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Um diagnóstico complicado

por Carlos Juliano Barros

No último dia 23 de agosto, uma mulher de 27 anos, grávida de gêmeos e entrando em trabalho de parto, foi levada às pressas pelo marido à Santa Casa de Misericórdia, em Belém. Contudo, por falta de leitos, ela teve de ser encaminhada ao Hospital das Clínicas da capital paraense, onde também não conseguiu atendimento. Desesperado, o casal voltou à Santa Casa. Porém, segundo relato do marido, sua entrada foi barrada pela médica de plantão, que teria alegado superlotação e falta de infraestrutura básica.

A primeira criança nasceu sem vida, na ambulância do corpo de bombeiros, acionado para socorrer a mulher grávida. O segundo bebê, infelizmente, também não resistiu. Depois dos trágicos acontecimentos, um policial militar que prestava ajuda ao casal chegou a dar voz de prisão à médica, que supostamente havia se recusado a tratar da gestante. A doutora se dirigiu a uma delegacia, onde prestou esclarecimentos sobre o caso, que também está sendo analisado pelo Conselho Regional de Medicina (CRM).

Esse caso ganhou as manchetes dos principais veículos de comunicação ao colocar em pauta uma acusação de negação de atendimento, terminantemente proibida pelo código de ética dos médicos. Entretanto, o episódio torna-se ainda mais revoltante por escancarar a mais do que notória precarização das condições de trabalho que o sistema de saúde nacional – não só o público, mas também o privado – impõe a seus profissionais. São problemas graves que, obviamente, se refletem no péssimo atendimento à população. Nos últimos meses, porém, a categoria dos médicos vem organizando uma série de manifestações em defesa de sua atividade – indiscutivelmente, uma das mais respeitadas aos olhos da sociedade.

Por duas vezes, neste ano, houve boicotes a operadoras privadas para protestar contra a situação da chamada “saúde suplementar”, aquela regida pelos planos particulares. Além disso, em outubro, profissionais de norte a sul do país fizeram uma paralisação nacional inédita para reivindicar valorização da carreira e ambiente de trabalho menos aviltante no Sistema Único de Saúde (SUS), a rede pública que trata da esmagadora maioria da população brasileira que necessita de cuidados.

As reclamações vêm à tona justamente no momento em que o governo federal discute a necessidade de levar mais médicos a lugares historicamente pouco assistidos. Em parceria com o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação estuda a criação de um plano nacional para estimular a formação de mais profissionais, que trabalhariam principalmente nas regiões norte e nordeste. Por sua vez, o Congresso Nacional vem debatendo desde o final de agosto a emenda constitucional (EC) 29. Aprovada no ano 2000, mas até hoje não regulamentada, ela estipula fontes fixas de recursos a ser desembolsados pelas três esferas de governo – municipal, estadual e federal – para bancar o SUS. “A não regulamentação da emenda 29 já retirou da área da saúde quase R$ 60 bilhões. Esse montante absurdamente alto é o que deixou de ser aplicado”, diz Celso Murad, coordenador da Câmara Técnica de Medicina de Família e Comunidade do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Ainda no Congresso, os senadores também voltaram a debater o chamado Projeto de Lei (PL) do Ato Médico, texto aprovado em 2009 na Câmara dos Deputados e que orienta o exercício da medicina – a única profissão da área da saúde cujos procedimentos e atribuições ainda não se encontram detalhados em lei federal. “É um projeto antigo, bastante objetivo, e que devia ter sido aprovado há muito tempo”, afirma Cid Carvalhaes, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam). Porém, nesse caso, o assunto ainda está longe de ser considerado ponto pacífico. Porta-vozes de entidades representativas de outras categorias da saúde, como enfermeiros, fisioterapeutas e psicólogos, temem que a aprovação da atual redação do PL comprometa a autonomia de suas atividades e centralize os serviços de saúde nas mãos dos médicos. “O projeto deveria regulamentar o exercício só da medicina, mas hoje existem partes do texto que interferem na atividade de outras profissões, o que considero prejudicial”, explica Roberto Cepeda, presidente do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Coffito).

