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De onde vieram os índios brasileiros?

por Evanildo da Silveira

“E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito [...]. Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas.” Escrito por Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta em que comunica ao rei de Portugal, dom Manuel I, a “descoberta” do Brasil, este é o primeiro relato do encontro entre os portugueses e os povos que aqui viviam. Também é o ponto de partida da história oficial brasileira. Pouco ou quase nada se aprende na escola do que havia daí para trás no tempo. As terras que hoje são o Brasil, contudo, já eram habitadas havia milênios. Quem eram as pessoas que viviam nelas, de onde vieram, como e quando chegaram e como viviam ainda é motivo de controvérsia entre os estudiosos do assunto, mas os avanços da arqueologia brasileira nos últimos anos estão trazendo luz a essa questão. Apesar das lacunas e pontos obscuros, o cenário fica cada vez mais definido.

Com a ajuda de novas ciências, como a bioantropologia e a genética, está sendo desenhado um panorama diferente do ensinado nas escolas, mais rico e diversificado. Hoje há praticamente um consenso entre os estudiosos de que a primeira ocupação do território que viria a ser o Brasil ocorreu há pelo menos 12 mil anos. Na opinião de alguns, primeiro por uma população diferente da encontrada aqui por Cabral. Trata-se do povo de Luzia, o fóssil mais antigo de que se tem registro no país, com 11,3 mil anos. Eram os chamados paleoíndios ou paleoamericanos, que tinham uma conformação craniana mais parecida com a dos aborígines australianos e a dos africanos que com a dos índios de traços mongoloides que se conhecem. Para outros, os indígenas atuais ou ameríndios e os primeiros que chegaram à região fazem parte de um mesmo tipo, cujas diferenças morfológicas podem ser explicadas pela variabilidade natural que existe dentro de uma população qualquer.

Ninguém sabe ao certo, mas estima-se que quando a frota de 13 embarcações comandada por Pedro Álvares Cabral aportou na região da atual cidade de Porto Seguro, no sul da Bahia, o território que hoje é o Brasil era habitado por algo entre 1 e 6 milhões de indígenas. Na visão dos recém-chegados eles eram todos iguais, ou melhor, todos faziam parte de um mesmo povo. Essa ideia errônea começou a mudar graças ao médico, explorador, etnólogo e antropólogo alemão Karl von den Steinen (1855-1929), que viajou pelo interior do país em 1884 e depois em 1887. Ele constatou que os índios brasileiros poderiam ser agrupados – ou divididos, como se queira – em quatro grandes grupos ou troncos linguísticos: tupi-guarani, macro-jê, aruaque e caribe. Cada um desses supergrupos é dividido, por sua vez, em dezenas ou centenas de nações, com sua língua, cultura, costumes e modos de vida.

Esse, porém, é apenas o fim da história, ou aquilo que se aprende na escola. O problema está em saber como ela começou. Apesar de todas as diferenças, os povos encontrados pelos portugueses tinham algo em comum: todos estavam ainda na Idade da Pedra. Isso significa que não conheciam a roda nem a pólvora, e muito menos a escrita. Ou seja, viviam da caça, da coleta e de uma agricultura incipiente. Seus antepassados, os primeiros “brasileiros”, estavam num estágio anterior de desenvolvimento, pois desconheciam completamente o cultivo de alimentos. Eram apenas caçadores coletores. E por serem ágrafas, essas populações não deixaram, evidentemente, documentos escritos sobre sua história, de onde vieram e como viviam.

Sem modelo e sem documento

Além disso, como lembra o arqueólogo francês aqui radicado André Prous, no livro O Brasil antes dos Brasileiros – A Pré-História do Nosso País, há outra circunstância que dificulta o conhecimento sobre os primeiros habitantes do país. De acordo com ele, os povos ameríndios que sobreviveram até hoje são poucos em relação aos que existiram outrora e se modificaram muito ao longo do tempo. Por isso, não oferecem uma imagem adequada de seus ancestrais. Sem documentos escritos e sem poder usar os indígenas atuais como modelos, o trabalho de descortinar e escrever a história dessa gente do passado remoto é muito mais difícil. Deixa de ser tarefa de historiadores, que se baseiam em textos, e de sociólogos e antropólogos, que se amparam na observação direta das sociedades vivas, para ser obra de arqueólogos, bioantropólogos e, mais recentemente, geneticistas.

