Arte, escrita e criação de novos imaginários sobre o HIV

23/11/2023

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Ilustração de Priscila Barbosa

Por Leandro Noronha da Fonseca

Diversas transformações têm ocorrido no campo do HIV/aids, passadas mais de quatro décadas de seu surgimento. O diagnóstico positivo já não é mais uma “sentença de morte” para muitas pessoas. Tratamentos antirretrovirais mais potentes, e com menor toxicidade, promovem maior qualidade de vida. O tratamento regular possibilita, ainda, a indetectabilidade do vírus e sua consequente intransmissibilidade – o que tem sido conhecido como Indetectável = Intransmissível. A promoção de campanhas sobre o I = I tem colaborado para uma mentalidade mais aberta sobre a afetividade e sexualidade de pessoas vivendo com HIV. Métodos preventivos para além da camisinha, tais como a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), também têm contribuído para a redução de novos casos de HIV.  

Sem dúvidas, o cenário médico e social do HIV/aids na atualidade é bastante diferente do que o vivido nas décadas de 1980 e 1990. Contudo, movimentos sociais de pessoas vivendo com HIV/aids seguem reivindicando não apenas a cura médica para o vírus, mas também a cura social dos preconceitos e estigmas que ainda persistem, apesar dos avanços biomédicos, e das desigualdades sociais que impedem a completa redução dos índices de adoecimento e mortalidade no Brasil.  

Dada a sua natureza biológica e médica, o HIV/aids é uma questão comumente confinada nos espaços de saúde. Entretanto, ao longo de toda a trajetória da epidemia, a arte tem sido um espaço fértil de crítica, de questionamentos e de expressão da vivência com o vírus, reivindicando a cura médica e social e percorrendo trajetos mais sensíveis e subjetivos do que os das ciências.  

Dentre as variadas linguagens artísticas, a literatura tem encampado uma reescrita da epidemia de HIV/aids a partir de outros olhares do que é viver com o vírus atualmente – olhares, estes, muito distantes dos discursos estigmatizantes que vêm sendo semeados ao longo da epidemia. Nesse sentido, o que pode a literatura diante das forças do estigma, do preconceito e das desigualdades?  

A saúde sexual e a escrita como cura 

“Eu entendo a literatura como um arcabouço expandido de várias possibilidades, orais, corporais, de adereços, imagéticas, sonoras, enfim, que compõem tudo o que nos rodeia”, aponta Ramon Fontes, comunicólogo, escritor e pesquisador com doutorado em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). “A arte está na nossa produção diária de vida. E nessa produção diária de vida, a gente escolhe esteticamente como a gente se posiciona em todas as lutas, não apenas nas particularidades do HIV/aids”, acrescenta.  

Fontes é uma das pessoas vivendo com HIV que, atualmente no Brasil, tem buscado ressignificar a vivência com o vírus e suas complexidades por meio da palavra. Autor de artigos, e outros textos, tem o ensaio como gênero literário de preferência. “O ensaio sempre atravessa a minha produção literária, sobretudo sobre o HIV/aids. Minha escrita tem uma dimensão muito autobiográfica, em maior ou menor medida.” 

Para ele, a literatura produz mundos diariamente, podendo incidir positivamente na criação de imaginários sobre HIV/aids distanciados dos discursos pejorativos. “Esse é o exercício literário: você entende a potencialidade da língua, da linguagem, e sobre ela maneja sentidos outros, que não exatamente os da dor e da injúria. A literatura contribui para a produção, a promoção da saúde, para a ressignificação dos imaginários relacionados a práticas sexuais”, afirma.  

O cruzamento entre vida e palavra também faz parte da trajetória de Marina Vergueiro, poeta, jornalista, cineasta e ativista dos direitos e da saúde sexual. Publicou seu primeiro livro de poemas, em 2019, intitulado Exposta, onde se debruça sobre a vivência com o HIV, a sexualidade, a gordofobia, o machismo, dentre outras pautas.  

“Eu acho que a literatura é, de fato, transformadora, revolucionária, porque nos tira da zona de conforto e nos coloca em contato com universos com os quais podemos ou não nos identificar, mas que, de alguma maneira, nos impacta”, afirma a poeta.  

Segundo Vergueiro, a arte possibilita que as pessoas pensem sobre a saúde sexual com maior sensibilidade, questão que ainda tem pouco espaço no cotidiano: “A arte leva informação às pessoas de forma mais atraente, mais divertida, mais leve, talvez – nem sempre leve –, mas mais acessível. Porque tem um apelo ao emocional que, muitas vezes, uma cartilha do Ministério da Saúde não vai ter.” 

