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Manolo Florentino

foto: Adriana Vichi
foto: Adriana Vichi

Nascido no Espírito Santo, em 1958, o historiador Manolo Florentino tem um intenso trabalho voltado à temática da escravatura nas Américas, na África e, particularmente, no Brasil. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é autor de Em Costas Negras – Uma História do Tráfico de Escravos entre a África e o Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 1997), entre outros.

Nesse livro, vincula o comércio escravista à demanda crescente de mão de obra da economia fluminense. “A escravidão era a alma do sistema político imperial e sem ela a monarquia não poderia perdurar”, declara Florentino à Revista E. Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é mestre em estudos africanos, pelo Colégio de México, e doutor pelo programa de pós-graduação em História da UFF. 

Existe hoje um maior interesse sobre a escravidão no Brasil? Tanto interesse do público quanto da própria academia em pesquisar e escrever sobre o assunto?

Vivemos um momento extremamente paradoxal a esse respeito. Para começar, acompanhando as tendências historiográficas gerais mais recentes, tanto no Brasil quanto no Ocidente em geral, há por parte da academia um movimento muito claro que privilegia os estudos sobre a história contemporânea, especialmente sob o ponto de vista cultural e político, em detrimento, por exemplo, da economia ou da demografia.

Ocorre que, no Brasil, nos Estados Unidos e em muitas partes da América Latina, por razões óbvias (foram sociedades escravistas), a escravidão sempre foi e sempre será um tema historiograficamente nobre. E a demanda do mercado constituído, do público em geral, reflete isso, consumindo mais e mais livros sobre nosso passado remoto, os quais muitas vezes não são escritos por historiadores, mas por profissionais que percebem a demanda, escrevem bem e acabam realizando importante trabalho de divulgação, sobretudo jornalistas.

Tenho a impressão de que após a abolição da escravatura iniciou-se no Brasil, por parte das elites, um processo de apagamento desse período da História. É isso mesmo?

De modo algum. Observe que a maneira como se deu a abolição no Brasil instaurou no inconsciente coletivo aquilo que poderíamos chamar de o “problema do negro”. Que papel ele deveria exercer na identidade nacional com o advento da República? Ao longo das três primeiras décadas republicanas, a junção promovida pelos intelectuais entre raça e cultura tendia, veladamente ou não, a excluir o negro de nossa formação.

Foi a partir da publicação de Casa-Grande & Senzala, em 1933, por Gilberto Freyre, que, ao separar-se raça de cultura, a equação foi resolvida e o negro acabou definitivamente incorporado à identidade nacional de modo positivo. 

A luta pela abolição da escravatura foi intensa, longa e mobilizou quase todos os setores da sociedade brasileira da época. Foi talvez o primeiro grande movimento de massas do país. Por que sua importância no estudo da História brasileira é tratada de modo tão ligeiro?

É mais ou menos ligeiro de uns tempos para cá, pois alguns historiadores, fundados em um mitológico protagonismo do abolicionismo escravo encarnado em fugas massivas (que ninguém prova) e em revoltas de cativos (que ninguém viu), insistem em ignorar a complexidade de uma abolição que, sim, apresentou intensa participação popular, de escravos e libertos inclusive, mas que fundamentalmente partiu de cima para baixo.

Inclusive do exterior, pois a escravidão isolava diplomaticamente o Brasil em muitas esferas das relações internacionais – como, aliás, mostrado em algumas hilariantes charges de Angelo Agostini [Caricaturista, ilustrador e desenhista italiano que morou desde os 17 anos no Brasil e publicou seus trabalhos em diversas revistas e jornais nacionais, viveu de 1843 a 1910], por exemplo.

Deve-se matizar esse ligeirismo ao qual se refere a pergunta, pois têm surgido importantes trabalhos no âmbito de nossos programas de pós-graduação. Estes destrincham com vigor o papel de parte do judiciário, da Igreja, da maçonaria e de intelectuais positivistas em prol da abolição.  

A Inglaterra teve um papel importante no final da história da escravidão brasileira. Mas àquela altura a revolução industrial, iniciada por eles, rendia bons dividendos econômicos. A pressão inglesa sobre D. Pedro II, para que abolisse a escravidão, foi uma questão de consciência ou de cálculo financeiro?

Sem dúvida de cálculo político no âmbito internacional, de cálculo econômico, mas sobretudo de um enorme movimento de opinião pública internacional capitaneado em especial pelos quacres [movimento protestante britânico, conhecido pela defesa do pacifismo e da simplicidade], cujas origens remontam ao fim do século 17.

A grande mutação mental ocorrida no Ocidente de então foi redefinir a relação entre escravidão e pecado – se antes a arqueologia do cativeiro ligava-se ao pecado original e à maldição de Cam [refere-se a um trecho do livro bíblico de Gênesis, onde é relatado o episódio no qual Cam foi amaldiçoado por seu pai, Noé, por tê-lo visto embriagado e nu e contado o fato aos seus irmãos, Sem e Jafé], agora a própria escravidão tornou-se pecado.