Defasagem

Nos meses de abril e setembro deste ano, médicos de todo o país fizeram uma espécie de boicote a operadoras privadas. Uma das principais reivindicações do movimento era garantir um valor mínimo de R$ 80 por consulta realizada – atualmente, a média não chega a metade dessa quantia. “A defasagem na remuneração é tão grande que tem estrangulado o atendimento aos usuários dos planos. O paciente vai ter cada vez mais dificuldade para marcar uma consulta”, prevê Celso Murad. Na avaliação do conselheiro do CFM, um dos sintomas dessa crise é o brutal fechamento dos consultórios de pediatras e de clínicos gerais a que se tem assistido nos últimos anos.

“Isso gera uma demanda exagerada nas unidades de pronto-atendimento e pronto-socorro, que são sobrecarregadas por consultas que antes eram preferencialmente ambulatoriais. As operadoras não querem entender que quem sai prejudicado, antes dos médicos, é o paciente”, complementa Murad. Vale lembrar que, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão público responsável por regular e fiscalizar as empresas particulares que atuam nesse mercado, um quarto da população brasileira recorre a 1.042 operadoras médico-hospitalares em atividade no país.

Pelos cálculos do presidente da Fenam, nos últimos dez anos o reajuste acumulado dos valores pagos pelas operadoras aos médicos não ultrapassou 60%. Porém, durante esse mesmo período, as mensalidades dos planos de saúde tiveram um aumento bem mais robusto, na casa de 150%, devidamente autorizado pela ANS. Não é à toa que dois controladores da Amil, uma das maiores operadoras do país, figuram na lista dos homens mais ricos do mundo publicada pela revista “Forbes”, com fortuna pessoal da ordem de US$ 3,9 bilhões.

A defasagem na remuneração dos médicos é agravada ainda por outro fator: a inflação na última década foi de aproximadamente 100%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). “Foram mais de dez anos sem reajuste adequado, sem sequer a reposição das perdas com a inflação”, alega Cid Carvalhaes. O presidente da Fenam não defende apenas uma elevação pontual dos valores pagos pelas consultas, exigindo também uma política consistente de remuneração, com reajustes a cada doze meses, no máximo.

Por outro lado, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que reúne 15 dos maiores grupos de operadoras do país e responde por um terço dos brasileiros com plano de saúde privado, rebate as críticas. Por meio de nota oficial, a entidade afirma que “não seria sustentável uma política que determinasse o repasse integral do reajuste autorizado pela ANS aos diversos tipos de prestadores (médicos, profissionais, hospitais, laboratórios etc), pois qualquer crescimento na frequência de utilização resultaria em elevação nas despesas das operadoras. Isso exigiria novos aumentos nas mensalidades e novos repasses aos prestadores, iniciando uma espiral sem fim”.

As queixas dos médicos, no entanto, não se limitam a dinheiro. Mais grave até que a questão financeira é a interferência das operadoras nas atividades desses profissionais. “Algumas dessas empresas procuram estimular o médico a pedir menos exames, para baratear os serviços”, conta Celso Murad, do CFM. “Oferecem bônus àqueles que economizam para elas, dificultando procedimentos de alto custo. Isso, porém, acontece por baixo dos panos”, acrescenta. Existe pressão também para encurtar o tempo de internações hospitalares, principalmente daqueles pacientes que necessitam de cuidados nas chamadas unidades de terapia intensiva (UTI), cujo funcionamento obviamente é mais dispendioso.

“Temos no nosso código de ética que o médico não pode exercer a medicina como comércio. Só que hoje ele é introduzido nesse sistema da maneira mais mercantil possível. Ainda por cima, colocaram a prestação de serviços médicos no Código de Defesa do Consumidor”, desabafa Murad. Questionada também sobre o assunto, a FenaSaúde, em nota, “informa que desconhece a prática de inibição de procedimentos. A federação esclarece que aqueles necessários e cobertos contratualmente são autorizados pelas operadoras. O que pode acontecer é a operadora solicitar a justificativa sobre alguma solicitação, o que é absolutamente legal”, continua o documento.