Os primeiros, como observa Prous, se valem exclusivamente dos vestígios materiais que as populações antigas deixaram, quase sempre involuntariamente, e que foram preservados dos processos naturais de degradação. Ou seja, que se fossilizaram. São elementos diversos como restos de corpos, instrumentos, ferramentas e moradias. Isso quer dizer que esses profissionais estudam o que se chama de “cultura material” dos povos antigos, bem como a vida cotidiana e o ambiente que habitavam. Os bioantropólogos, por sua vez, se limitam às ossadas humanas fossilizadas, analisando sua morfologia craniana e outras características físicas.

No caso dos geneticistas, que começaram a se interessar pelo assunto mais recentemente, os estudos se relacionam à análise do DNA de nativos americanos modernos. “Esse tipo de abordagem tem sido muito usado para desvendar a história evolutiva e demográfica dos primeiros americanos”, explica Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Isso porque no genoma de populações modernas há marcas que indicam, por exemplo, se passaram por gargalos populacionais, expansões, ou ainda se há sinal de adaptação a ambientes diversos.” O método também possibilita avaliar onde estão os povos que mais se identificam com os nativos americanos. Os estudos mais recentes apontam para a Ásia, mais especificamente a Sibéria.

Essa origem asiática dos primeiros habitantes da América e, por consequência, do Brasil, é aceita por quase todos os pesquisadores do assunto. Segundo essa teoria, eles teriam chegado pelo estreito de Bering há cerca de 16 mil anos e depois se espalhado pelo continente. Há, porém, quem pense diferente. No Brasil, um caso notório é a arqueóloga paulista Niède Guidon, que desde 1978 realiza escavações no sul do Piauí. Ela defende a hipótese de que os primeiros seres humanos a pôr os pés no país vieram diretamente da África, entre 150 mil e 110 mil anos atrás, “saltando” de ilha em ilha pelo meio do oceano Atlântico, que, devido a glaciações, estava cerca de 120 metros mais baixo que hoje. O problema é que jamais foram encontrados ossos fossilizados desses pioneiros, o que coloca em xeque a teoria.

Por isso, é quase consenso entre os especialistas que os primeiros brasileiros chegaram ao país pelo noroeste, ou mais precisamente pela Amazônia. A partir dessa região, eles foram paulatinamente ocupando o resto do território, alguns grupos pelo interior, outros margeando a costa. Estes, mais tarde, também podem ter conquistado o interior a partir do litoral, seguindo os cursos dos rios. Seja como for, o que os estudos mais recentes têm revelado é que há 10 mil anos praticamente todo o território brasileiro já era habitado. A prova disso são vários sítios arqueológicos com vestígios ao redor dessa idade encontrados em diversas partes do país.

Ossos em profusão

Entre as regiões mais ricas nesses restos de culturas pré-históricas está a do município de Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ali, dezenas de sítios arqueológicos vêm sendo escavados e pesquisados desde 1843, quando o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), considerado o pai da paleontologia brasileira, descobriu ossadas humanas misturadas com as de animais já extintos. Até hoje, dezenas de crânios e outros ossos humanos foram desenterrados do local. Entre eles, o mais famoso de todos é o crânio de Luzia, descoberto em 1974 pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, no sítio chamado Lapa Vermelha IV.

Sítios com vestígios humanos de mais de 10 mil anos também foram encontrados na Amazônia e em Mato Grosso. Neste último caso, foi divulgada em 2002 a descoberta de três fragmentos de ossos de animais, com pelo menos 25 mil anos, nos quais se constatou, por meio de sofisticadas análises laboratoriais, cortes e polimentos que não foram moldados pela natureza e que só podem ter sido feitos por humanos. É um dos resultados do trabalho de uma equipe de arqueólogos brasileiros e franceses, iniciado em 1985, no sítio arqueológico de Santa Elina, no município de Jangada, há 82 quilômetros de Cuiabá. Apesar de a datação ter sido feita por métodos confiáveis, o achado ainda não é de todo aceito pela comunidade científica, pois é um caso isolado, que necessita de mais estudos.

