AUTORIA NEGRA | Representatividade na produção literária brasileira

27/10/2023

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Representatividade na produção literária brasileira coloca histórico de apagamento e invisibilização em xeque 

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ 

Leia a edição de NOVEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Durante a infância, Eliana Alves Cruz aguardava ansiosa a hora de ir para a escola, toda terça-feira: dia de biblioteca. Era nos livros que ela se refugiava. Hoje, aos 57 anos, essa recordação visita a memória da premiada autora de romances, contos e livros para crianças. Não porque, naquele momento e lugar, ela já desejasse ser uma escritora. Afinal, aqueles objetos de lombada e capa dura não retratavam seu rosto, sua realidade, nem sua ancestralidade. “Eu me lembro da sensação de ficar esperando pela aula de biblioteca. Criou-se em mim o livro como objeto de desejo. Mas, autores negros, eu só fui descobrir muitos anos mais tarde”, conta. Empurradas para fora das prateleiras, Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis (1822-1917), primeiro romance publicado no Brasil, e Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), são algumas dentre tantas outras obras que atravessaram sucessivas tentativas de apagamento. Mesmo assim, a produção literária negra jamais cessou.  

Autora do livro Silêncios prEscritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras – 1859/2006 (Editora Malê, 2019), Fernanda Rodrigues de Miranda pesquisou a quantidade de romances de autoras negras publicadas no recorte temporal que analisou. “É muito sintomático que nesse intervalo de três séculos, considerando que Maria Firmina dos Reis publicou [Úrsula] em 1859, ou seja, no século 19, e aí passando por todo século 20, até chegar ao começo do século 21, com Um defeito de cor [(2006), de Ana Maria Gonçalves], a gente tenha um número muito pequeno de romances. Eu encontrei um total de 13 e analisei oito”, apontou Miranda em vídeo da série Autoria Negra na Literatura Contemporânea, realizada pelo Sesc Pinheiros, em 2020, com curadoria e mediação da escritora Cidinha da Silva.  

De meados do século 20 para cá, o que possibilitou que mais autores e autoras negras tivessem romances, ficções científicas, quadrinhos e outros gêneros publicados e em circulação nacional e internacional foi resultado de lutas e conquistas de movimentos negros, da ação afirmativa de cotas nas universidades, e de políticas públicas de fomento ao livro e à leitura, principalmente. Nessa travessia, editoras já consolidadas ampliaram seus catálogos e novas editoras surgiram. Entre elas, a Malê, que nasceu com o objetivo de fomentar o acesso a livros de escritores negros contemporâneos (já publicou cerca de 140 títulos de 200 autores), e a Kitembo, que é voltada para a publicação de títulos afrofuturistas, de ficção científica e de suspense. Outro exemplo é a editora Pallas, que além de obras voltadas ao público adulto, também se dedica a títulos infantis e juvenis de histórias afro-brasileiras e africanas.  

Um cenário que contribuiu, segundo o sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva, para que o escritor negro, antes visto como uma “avis rara”, tivesse hoje seu espaço na história da literatura brasileira como algo incontornável. “As literaturas negra e marginal/periférica estão em currículos escolares do Ensino Médio; estão presentes em premiações importantes, como o Casa de las Américas (Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves), o Jabuti (Olhos d’água, de Conceição Evaristo), o Prêmio Biblioteca Nacional (Um Exu em Nova York, de Cidinha da Silva) e o Prêmio APCA (Dia bonito para chover, de Lívia Natália); e são adaptadas para seriados televisivos e telas de cinema [Cidade de Deus, baseado no livro homônimo de Paulo Lins, de 2002]”, elenca na edição revista e ampliada da obra A descoberta do insólito – literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2020), recém-lançada pelas Edições Sesc São Paulo.  

A escritora e linguista Conceição Evaristo foi eleita Intelectual do Ano no Prêmio Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores, pelo livro Canção para ninar menino grande (Pallas, 2020). Aline Macedo
A escritora e linguista Conceição Evaristo foi eleita Intelectual do Ano no Prêmio Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores, pelo livro Canção para ninar menino grande (Pallas, 2020). Aline Macedo

Há avanços também no reconhecimento de autoras negras em espaços nunca antes ocupados. Em setembro, Conceição Evaristo foi eleita Intelectual do Ano no Prêmio Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores, em razão do livro Canção para Ninar Menino Grande, originalmente publicado em 2018. No mesmo mês, Luciene Carvalho se tornou a primeira escritora negra a assumir a presidência de uma Academia de Letras no Brasil. Na ocasião em que tomou posse na Academia Mato-Grossense de Letras (AML-MT), disse, em discurso, que “gostaria de inspirar crianças e jovens de escolas públicas”. 