A autora vive com HIV há 11 anos e, também, relata que a escrita serviu como um processo pessoal de cura, possibilitando a expressão de seus sentimentos e inseguranças, principalmente no período quando ficou internada durante dois meses em decorrência da aids. 

“Nesse processo, a poesia foi mais um elemento de cura. Sabemos que não tem cura, mas eu estava com uma infecção oportunista que, sim, tem cura. Aliada aos medicamentos, à minha rede de apoio, de familiares e amigos, a arte foi imprescindível para eu levantar da cama do hospital”, explica a poeta.  

Ramon Fontes, em sua tese intitulada Ekografias do hiv/aid$ e defendida em 2023 pela UFBA, se volta para as artes produzidas por pessoas racializadas com sorologia aberta para o HIV, investigando como essas produções artísticas são mobilizadas em torno de uma “cura” social e individual. 

“Não temos ainda uma cura médica. Então, meu argumento foi de que pessoas negras, atravessadas pelo HIV/aids, utilizam a arte para produzir cura. Quando falo em cura, é uma cura de todos os efeitos do racismo, da sorofobia, das dimensões da classe. Uma cura que passa pela criação de novos imaginários sobre essa epidemia.”  

Desigualdades na saúde, desigualdades culturais 

Para Carué Contreiras, médico pediatra, sanitarista e pessoa vivendo com HIV, o avanço das políticas de tratamento e prevenção promove a mudança de mentalidades, reduzindo estigmas e preconceitos. Entretanto, o investimento em redes de atendimento especializado, a ampliação do orçamento para políticas de HIV/aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e a atuação integrada com grupos da sociedade civil são ações que ocorrem desigualmente entre municípios e estados do Brasil.  

Nesse sentido, as desigualdades no acesso à informação, à prevenção e ao tratamento acabam sendo refletidas no cenário cultural e artístico brasileiro. Contreiras observa que produções artísticas e culturais sobre HIV/aids têm conquistado algum espaço em regiões com avanços na prevenção e tratamento, a exemplo da cidade de São Paulo. “Você tem aqui [em São Paulo] focos de produção artística com o seu espaço, algumas peças e obras ganhando destaque e se consolidando nos últimos anos. Essa produção de discursos também não está acontecendo da mesma forma em outros lugares”, afirma.  

Apesar da existência de artistas produzindo arte sobre HIV/aids em outras regiões, como no Nordeste, por exemplo, são produções atravessadas por contextos diferentes. “Há algumas produções, mas são mais tímidas e numa sociedade que não está vivendo a mesma revolução sexual, que não está vivendo a mesma melhora dos índices, que continua marcada por mais adoecimento e morte, em lugares com menos financiamento para a saúde”, destaca.  

Além das desigualdades regionais, que impactam a oferta e o acesso a serviços de ISTs e HIV/aids e de outras áreas da saúde, o racismo, o machismo e a LGBTfobia são problemáticas presentes em todo o território brasileiro. “Boletins epidemiológicos têm mostrado, anualmente, a persistência da morte [em decorrência da aids] em pessoas negras. Em contrapartida, a diminuição das mortes de pessoas brancas. Ou seja, paira sobre a epidemia de HIV/aids um recorte racial”, destaca Ramon Fontes. “Por que a morte reiterada de pessoas negras não move uma crise ética no mundo?”, questiona em seguida, com base no pensamento da filósofa Denise Ferreira da Silva.   

Segundo Contreiras, torna-se cada vez mais necessário que as desigualdades de raça/etnia, gênero e sexualidade sejam abordadas pelos artistas: “Conforme vai se aumentando o gap de quem realmente continua para trás na questão do HIV, mais é necessário que alguns recortes específicos sejam enunciadores desses discursos artísticos”, aponta o médico e sanitarista.  

O campo do HIV/aids pode ter passado por diversas transformações ao longo do tempo, mas o preconceito, o estigma e as desigualdades sociais permanecem sendo problemáticas ainda sem “cura”. Enquanto a cura médica para o vírus não chega, as artes, principalmente as produzidas por pessoas vivendo com HIV/aids, seguem reescrevendo outros modos de viver com o vírus, produzindo curas pessoais e reivindicando a cura de uma sociedade ainda doente.


Leandro Noronha da Fonseca é jornalista, pesquisador e escritor. Doutorando em Estudos Literários pela Unesp de Araraquara. Mestre em Letras pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC/ECA/USP). Autor do livro “O verso do vírus: a poesia brasileira contemporânea e o HIV/aids”.


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Atividades promovem reflexões sobre gênero, desigualdades sociais e direitos humanos, incentivando o acesso à informação e a desconstrução de preconceitos para promover saúde sexual.

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