Em relação ao sítio amazônico, a descoberta é menos controversa. No final dos anos 1990, a pesquisadora americana Anna Roosevelt (bisneta do presidente americano Theodore Roosevelt) encontrou, na caverna de Pedra Pintada, em Monte Alegre, próximo a Santarém, no Pará, milhares de lascas de rocha trabalhada e mais de 20 instrumentos de pedra (pontas de facas, dardos, lanças e arpões), alguns datados de até 11,3 mil anos.

A descoberta de Anna, que trabalhou na região por quase uma década com uma equipe composta também por pesquisadores brasileiros, revolucionou o conhecimento da ocupação do Brasil e, por extensão, das Américas. Ela demonstrou que, ao contrário da teoria corrente na época, a floresta tropical amazônica era capaz de abrigar uma sociedade organizada. “Havia um mito de que é muito difícil sobreviver na Amazônia e que as populações antigas a evitavam”, diz o bioantropólogo Walter Alves Neves, da Universidade de São Paulo (USP), autor do livro O Povo de Luzia – Em Busca dos Primeiros Americanos. “Para mim, isso nunca fez sentido. A amazônica é como qualquer outra floresta tropical do mundo, e todas foram ocupadas pelo homem.”

Traços africanos

Apesar de mostrar a antiguidade da ocupação, os sítios arqueológicos raramente dão indicações de como eram esses indígenas pioneiros. Na opinião de Neves, os primeiros habitantes do Brasil eram parentes do povo de Luzia. Sua convicção teve início com o estudo que fez do crânio fossilizado desse indivíduo jovem, do sexo feminino, que, desde sua descoberta em Lagoa Santa, repousou esquecido numa gaveta do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em 1995, o pesquisador da USP fez medidas antropométricas do crânio. Os dados mostravam que Luzia tinha mais a ver com os africanos que com os índios atuais.

Por isso, a seu ver esses caçadores coletores, que usavam cavernas e abrigos sob rochas como acampamentos temporários e para enterrar seus mortos, foram os primeiros a ocupar o território brasileiro, então virgem da presença humana. Uma nova descoberta, feita em 2000 no sítio arqueológico denominado Capelinha I, localizado na bacia do rio Jacupiranga, no vale do Ribeira, em São Paulo, veio reforçar a hipótese de Neves. Trata-se do crânio, de aproximadamente 9 mil anos, de um indivíduo de baixa estatura, com cerca de 1,60 metro, cujas medidas e formato têm características similares às encontradas nos atuais aborígines australianos e africanos, e em Luzia. Por isso, foi batizado de Luzio.

Um dos questionamentos que é feito à hipótese de Neves é que se essas populações realmente existiram e ocuparam o território brasileiro por que não deixaram descendentes, já que todos os índios de hoje – e os que receberam os portugueses – têm morfologia mongoloide? Ele explica que quando propôs seu modelo de ocupação da América, chamado de Dois Componentes Biológicos Principais, porque acreditava que houve duas levas de migração, uma anterior – a do povo de Luzia – e uma posterior – a dos mongoloides –, ele defendia a ideia de que houve uma troca populacional dos primeiros pelos segundos. “Eu acreditava que os ameríndios substituíram completamente os grupos paleoamericanos”, diz.

Com a continuidade de suas pesquisas e as novas descobertas que fez, Neves diz que se viu obrigado a alterar suas convicções. “Recentemente tive de dar uma ajustada em meu modelo”, conta. Isso ocorreu depois que estudou uma coleção de crânios de índios botocudos, que na época do descobrimento habitavam o norte de Minas Gerais e o sul da Bahia, levando-o a concluir que não houve uma substituição total. “Nós medimos e comparamos esses crânios com os de ameríndios e de paleoamericanos”, explica. “Constatamos que eles têm uma similaridade muito grande com estes últimos. Pode-se dizer, então, que os botocudos, que sobreviveram até o início do século 20, eram descendentes do povo de Luzia. Também estudamos crânios semelhantes encontrados no México e na Flórida.”

