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Você dorme e eles trabalham

Rogassiano: 4 a 5 horas de sono por dia e o fim do casamento / Foto: Silvia Kochen
Rogassiano: 4 a 5 horas de sono por dia e o fim do casamento / Foto: Silvia Kochen

Por: SILVIA KOCHEN

Todos os dias, Clóvis Marcos Rogassiano, de 54 anos, começa a trabalhar às 18 horas. Fica no batente até às sete da manhã do dia seguinte e, mesmo depois de voltar para casa, tem mais afazeres pela frente, obrigações domésticas que o mantém ocupado até ao meio-dia, quando, então, vai dormir para, dali a pouco, iniciar outra caminhada rumo ao emprego. Na realidade, Rogassiano dorme pouco: às 16 horas está novamente em pé. Ele é um desses muitos brasileiros que dormem mal e convivem pouco com a família porque sua profissão e o fato de morar longe imprimem um ritmo desordenado à sua vida.

Rogassiano é padeiro e empresta sua mão de obra ao mesmo estabelecimento, na Grande São Paulo, há exatos 36 anos. Ele nasceu em Resende, no Rio de Janeiro, e se mudou para capital paulista ainda adolescente. Como tudo começou? Certo dia, aos 18 anos de idade, acompanhou um primo que já trabalhava naquela padaria. Acabou empregado e, no início, labutava de dia e só eventualmente atuava no período noturno. Como qualquer rapaz de sua idade, ele namorava e se casou em 1985.

“Foi nessa época que tive de me atirar de corpo e alma ao serviço para conquistar meus objetivos, como construir a minha casa”, conta Rogassiano. Ele não fazia questão de trabalhar 13 horas por dia e há 15 anos passou para o turno da noite. O tempo foi passando e vieram três filhos (hoje com 27, 26 e 12 anos) e também as brigas com a esposa, que cobrava dele mais tempo e atenção para a família. Há quase oito anos, ele separou-se, um desfecho que tem pautado a vida de tantos outros brasileiros, especialmente nas grandes metrópoles, que consomem a maior parte da noite no emprego depois de sacolejaram horas a fio dentro de coletivos, metrôs e trens no caminho entre suas casas e o trabalho.

A tecnologia e o acesso ao crédito produtivo facilitaram muito o dia a dia de pequenas empresas como panificadoras de bairro. Boa parte delas consegue funcionar sem a presença de um padeiro, pois dispõem de câmaras frias onde armazenam a massa do pão para ser congelada. Mesmo assim, para oferecer pão fresquinho para o café da manhã da clientela, se requer muito trabalho. Solange (nome fictício, pois a entrevistada impôs essa condição para falar com a reportagem) costuma sair de casa às 4 horas da madrugada para trabalhar na panificadora do bairro paulistano em que ela mora. Ao chegar, liga o forno e coloca os pães para assar já que a primeira leva é de encomendas (normalmente para bares ou empresas que servem café matinal a seus funcionários), que são retiradas entre cinco horas e cinco e meia da manhã. Às 6 horas, o estabelecimento abre suas portas para o atendimento do público em geral. O trabalho segue incessante, horas seguidas, e, eventualmente, avança até à noite, tanto que muitas vezes Solange entra no serviço à tarde, pois os turnos podem ser rotativos.

Trabalhadores “invisíveis” também labutam em horários reconhecidamente malucos. Um desses brasileiros abnegados é Luiz Carlos dos Reis, de 51 anos, motorista há 25. Ele consome horas atrás do volante de uma betoneira, um veículo extremamente pesado, sai de casa às 5 horas da manhã para pegar no serviço às seis. Mas “não tem hora para largar o batente”, diz, tanto que só está de volta ao lar às 20 horas. “Não consigo levar uma vida de pai como manda o figurino, pois só vejo meus filhos no final de semana”, diz Reis. Ele tem cinco filhos: duas mulheres, de 22 anos e 13 anos, e três homens, de 18 anos, 16 e 8 anos. Quem garante o cuidado da família é a esposa, que é dona de casa. Reis se queixa de que fica o tempo todo “à mercê da empresa”, mas diz que não pode reclamar porque, é claro, precisa do emprego.