Ninguém demonstrou melhor isso do que [os historiadores] Roger Anstey e, mais recentemente, Adam Hochschild, no livro Enterrem as Correntes [Record, 2007]. O problema é igualmente epistemológico, visto que, embora a perspectiva marxista esteja em baixa, ainda perdura certa dificuldade em aceitar que movimentos culturais possam determinar rompimentos econômicos e políticos.

A esse respeito, é bom lembrar que a abolição do tráfico britânico, em 1807, ocorreu no momento de pico da produção açucareira inglesa nas Antilhas, fruto exatamente do grande movimento de opinião pública surgido na Inglaterra e logo espalhado pelo mundo. Semelhante paradoxo levou o historiador Seymour Drescher a caracterizar a semelhante abolição de econocide (economicídio).

Alguns historiadores costumam ligar a Proclamação da República ao final da escravatura – contrariados, donos de escravos teriam tirado o apoio à monarquia. Concorda com essa visão?

Sem dúvida. A escravidão era a alma do sistema político imperial e sem ela a monarquia não poderia perdurar. Mais curioso ainda é que grandes abolicionistas negros, como José do Patrocínio, continuaram monarquistas, criando a famosa Guarda Negra, que logo depois da abolição buscava dispersar à força manifestações abolicionistas em nome da Coroa.

Para não falar de movimentos populares de índole messiânica, como o de Antônio Conselheiro [líder espiritual do arraial de Canudos, entre 1893 e 1897, na Bahia], que lutavam contra o Estado em nome do imperador. 

No comércio negreiro havia preferência por escravos vindos de determinadas regiões da África?

No caso do Brasil, a maioria – 70% – dos quase cinco milhões de africanos aqui desembarcados provinham da região congo-angolana, com evidentes flutuações de acordo com as regiões e a época. No cômputo geral, entretanto, a África Ocidental ofereceu a maioria dos escravos desembarcados nas Américas entre 1501 e 1866.

Aliás, o Slave Trade Database [banco de dados do comércio escravagista], projeto internacional que já está on-line, capitaneado pelo professor David Eltis, da Universidade de Emory [nos Estados Unidos], já conseguiu identificar 35 mil das 37 mil viagens negreiras que, presume-se, ocorreram através do Atlântico na época moderna.

Seus dados, os mais fiáveis atualmente, posto que derivados fundamentalmente de fontes alfandegárias, mostram que ao longo de toda a história moderna a África exportou aproximadamente 12,5 milhões de escravos para as Américas, dos quais desembarcaram vivos 10,7 milhões. Destes, o Brasil recebeu quase 5 milhões, e o século 18 concentrou, no âmbito hemisférico, a entrada de mais de 6 milhões, sobretudo em função da demanda do sistema açucareiro caribenho e da mineração brasileira. São os números mais confiáveis atualmente.

Os maus-tratos eram generalizados entre os senhores de escravos? Ou havia regiões brasileiras onde o tratamento era menos brutal?

A escravidão tem, na origem, aquilo que Max Weber [intelectual alemão, nascido em 1864, considerado um dos fundadores da Sociologia] chama de desigualdade de poder. Ou seja, ela é fruto da violência configurada na captura e se mantém também, mas não exclusivamente, por meio da coerção.

Não há como imaginar a escravidão sem coerção, o que torna até certo ponto risíveis os esforços de alguns historiadores que reiteradamente alertam para a natureza violenta do sistema escravista – uma tautologia, óbvio. 

Por que se fala tão pouco de que, mesmo no Brasil, negros comercializavam escravos?

O que ocorre é que a atual historiografia brasileira sobre a escravidão ainda é abolicionista. No sentido de que se aferra à denúncia da escravidão, ao resgate do escravo como vítima passiva do sistema – ou o contrário, tomam o escravo como absolutamente disruptivo em relação ao sistema escravista.

Devemos ultrapassar o óbvio – as agruras próprias do cativeiro e as naturais atitudes de resistência –, o que tornaria a discussão mais complexa. No fundo, sabemos que a sociedade escravista, em todas as Américas, não funcionava no registro polarizado entre cativeiro e liberdade, desconhecendo que entre ambas as pontas havia inúmeros tipos de arranjos sociais possíveis, inclusive de brancos se integrando à escravidão e de não apenas libertos possuidores de escravos, mas igualmente de escravos que detinham outros cativos.   

Concorda que a escravidão antes de ser uma questão comercial europeia foi, sim, um projeto político das próprias elites africanas, que vendiam seus inimigos derrotados? Um projeto africano de poder.

O tráfico de africanos para o mundo islâmico através do Saara implicou a exportação de quase dez milhões de negros para a bacia do Mediterrâneo, Oriente Médio e Ásia entre os séculos 7 e 19. Pelo Mar Vermelho foram mais 3 milhões entre os séculos 9 e 19 e mais 2 milhões através do Índico para a Ásia no mesmo período.

Daí, duas conclusões. Primeira, quem pagou o preço da escravidão foram aldeões, e não as elites nativas africanas. Segunda, o tráfico atlântico se encaixou em um tráfico anterior de africanos, potencializando-o em seus efeitos disruptivos. No fundo, o que está em jogo é a disseminação ancestral da escravidão na própria África e, com ela, o tráfico interno, no qual se encaixaram os tráficos islâmicos e atlântico.