RACISMO VIGENTE 

Ainda que a produção e difusão de obras de autores e autoras negras tenha se ampliado, principalmente, nas duas últimas décadas, não são raros episódios de racismo. Como o que foi descrito, em julho deste ano, por Itamar Vieira Junior – autor do best-seller Torto arado (Todavia, 2019), Prêmio Jabuti de Melhor Romance Literário em 2020 – em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Ao se deparar com palavras ofensivas de uma crítica literária, o escritor escreveu: “Quando a crítica passou a proferir ofensas no Twitter, procurei o editor da revista para relatar o ocorrido. Fui ignorado. Decidi então escrever sobre as ofensas, porque, no Brasil, se chamam pessoas negras de ‘arrogantes’ e pessoas brancas de ‘assertivas’. Pessoas brancas não são ‘sujeitos’, são ‘escritores’. A colunista finge não saber que até a nossa língua e os nossos adjetivos são racializados. Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e tantos outros sofreram o mesmo”, pontuou. 

Outra forma de estigmatização acontece quando aos literatos negros são impostas determinadas temáticas e formatos de literatura. “Tem sempre uma tentativa de podar e controlar a população negra no Brasil. Então, a gente vai ficar naquela prateleira ali, da literatura negra, e não pode sair dali. Esses rótulos são uma forma de racismo e uma forma de manter sob controle um determinado discurso, um determinado olhar sobre o mundo e um pensamento. Eu gosto muito do que Jeferson Tenório (O avesso da pele, Companhia das Letras, 2021) sempre fala: ‘Nós somos a literatura brasileira’. Ou seja, a literatura brasileira é preta e indígena, porque essa é a população brasileira”, destaca Eliana Alves Cruz.. 

Para André Augustus Diasz, autor das biografias infantojuvenis Lima Barreto (2023) e Mário de Andrade (2023), ambas pela editora Mostarda, preconceito e rótulos ainda atravessam o dia a dia de autores negros. “Práticas de exclusão, de cerceamento, de opressão e de racismo não acabaram. Estão aí, dadas. Vemos essas bases presentes até hoje em nome da humanidade, em nome do processo civilizatório. Muitos genocídios, destruições e apagamentos foram cometidos e são cometidos ainda. Está em processo, entre conquistas e lutas, a busca de uma coerência”, observa. No entanto, sob um ponto de vista positivo, “um dos resultados de toda essa movimentação no campo da literatura é de que há uma maior visibilidade dessa produção literária de autoria negra: seja pelo número de autores e autoras, seja pelas publicações, pelas questões discutidas, pelas homenagens realizadas”, afirma o escritor, que também é gerente adjunto da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo. 

TERRENO FÉRTIL 

Hoje, uma nova geração de leitores está em contato com reedições de autores e autoras negras, como Carolina Maria de Jesus, cuja obra Quarto de despejo foi tema de vestibulares de universidades públicas, e também com romances, quadrinhos e ficções de autoras e autores contemporâneos que fabulam outras possibilidades de um porvir. Enquanto se prepara para novos projetos, entre eles um livro para crianças e outro romance, a escritora Eliana Alves Cruz observa uma vastidão de temas e personagens da história brasileira que ainda não ganharam as páginas de livros, bem como outros enredos a serem imaginados.  

“Com relação à nossa história, ainda há muitos personagens que a grande população não faz ideia de quem são, ou fazem, mas de forma limitada. A gente tem um futuro também que pode fabular. E aí, entra o afrofuturismo. Qual vai ser o futuro das pessoas negras no Brasil? E no mundo? Como esse futuro pode acontecer para além das utopias? Como ele pode acontecer de forma plena para que a gente possa ter a nossa cidadania respeitada? Tudo isso é material para a literatura”, ressalta a escritora. 

Ao apresentar novas visões de mundo e proporcionar a experiência da alteridade [leia a Entrevista com o escritor Mia Couto, nesta edição] a literatura também desperta a consciência da diversidade de vozes que nela habitam. “Quando você lê Solitária [(2022), escrito por Eliana Alves Cruz], Um defeito de cor, O avesso da pele, Olhos d’Água e tantos e tantos livros maravilhosos que a gente tem produzido, isso te abre um sentido, te abre uma percepção de mundo. O leitor não consegue mais ‘desver’ o que viu. Também é papel da literatura divertir, fazer rir, relaxar e sonhar. Eu acho que não existe limitação para a arte, ela está aí como expressão de vida, e a vida muda, as ideias mudam, o idioma é fluido, muda com o passar do tempo. Eu acho que a literatura precisa espelhar tudo isso que é de uma riqueza muito grande”, conclui Cruz.  

