessidade, em alguns casos, de customização – ou seja, a adequação às necessidades de cada usuário. É o que acontece, por exemplo, na Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim), em São Paulo, onde os terapeutas ocupacionais assumem papel de artesãos tecnológicos, adaptando soluções para seus pacientes. “Mover um mouse ou digitar textos longos no computador requer movimentos complexos, que pessoas com limitações físicas nos membros superiores, como aquelas que sofrem de distrofia muscular, muitas vezes têm dificuldade para realizar”, explica a coordenadora da área de terapia ocupacional, Adriana Nathalie Klein.

As distrofias musculares são doenças genéticas que causam o enfraquecimento dos músculos, que vão se atrofiando com o tempo. A cada ano, apenas no estado de São Paulo, cerca de 250 crianças nascem com esse problema. O processo degenerativo não tem cura, e a meta dos terapeutas é conservar os movimentos existentes. Por essa razão, os equipamentos precisam ser desenvolvidos especificamente para cada pessoa. “Customizar é muito caro, já que em cada paciente a doença progride de forma diferente. As cadeiras precisam ser adaptadas, assim como objetos simples, como talheres. É aí que entram nossos terapeutas, que às vezes passam dias e noites pensando em como resolver o problema de uma só criança”, diz Adriana.

Como exemplo ela cita o trackball, projetado pelos terapeutas João Henrique dos Santos e Paulo Rogério de Oliveira. Trata-se de um mouse caseiro, uma engenhoca que mistura terminais elétricos com a esfera de um desodorante roll-on para dar ao paciente a possibilidade de controlar o cursor do computador utilizando apenas um dedo.

Outro recurso utilizado na instituição é o GenVirtual, um jogo de computador desenvolvido no Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O software lê por meio da câmera do computador os movimentos feitos pela pessoa numa série de cartões dispostos sobre a mesa e produz uma resposta visual, na tela, ou sonora. O sistema é usado num jogo de memória e em outro em que o paciente toca diversos instrumentos musicais virtualmente.

Porém, a menina dos olhos dos terapeutas da Abdim, no momento, é um jogo eletrônico que conta, em fases, a progressão da distrofia. A invenção recebeu recursos do ITS e do MCTI. “É um drama. Como a criança não sabe o que está acontecendo com seu corpo, não entende por que perde a força e se vê impedida de fazer movimentos. Através desse jogo explicamos cada etapa da doença. A cadeira de rodas vira um super-herói, assim como outros acessórios”, diz Adriana. Segundo ela, se para uns a tecnologia é sinônimo de conforto, para outros, como as crianças atendidas na Abdim, é capaz de tornar a vida possível, ajudando-as a enfrentar o que as assusta.