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Além de desenhos, recordatórios e balões

Em 1975, a revista de histórias em quadrinhos francesa Métal Hurlant – base de uma cena de ficção científica regada a LSD que misturava em doses cavalares o fantástico, questionamentos filosóficos e psicodelia – publicava em episódios La Nuit, de Philippe Druillet. A bizarra história de uma gangue de motoqueiros em um mundo apocalíptico estava na metade quando Nicole, a mulher do autor, morreu de câncer.

A partir daí, no meio das ilustrações, começam a aparecer fotos dela. São quatro imagens. E essas páginas, com fotos emolduradas por desenhos tortos, insanos e cores berrantes, são uma das mais puras e brutais representações da tristeza que já vi.

As HQs foram o começo de tudo para mim. Quis aprender a ler por causa delas. Das histórias com a Mônica, Cebolinha, Donald e Mickey passei para os super-heróis; daí, parti para outros voos. Os anos 80 foram uma boa época para ser fã de HQ, pois além
do surgimento da Chiclete com Banana e da Circo – terreno para Angeli, Laerte, Glauco e comparsas mostrarem seu trabalho – as
bancas abriam espaço para outras revistas, brasileiras e estrangeiras, que acabavam virando, para um moleque como eu, um grande “showroom” de formas e jeitos de se narrar uma história.

Uma característica fundamental das HQs é a sugestão de movimento: as imagens e o texto estão ali, mas a ação entre cada desenho não é mostrada, forma-se na cabeça do leitor. Assim como no cinema e na literatura, a narração e os diálogos podem possuir diferentes níveis de profundidade. Mas é na arte das HQs que estão os elementos para criação mental do ritmo. Uma simples ação, contida numa página, pode ser seca como uma descrição de Dashiell Hammett ou detalhada como se escrita por Eça de Queirós; um movimento pode ter cortes rápidos e clipados ou sugerir uma câmera lenta digna do Zabriskie Point, do Antonioni. O leitor tem uma participação fundamental nessas possibilidades, pois é dele o olho que vai percorrer ou ignorar elementos e o cérebro que vai juntar imagens e palavras em uma narrativa.

Pois quando comecei a estudar essas questões foi que também percebi outro ponto: além de narrar de forma diferente, alguns autores colocavam outras coisas em suas histórias, sutis, mais profundas. De repente, no que era meu escapismo pré-adolescente, comecei a entender questionamentos filosóficos, narrativos e de arte. Ao mesmo tempo, eu não entendia porque diabos quase todo mundo tratava as HQs como algo superficial, rápido, fácil e seguro, condenando as revistas mais bacanas - as que traziam obras pessoais como La Nuit – a falir em poucas edições.

O superficial é mais seguro para produção e consumo. Mas, como todo meio de comunicação, é importante existir a estrutura para a produção diferente ser mostrada. De zines xerocados a álbuns coloridos em couché, naquela época existia um espaço para conhecer outras possibilidades. Tentando entender tudo isso, acabei caindo para outros estudos. Cinema, literatura e finalmente comunicação, que me levou onde estou hoje: internet.

No fundo, o importante não é só o que é dito, mas também o sutil, o que você não escancara. O especial, o que pode mudar alguém, é o que transmite ideias e sensações de novas formas. Foi o que HQs como La Nuit fizeram comigo. Com o passar dos anos, o mercado encolheu para as HQs e o trabalho autoral estava escondido em uns cantos editorias. Dá um bruta de um alívio ver agora as coisas se reerguendo, autores brasileiros conseguindo seu espaço, mostrando seus caminhos, suas formas de ver e contar o mundo e, principalmente, as diferentes formas de se construir uma HQ.

Não dá para falar o que uma História em Quadrinhos deve ser porque, na real, ela não são nada, absolutamente nada, porque  podem ser tudo, qualquer coisa que desejarem.

Adriano Vannucchi, formado em Comunicação com especialização em cinema, é coordenador de projetos no Portal Sesc SP.