No entanto, engana-se quem pensa que só empregados estão sujeitos a horários imprevistos de trabalho. Valdir Gonçalvez da Cruz é caminhoneiro autônomo e enfrenta os mesmos problemas apontados por Reis. Ele trabalha com o transporte de terra em obras de terraplenagem, por empreitada, e fica poucos dias em cada lugar. Normalmente acorda às 5 horas da manhã para iniciar o serviço às sete. Se tiver sorte, termina tudo até às 17 horas, mas quando o pagamento é por comissão e o que importa é a produção, o trabalho pode se estender até às 6 horas da manhã do dia seguinte. Cruz está no volante do caminhão de terraplenagem há nove anos. Há cinco, teve um enfarte. Depois sofreu uma fratura de coluna ao cair do veículo. Ele sonha em se aposentar aos 65 anos (hoje está com 61 anos).

Parceiro no classificado

Horários malucos de trabalho costumam dar origem a problemas familiares ou a famílias pouco convencionais. Vera Lucia da Silva é um exemplo. Ela e o caminhoneiro Tonilson Santos Silva casaram-se quando tinham 42 anos de idade. Era o primeiro casamento de ambos. Um ano depois, nasceu a filha, Shamyra, hoje com sete anos. Mas os membros da família Silva raramente se veem, pois frequentemente Tonilson é chamado para trabalhar no meio da madrugada. “Muitas vezes, quando estou saindo para o meu trabalho dou de cara com ele chegando em casa”, diz Vera. Ela conta que já sabia que seria assim, afinal é filha de caminhoneiro. “Meu pai, devido à profissão, sumia de casa e, não raro, ficava até dois meses sem dar notícia, andando pelas estradas”. Hoje, ela observa, é bem mais fácil porque tem celular e rádio.

Vera conta que teve vários namorados antes, mas tinha dificuldade em encontrar uma pessoa com as mesmas afinidades que ela, que gostasse de estrada e de caminhão. Por isso, resolveu buscar um parceiro no classificado sentimental (seção “bate-coração”) da revista “O Carreteiro”. Tonilson teve outras namoradas no passado, mas nenhuma entendia as agruras de sua profissão, com horários desregrados e longos períodos fora de casa. Embora os gostos batessem, o período de namoro não foi fácil. “Devido à profissão dele, que o mantinha preso à estrada, demorou quatro meses até conseguirmos nos encontrar pessoalmente”, recorda Vera. Ela precisou ir até Moji Mirim, no interior de São Paulo, para conhecê-lo, pois sempre que combinavam algo, era preciso desmarcar porque ele estava viajando e não podia voltar. Após um ano de namoro, e como só se falavam por telefone, decidiram se casar.

Há cerca de um ano, Tonilson mudou de emprego com a intenção de ficar mais perto da família. Ele agora é caminhoneiro do setor de distribuição de uma grande empresa frigorífica. Mas continua sem horários reservados para a família: um dia sai para trabalhar as 20h30 e volta no dia seguinte, às 10 horas. Às vezes, sai em viagem para entregar uma carga no interior do estado e só retorna dois ou três dias depois. Muitas vezes, fica sem ver a filha, que acompanha a mãe no serviço durante a manhã e vai para a escola à tarde. Se Shamyra fica sem ver o pai por mais de 48 horas, começa a se preocupar: liga a televisão e assiste aos noticiários para saber se aconteceu alguma coisa na estrada. “Mas eu a ensinei a respeitar a profissão do pai”, diz Vera, que tem dois caminhões tatuados nas costas.

Flávia (nome fictício porque a entrevistada quis assim) é cobradora de ônibus. Ela costuma acordar às 4 horas para fazer a primeira viagem da linha, que sai do ponto inicial às 4h40. Nesse horário, a maioria dos passageiros é do sexo feminino, mulheres que precisam pegar várias conduções para entrar no serviço às 6 horas. Flávia faz várias viagens no decorrer do dia e, eventualmente, segue trabalhando também durante a noite. “É que nem sempre tem gente para cobrir a linha e aí eu tenho que assumir”, diz. “É cansativo!” Mas Flávia tem sorte: como mora perto do ponto inicial, não precisa pegar o ônibus “negreiro” para chegar ao trabalho.

