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Linha de frente

Em 1988, quando tinha 18 anos, o paulistano Pedro Paulo Soares Pereira juntou-se com os amigos Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue), Edivaldo Pereira Alves (Edy Rock) e Kleber Geraldo Lelis Simões (KL Jay) para formar o grupo de rap Racionais MC’s.

Pedro Paulo é mais conhecido como Mano Brown, a voz mais contundente e amplificada das periferias brasileiras. Suas músicas abordam temas como a criminalidade, a política e o preconceito social e racial. Dono de versos cujos ecos reverberam em todo o Brasil, ele é musicalmente complexo e politicamente feroz. “Minha essência é música de combate”, afirma em depoimento à Revista E.

Com os Racionais, lançou os álbuns Holocausto Urbano (1990), Escolha o seu Caminho (1992), Raio X Brasil (1993), Sobrevivendo no inferno (1997) e Nada Como um Dia após o Outro Dia (2002). Nos dias 18 e 19 de outubro, Brown apresentou o baile black Boogie Naipe no Sesc Vila Mariana. O show, com forte pegada funk, levou ao palco diversos artistas, incluindo o músico e compositor Seu Jorge, além de contar com a participação especial de Caetano Veloso. A seguir, principais trechos.

 

Influências

A primeira coisa que ouvi de rap foi Kurtis Blow [um dos pioneiros do hip hop nos Estados Unidos, autor da música The Breaks, sucesso de 1979]. Mas rap era um termo que não existia no Brasil. A rapaziada da quebrada chamava de balanço. Ouvi falar de um concurso de rap que ia acontecer num salão e falei: “Concurso de quê?”. Eu era muito jovem e é até difícil falar por que decidi [fazer rap].

Acho que não foi nem uma decisão, porque na época era uma coisa mais de diversão. Não tinha nada a perder e entrei nesse concurso. Já cheguei e ganhei. Eu cantava rap no repique de mão. Tinha uma “maloqueirada” que tirava um som no fundo do ônibus.

E eu cantava um rap, mas não tinha nem rima. Era onda. Aí nessas ideias me colocaram o nome de Paulinho Brown, por causa do James Brown. O termo rap coincidiu com a chegada do Run DMC [grupo de rap norte-americano que atingiu sucesso comercial, em 1986, com o álbum Raising Hell] no Brasil, com a MTV. Public Enemy [grupo de hip hop dos Estados Unidos conhecido pelas letras políticas] veio depois, e foi a segunda paulada no rap.

Foi quando a coisa ficou séria. Posso falar que os Racionais começaram a pegar o perfil mais sério na fase do Public Enemy. Porque as notícias que chegavam ao Brasil das ideias que eles já mandavam era um papo muito sério. Isso interessou a gente, porque a gente já pensava naquilo, só que não sabia como pôr em prática.

Gente de peso

Gosto de música mais velha, no sentido da relíquia mesmo. Acho que para melhorar meu som, tenho que aprender com os professores: Marvin Gaye, Parliament, Jorge Ben Jor – que é o rei brasileiro. Se você analisar o trabalho dos Racionais e outras coisas que fiz aí, vai ver que nunca deixei de usar funk, disco, soul e samba.

Racionais é isso aí. O que muda no som do [show] Boogie Naipe é mais a timbragem de época, um termo meio fresco de falar. Se você, por exemplo, mudar uma percussão, pegar um som de computador e pôr junto, o som fica moderno. Se você abrir mão do som de computador, fica velho. É estranho isso aí.  Para o Boogie Naipe, foi feita uma reunião de amigos para tirar um som e mostrar para a plateia um funk, só com gente de peso.

Todo mundo canta sua parte e fica na sua. Só tem gente boa, só zica: [Seu] Jorge, Vanessa Jackson, Lino Kriss, Helião, dois dos melhores DJs do Brasil [os DJs Cia e King], junto com o KL Jay... Não pensa que por causa desses funks, que as pessoas acham que são mais leves, a gente está de chapéu atolado, porque não está, não.

O lance da música é sentir a rua, o ar. E eu estou na rua. Você tem que sentir o que o tempo está precisando. Se ele está com sede, vem água. Mas a gente não faz nada descomprometido. Tudo tem um porquê, pode acreditar! Nada é feito no deslumbre. Qual é a ideia do funk? É fantasia pura. Às vezes é bom dar um pouco de descanso para o cérebro. E esse funk une as pessoas. Mas a minha essência é música de combate. Eu sou isso aí, sei guerrear de várias formas.

Rap é compromisso

Não tenho falado muito sobre política nos últimos tempos, mas sou um cara politicamente ativo o tempo todo. Toda decisão que tomo, quando se trata de rap e de negócio, é baseada na ideologia, na filosofia, nos compromissos das antigas. Tudo que faço é ligado às primeiras ideias pregadas lá atrás, nos anos de 1990. É isso que preservo. 

É compromisso de vida e morte que nós temos. A gente fala de coisas pesadas da vida cotidiana, mexe com coisas da sociedade que ninguém quer mexer. Não só eu, vários caras do rap também. Nunca me coloquei na posição do herói, porque tem muita gente lutando aí também. E sou operário do barato, não sou um gênio. Luto, trabalho muitas horas e queimo neurônios nisso.

Faço a minha parte, mas não faço propaganda. O problema do pobre tem que ser do rico também. A gente não pode achar que uma criança sofrer é normal porque ela é negra, ou ser sequestrada é normal porque ela é branca. Está errado. O que ofende o filho do outro ofende o nosso. O que a gente quer para os nossos filhos a gente quer para todos. Tudo que a gente faz é para o futuro, é para os próximos. Não é a gente que vai usufruir o melhor, não vai chegar a curtir a mudança consolidada. 

Lideranças

Para chegar aonde o Obama [o presidente norte-americano Barack Obama] chegou, muita gente trabalhou, tanto negros quanto brancos. Chegou por mérito próprio também, ele é bom. Mudou a cor do presidente, que significa um processo de mudança.

Mas não significa que ele será a solução, nem significa que os Estados Unidos mudaram por inteiro. Mas o mundo está caminhando para negociações mais justas. E o mundo tem que caminhar para esse lado aí. A Dilma ter sido eleita também mostra que o mundo está nesse processo de negociações.  Fiz a música para o Marighella, que é um documentário [dirigido por Isa Grinspum Ferraz] que acabou de ser lançado. Esse som [de mesmo nome que o filme] virou um debate político monstro na internet.

Começaram a rediscutir a política do Brasil, a época da ditadura, o comunismo. Por causa de uma música! E o cara era liderança, negrão, zica, combatente... Para os moleques periféricos, da favela, é motivo de orgulho saber o que um dos nossos representou. Mas a história foi abafada.  Se a gente quisesse lançar um disco hoje, lançaria. É que a gente é exigente mesmo.

A gente resolveu começar a fazer músicas para o próximo álbum de um ano para cá. O melhor está por vir. Pode escrever aí: de novo os Racionais não vão passar batidos. Tem várias músicas prontas, e muita ideia. Posso dizer que vai surpreender.
 

Posso falar que os Racionais começaram a pegar o perfil mais sério na fase do Public Enemy... Isso interessou a gente, porque a gente já pensava naquilo, só que não sabia como pôr em prática.