Destinação de verbas

No segundo semestre deste ano, o Congresso Nacional voltou a debater um assunto que pode mudar para sempre os rumos da saúde no Brasil: a regulamentação da emenda constitucional 29, que se arrasta há mais de uma década na casa do poder legislativo nacional. Bandeira histórica dos médicos, o projeto – aprovado em primeiro turno na Câmara, no final de setembro – prevê que prefeituras municipais e governos estaduais apliquem na saúde 15% e 12% de sua arrecadação, respectivamente. A União, por sua vez, será obrigada a reajustar anualmente os investimentos levando em consideração a inflação e o crescimento do PIB. Apesar de ter prometido a regulamentação da EC 29 durante a campanha que a levou ao Planalto, a presidente da República, Dilma Rousseff, tem manifestado preocupação com esses possíveis “novos gastos”. Por essa razão, a base aliada vem cogitando a criação de impostos para bancar essa injeção de recursos no SUS. Uma das ideias, por exemplo, é ressuscitar a finada Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).

Ao mesmo tempo em que procura fontes para garantir a destinação de mais verbas para a saúde, o governo vem estudando formas de levar mais médicos para regiões que historicamente carecem desses profissionais. Um estudo bastante recente divulgado pelo Ministério da Educação e pelo Ministério da Saúde mostra que, no estado do Maranhão, há apenas 0,6 médico para cada mil habitantes – bem distante da meta mínima almejada de 2,5 doutores para a mesma população. Só a título de comparação, no Distrito Federal essa relação é de 3,5 para cada grupo de mil cidadãos. Atualmente, formam-se 16 mil novos médicos por ano em todo o país. O plano do governo é abrir mais vagas no ensino superior, de forma que, em 2030, o número de graduados pule para 19 mil.

Porém, na avaliação dos representantes do CFM e da Fenam, abrir novos cursos não é o suficiente para resolver os gargalos e garantir atendimento à população dos lugares desassistidos. “Tem de haver um plano de carreira para que o profissional que vá para locais em que a assistência é extremamente precária tenha a perspectiva de que um dia vai ganhar um salário digno”, afirma Celso Murad. Tendo isso em mente, uma das propostas defendidas tanto pela Fenam como pelo CFM é a criação de uma espécie de “carreira de Estado” para os médicos, a exemplo do que existe hoje no caso de juízes e membros do Ministério Público. Dessa forma, o recém-formado poderia iniciar sua trajetória profissional em uma cidade isolada e, com o passar do tempo, ser transferido para centros urbanos com mais infraestrutura. Pela matemática do presidente da Fenam, o salário ideal para uma jornada de 20 horas semanais deveria ser de R$ 9.188,22 – a anos-luz de distância do que é oferecido, por exemplo, pela prefeitura do Rio de Janeiro em concurso realizado neste ano: R$ 1,5 mil.

Regulamentação

Não são, no entanto, apenas as questões referentes a salário e a condições de trabalho que estão na ordem do dia. Há quase uma década, outra discussão essencial em termos de saúde pública também se arrasta no Congresso Nacional: a regulamentação do exercício da medicina. Na prática, o projeto de lei 268/2002, também chamado de PL do Ato Médico, visa determinar que tipos de procedimentos cabem única e exclusivamente a um profissional graduado nesse campo do conhecimento. Aprovado na Câmara há dois anos, ele voltou à pauta do Senado Federal por meio de audiências públicas para tentar conciliar os interesses dos médicos e das outras categorias da saúde, que temem perder autonomia em suas atividades caso seja mantida a última redação dada ao PL.

Basicamente, o conflito reside no artigo 4 do texto, que afirma que “a formulação do diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição terapêutica são atividades privativas dos médicos”. A “nosologia” consiste no estudo das características da doença de uma pessoa. Trata-se, porém, de uma expressão ampla demais. “Se passar dessa forma, como os outros profissionais vão fazer seu diagnóstico e a prescrição?”, questiona Roberto Cepeda, do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. “Não somos contra o direito de regulamentação da medicina. Só não queremos que o PL traga prejuízo à autonomia profissional de outras categorias. A nutricionista tem formação para prescrever uma dieta. Já a prescrição de exercício terapêutico, o fisioterapeuta é quem deve fazer”, acrescenta Cepeda.