“Negreiro” é nome dado ao ônibus que pega os trabalhadores do setor de transporte urbano (motoristas e cobradores) durante a madrugada, e que os conduzem até as garagens a fim de retirarem os ônibus com os quais passarão a trabalhar – e cuja atividade geralmente tem início às 4 horas da manhã. “Eles saem de casa muito cedo, às 3 horas, têm uma jornada prolongada e um desgaste excessivo, tanto físico quanto psicológico”, diz o médico Kleber Torres Soares, que desde 1988 atende no Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano de São Paulo, entidade que representa também os cobradores do transporte urbano.

Jeans e chapéu

Soares é especializado em medicina do trabalho e ao analisar os malefícios causados às pessoas que cumprem horários tresloucados de trabalho cita um estudo do Hospital das Clínicas de São Paulo sobre as doenças que afetam os motoristas profissionais. Além do estresse natural do trânsito, o fato de dormir pouco e mal rende resultados perversos sobre a saúde. “É muito comum que o sujeito more na Zona Leste e trabalhe na Zona Sul”, observa o médico. “E em vez de se deitar às 19 ou 20 horas para acordar às três, costuma se recolher às 22 horas”. Soares diz que a falta de sono por um período longo acaba provocando um desgaste progressivo. “Esse déficit de sono vai se traduzir em irritabilidade, ansiedade e nervosismo. E, às vezes, também provoca apatia”.

Não é apenas isso. Esses sintomas acabam causando também distúrbios sociais, pois o comportamento da pessoa no ambiente familiar e de trabalho pode gerar conflitos, e, é comum, a demissão do emprego ou a separação do cônjuge. Mas como tudo isso também pode resultar em desatenção ao volante, corre-se o sério risco de acidentes. Explica o médico, ainda, que a falta de sono pode causar distúrbios psiquiátricos incapacitantes, conforme a gravidade do quadro.

O limiar de resistência à falta de sono é individual. O chamado sono paradoxal, com o relaxamento total e a recomposição do indivíduo para o dia seguinte, normalmente dura poucos segundos, mas nem todos experimentam essa particularidade quando dormem. Segundo Soares, essa é a explicação para o fato de que algumas pessoas dormem pouco e acordam dispostas enquanto outras dormem muito, mas acordam cansadas. Dormir pouco, com a preocupação de não perder a hora, também pode interferir na qualidade do sono, impedindo que a pessoa chegue ao sono paradoxal, também conhecido por REM (da sigla em inglês rapid eye movement). É nessa fase que os olhos se mexem rapidamente, por baixo das pálpebras. O médico ainda alerta que a falta de sono também pode resultar em problemas para o organismo. “O efeito cumulativo do déficit de sono pode causar dor de cabeça, alterações digestivas – como gastrite e úlcera – e hipertensão”. Além disso, o estresse vai se acumulando e a pessoa se alimenta mal, abrindo as portas para o surgimento de uma série de outras doenças.

Camila Harunna Girotto é técnica de enfermagem e durante anos trabalhou no serviço de resgate médico. Como muitos trabalhadores da área de saúde, ela tinha um turno no regime 12 por 36, o que significa 12 horas seguidas de serviço e 36 de folga. Pode parecer pouco, mas o trabalho é muito pesado com o atendimento de vítimas de acidente de trânsito, pessoas enfartadas, crianças com crise respiratória, gente baleada ou esfaqueada.

Quando o plantão de Camila começava às 6 horas, ela tinha de chegar antes, pois não podia correr o risco de se atrasar. Por isso, saia de casa às 4 horas. Ficava esperando o ônibus naquela escuridão, sem ninguém na rua, e morria de medo. “Certa vez, enquanto aguardava a condução, um carro com cinco rapazes parou e eles passaram a mexer comigo”. Camila diz que ficou apavorada ante a possibilidade de ser puxada para dentro do veículo. Então, teve uma ideia luminosa: sacou do celular e fingiu falar com alguém. Os rapazes, rapidamente, deram no pé. Ao chegar ao hospital onde trabalhava, Camila comentou o fato com um policial que lhe deu um conselho: “Vista-se de modo a parecer um homem”, ele a orientou. A partir dali, quando tinha de sair de casa de madrugada, a técnica de enfermagem vestia jeans, camiseta e um boné ou chapéu, dentro do qual escondia sua longa cabeleira. Camila deixou o emprego e montou uma pequena confecção artesanal.