Independentemente da aparência que tinham e de onde tenham vindo, o certo é que os primeiros povoadores do Brasil deviam viver em sobressalto. Por pelo menos 2 mil anos é provável que eles saíssem de seus abrigos ou moradias cautelosos e olhando para todos os lados para caçar ou coletar alimentos. Eles sabiam que, em algum lugar, um dos mais perigosos predadores que já viveu no planeta, o tigre-dentes-de-sabre (Smilodon populator) – um felídeo do tamanho de um leão, que tinha como marca registrada duas afiadas presas, com até 30 centímetros de comprimento – poderia estar à espreita para fazer deles o seu almoço.

Não é hipótese. A prova de que seres humanos e a chamada megafauna do Pleistoceno (período geológico que se estendeu de 2 milhões a 11 mil anos atrás) conviveram no Brasil foi obtida por Neves em 2004. Testes de carbono 14 em fragmentos de ossos do S. populator, encontrados na região de Lagoa Santa (MG), comprovaram que essa espécie de felino viveu há até pelo menos 9,2 mil anos. Como é o mesmo local onde foi descoberto o crânio de Luzia, foi fácil para o pesquisador concluir que as duas espécies conviveram por pelo menos 2 mil anos.

Terra de gigantes

Na época o clima e a paisagem do Brasil eram diferentes. Não havia o país tropical, habitado por uma fauna exuberante e colorida como a de hoje. Era mais frio e com o território dominado por savanas, a morada ideal de bichos grandes e estranhos para os padrões a que estamos acostumados. Os donos do pedaço eram preguiças e tatus gigantes, tigres-dentes-de-sabre e mastodontes.

Um dos maiores e mais impressionantes animais que viveram nessa época era a preguiça-gigante (Megatherium americanum), que media 6 metros da cabeça à extremidade da cauda e, quando erguida nas patas traseiras, chegava a 3 metros de altura. O gliptodonte (Pampatherium paulacoutoi) era outro gigante das savanas, e tinha quase o tamanho de um Fusca. Era uma espécie de tatu tamanho família, cuja biologia devia ser como a dos similares modernos, só que em escala maior. O mastodonte (Haplomastodon waringi) era um animal parecido, em tamanho e hábitos, com os atuais elefantes.

O antropólogo argentino Rolando González-José, do Centro Nacional Patagónico, não concorda com a teoria de substituição de Neves. Ele baseia sua discordância num trabalho, feito junto com pesquisadores brasileiros, no qual analisou 10 mil amostras de dados genéticos e as características anatômicas de 576 crânios de populações extintas e atuais do continente americano.

De acordo com ele, as linhagens genéticas americanas e dos povos do nordeste asiático são irmãs, ou seja, compartilham o mesmo ancestral. “Além disso, em minha análise de variância craniofacial dos americanos não detectei a existência de dois componentes, mas sim de um continuum, no qual numa extremidade há uma variação generalizada (incluindo grupos de antigos e modernos) e na outra os grupos mais recentes da América do Norte, como os inuítes (esquimós)”, explica. “Entre esses dois extremos, não existe uma descontinuidade significativa na variação, mas o oposto.” De qualquer forma, na opinião de González-José a hipótese de Neves foi muito importante durante os anos 1990, pois permitiu que especialistas de todo o mundo prestassem atenção aos altos níveis de variação morfológica existentes no continente americano.

O certo é que a partir de 8 mil anos atrás, pouco mais, pouco menos, os ameríndios foram povoando todo o território. Por volta de 3 mil anos atrás descobriram a agricultura e, embora não haja registros, a população deve ter dado um salto – como aconteceu ao longo da história com todas as sociedades que deixaram de apenas caçar e coletar para cultivar parte de seus alimentos. Os grupos devem ter crescido e passado a se dividir em várias nações e tribos, até aquelas que havia na época de Cabral. Entre elas, os tupiniquins, que receberam os portugueses de forma amistosa. Não sabiam que era o início da longa trajetória dos brancos em Pindorama.