“Já está mais do que comprovado, inclusive até com referências científicas internacionais, que tanto o diagnóstico nosológico quanto a prescrição terapêutica são práticas desenvolvidas por várias categorias dentro de uma equipe de saúde”, afirma Antonio Marcos Freire Gomes, do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Em outras palavras, os críticos entendem que o PL dá margem a uma centralização das decisões nas mãos dos médicos, que não precisariam levar em conta os conhecimentos e as opiniões de outros profissionais na hora de diagnosticar uma doença e receitar um tratamento.

As ressalvas, contudo, não param por aí. Na avaliação do conselheiro do Cofen, o projeto de lei também vai na contramão das políticas de saúde que o próprio governo federal vem criando nos últimos tempos, principalmente para a população de baixa renda, como o Programa Saúde da Família (PSF). De acordo com Gomes, o atendimento na ponta – quer dizer, o que de fato chega à casa das pessoas – é feito majoritariamente por enfermeiros, enquanto os médicos ficam mais como referência em postos e hospitais.

Outro exemplo citado por Gomes é a chamada Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI), programa que busca diminuir os índices de mortalidade das crianças de até 5 anos. “Imagine que um enfermeiro está atendendo uma criança”, propõe o conselheiro. “Ele detecta um problema, conhece a solução, mas não poderá fazer absolutamente nada porque, segundo o projeto, essa é uma atribuição exclusiva do médico. Isso será um retrocesso total no processo de atuação multiprofissional dentro da saúde”, critica. Em tese, caso o novo PL passe, até mesmo a atividade de tatuadores e a de acupunturistas – por envolverem procedimentos invasivos – ficariam condicionadas à orientação de médicos. E há quem entenda medidas dessa natureza como restrição à liberdade de escolha dos pacientes.

Por outro lado, as críticas de “corporativismo” e “autoritarismo” são completamente rechaçadas pelas entidades que representam os médicos. No entendimento do representante do CFM, por não estar devidamente regulamentada, a medicina acaba se tornando uma porta aberta a aventureiros que querem tirar proveito desse vácuo jurídico. “Permitir que um indivíduo com sintomas vagos seja atendido por uma pessoa que vai fazer um tratamento também vago é um perigo enorme”, analisa Murad. No caso da acupuntura, por exemplo, ele defende a exigência de um diagnóstico qualificado que recomende esse tipo de terapia. “Essa história de medicina alternativa não existe, o que existe é medicina. Quem pratica medicina chinesa é médico chinês, não é farmacêutico chinês”, provoca.

Sobre os eventuais problemas que o projeto de lei poderia acarretar aos programas públicos de saúde, o representante do CFM acusa o governo de promover uma política barata para a população pobre, levando os profissionais a desempenhar funções para as quais não se encontram devidamente habilitados. “Não vamos permitir que se faça uma medicina de segunda, baseada na condição social do indivíduo, justamente para dar a ele garantia de qualidade. Isso não significa que ele vai ser atendido apenas por um médico, mas por um serviço de saúde onde todos têm sua função”, afirma Murad.

Como exemplo de práticas delicadas, ele cita o caso dos chamados “partos sem distocia”, aqueles que teoricamente não apresentam complicações e que, por essa razão, podem ser feitos por enfermeiros, de acordo com a lei. “Mas e se ocorrer um problema durante o parto ou depois dele? Como é que uma pessoa que não tem formação para tratar de complicações pode se meter a fazer um procedimento para o qual não está capacitada?”, questiona. “Está na lei, mas somos contra”, complementa.

Não há previsão para a votação do PL do Ato Médico, apesar de não existirem dúvidas de que a regulamentação da medicina é mais do que urgente, principalmente para garantir punições aos oportunistas que se aproveitam da falta de definição legal. Sem dúvida, o diálogo pode resolver as discordâncias entre as categorias da área da saúde e construir uma redação que agrade a gregos e troianos. Porém, a luta para melhorar as condições de trabalho desses profissionais ainda vai requerer muita energia.