A razão disso é muito bem explicada pelo historiador John Thornton – em sociedades corporativas, em que o indivíduo está atrelado à família, às linhagens ou ao Estado, a única forma culturalmente legítima de enriquecimento pessoal era a acumulação de dependentes, ou seja, mulheres, filhos e, sobretudo, escravos. Temos de superar essa imagem anacrônica da Mãe África cálida e protetora, como se a África fosse o único lugar do mundo em que a concentração de poder não levava à exploração do homem pelo homem. 

Observando-se a sociedade brasileira de agora, pode-se concluir que o projeto de branqueamento engendrado pelas elites pós-escravidão tenha dado resultado? Até que ponto a miscigenação não foi um ato político?

A miscigenação brasileira é nossa fortaleza cultural. Ela é resultado não apenas daquilo que Gilberto Freyre chamava de plasticidade do português, mas sobretudo do enorme desequilíbrio entre homens e mulheres migrantes da metrópole, numa proporção de nove ou dez por uma.

Agora, isso instaura um paradoxo: como se pode miscigenar com aquele a quem se explora, e como se pode explorar àquele com quem se mescla? A única saída teórica para o problema é aceitar que a sociedade colonial era extremamente porosa, permitindo intensos processos de mobilidade social. Em semelhantes movimentos, óbvio, quem ascendia mudava de cor – virava branco –, como bem apontam os clássicos trabalhos de Oracy Nogueira [sociólogo brasileiro] desde os anos de 1950.  

Como se avalia hoje os estudos de Gilberto Freyre?

Casa-Grande & Senzala separou raça de cultura, permitindo restituir positivamente o negro na criação da moderna identidade nacional brasileira. A partir de então o problema passou a ser o significado da escravidão para nossa história, se atrasou nossa entrada no capitalismo, se criou padrões culturais muito específicos como a não separação entre a esfera pública e a esfera privada etc.

É de Gilberto, aliás, a famosa ideia de que a África civilizou o Brasil, que veio acompanhada de estudos específicos sobre as regiões africanas de origem dos escravos que desembarcaram no Brasil. Somente nos últimos tempos se tem retomado essa vertente tão importante que é o estudo da História da África em nossas escolas e universidades. 

A princesa Isabel foi uma abolicionista de fato ou agiu politicamente preparando o terceiro reinado?

Ela pensava exatamente como o seu pai [D. Pedro II], mas eventualmente acreditava na possibilidade de um terceiro reinado sem a escravidão. Errou no cálculo político.

Por que nos Estados Unidos não houve a disseminação do candomblé? Essa religiosidade só veio ao Brasil?

Não é certo que a religiosidade animista afro não vicejou nos Estados Unidos. Um belo filme, Coração Satânico [dirigido por Alan Parker, em 1987], mostra muito bem isso. Vicejou sobretudo na região da Louisiana, mas encontram-se registros em outros locais, seja em sua versão iorubá [o povo iorubá habita parte da Nigéria, do Benin e do Togo], seja na versão jeje [o povo jeje vive em Togo,Gana e Benin]. Até mesmo a nossa famosa feijoada sempre foi comum em muitas localidades do sul dos Estados Unidos. As santerias são igualmente famosas no Caribe, sobretudo em Cuba.

E por que há uma forte identificação do negro norte-americano com o islamismo?

Isso é uma construção recente da historiografia americanista. Farrakhan [Louis Farrakhan, atual líder do grupo negro norte-americano Nação do Islã] e companhia são criações que buscam uma mítica origem islâmica africana dos negros norte-americanos. A maioria dos islamitas negros escravizados saiu da África entre 1750 e 1850 (no máximo 150 mil), tem a ver com o jihad de Usman Dan Fodio [escritor e professor de Direito nascido em Gobir, localizada na atual Nigéria, que viveu entre 1754 e 1817] e com a destruição do império de Oió, e a maior parte deles migrou para o Brasil, especialmente para o Nordeste, sobretudo para a Bahia. Tal movimento é hoje plenamente consolidado em trabalhos de grandes estudiosos como João José Reis, Alberto da Costa e Silva e Paul Lovejoy.
 

“Ao longo de toda a História Moderna a África exportou aproximadamente 12,5 milhões de escravos para as Américas, dos quais desembarcaram vivos cerca de 10 milhões. Destes, o Brasil recebeu quase 5 milhões”  


“Temos de superar essa imagem anacrônica da Mãe África cálida e protetora, como se a África fosse o único lugar do mundo em que a concentração de poder não levava à exploração do homem pelo homem”


“A miscigenação brasileira é nossa fortaleza cultural. Ela é resultado não apenas daquilo que Gilberto Freyre chamava de plasticidade do português, mas sobretudo do enorme desequilíbrio entre homens e mulheres migrantes da metrópole”


“Não há como imaginar a escravidão sem coerção, o que torna até certo ponto risíveis os esforços de alguns historiadores que reiteradamente alertam para a natureza violenta do sistema escravista – uma tautologia”


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