COM RELAÇÃO À NOSSA HISTÓRIA, AINDA HÁ MUITOS PERSONAGENS QUE A GRANDE POPULAÇÃO NÃO FAZ IDEIA DE QUEM SÃO, OU FAZEM, MAS DE UMA FORMA LIMITADA 

Autora de romances, contos e livros para crianças, Eliana Alves Cruz publicou, em 2022, Solitária (Companhia das Letras), a história de duas mulheres negras, Mabel e Eunice (mãe e filha), que moram no trabalho, um condomínio de luxo numa metrópole brasileira, até que Eunice torna-se testemunha-chave de um crime na casa dos patrões.

DO 13 AO 20  

Com o tema Ensinagens Negras, ação concebida pelo Sesc São Paulo leva à capital, interior e litoral do estado atividades que ressaltam saberes ancestrais    

Iniciativa que promove a valorização e o fortalecimento da cultura negra por meio de diversas atividades educativas, culturais e artísticas, Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro foi criada em 2019, pelo Sesc São Paulo, como uma oportunidade de aprendizagens, experiências, produção de conhecimento e de convívio com culturas afrodiaspóricas. Realizada entre os meses de maio e novembro, neste ano a ação tem como tema Ensinagens Negras, norteando uma programação que ressalta a importância da transmissão de conhecimentos ancestrais entre as gerações.  

“Em sua quinta edição, a ação Do 13 ao 20 apresenta as cosmopercepções e modos de fazer da população negra. Ao dar prosseguimento a essa iniciativa, o Sesc sublinha que cidadania e educação são linhas que precisam se entrelaçar, quando o horizonte é a construção de uma sociedade mais equânime”, afirma o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda. “Abordar a negritude sob esse duplo prisma implica compatibilizar, num mesmo empenho, potencialidades e necessidades, demandas e desejos”, completa. 

O Sesc São Paulo também tem entre seus pilares uma ação programática permanente voltada ao incentivo à leitura, com parâmetros que incluem a pluralidade de pensamentos e expressões artísticas. Presente em 21 unidades, as bibliotecas fixas e os BiblioSescs são compostos por um acervo de obras de literatura brasileira, estrangeira, juvenil, infantil, poesia, artes e quadrinhos, além de esportes, lazer, saúde, meio ambiente, história, filosofia e educação, entre outros. Dentre a diversidade de autoria de títulos, 26 autores e autoras negras compõem um repositório de enredos e narrativas essenciais para a formação de leitores e de cidadãos nestes espaços de leitura e convivência. 

“A atuação do Sesc no âmbito da literatura e do livro está permeada por inquietações compartilhadas pelas pessoas que pensam e fazem as ações programáticas e os acervos da instituição. Afirmar a presença e o protagonismo de autoras e autores negros nessas esferas é pauta permanente, que denota a ampliação de experiências de mundo, de acordo com aquele que compreendemos e desejamos como consciente de seu passado, presente e futuro”, explica Tiago Marchesano, técnico de literatura e bibliotecas na Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo. 

Saiba mais sobre as bibliotecas fixas do Sesc São Paulo em sescsp.org.br/biblioteca 

Confira alguns destaques da programação do projeto Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro, que encerra neste mês. 

ITAQUERA 

Lançamento do livro Lágrimas de Yemanjá (Editora Malê, 2023) 

BATE-PAPO COM A AUTORA Escrito por Joanice Conceição e ilustrado por Iris Pirajá, narra a história de uma reflexão feita pela rainha do mar, na ausência da festa de 2 de fevereiro.  

Dia 4/11, sábado, às 14h30. GRÁTIS.  

POMPEIA 

Encontros de Áfricas em Brasis 

CURSO Reflexão sobre as diferentes perspectivas de contemplação da cultura afro-brasileira com atenção às possibilidades de epistemicídio.   

De 2 a 30/11, quintas, às 19h.  
GRÁTIS.   

MOGI DAS CRUZES  

O avesso da pele 

ESPETÁCULO Montagem teatral do Coletivo Ocutá baseada no premiado livro escrito por Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti de 2021, na categoria Romance Literário. 

Dias 11 e 12/11, sábado e domingo, às 19h. GRÁTIS.   

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