Autor homenageado da Flip 2025, escritor, crítico literário e publicitário Paulo Leminski expandiu os limites da poesia, unindo a precisão da forma à liberdade da invenção (foto: Nani Gois)
Leia a edição de JULHO/25 da Revista E na íntegra
POR DIEGO OLIVARES
Um mosteiro. A palavra evoca silêncio, recolhimento e contemplação. Um lugar onde os monges se dedicam às orações e aos afazeres relacionados à vida religiosa. Mas nem sempre foi assim. Durante alguns meses de 1958, o cenário era diferente no tradicional Mosteiro de São Bento, ponto histórico do Centro de São Paulo. Ali, Paulo Leminski, então com 14 anos, esteve por uma temporada que foi transformadora em sua vida. Vindo de Curitiba (PR), e longe dos olhares da família pela primeira vez, o adolescente desafiou a tranquilidade do local – mais ou menos como faria com a literatura brasileira nas décadas seguintes.
Como na cena que faz parte do livro Paulo Leminski: O bandido que sabia latim (2001), escrito por Toninho Vaz, na qual o biógrafo relata que um professor da época, ao se deparar com o comportamento irreverente de Leminski, passou-lhe um sermão: “Ou você vem aqui na frente e bate três vezes com a cabeça no chão, ou será colocado para fora da sala! Você escolhe”. O adolescente, que apesar da rebeldia era um obcecado pelos estudos, não teve dúvidas: levantou de seu assento e jogou a cabeça contra o chão por três vezes. Reza a lenda que o eco do impacto ainda se ouve no Mosteiro de São Bento.
Anos depois, o gesto de bater a cabeça no chão soa como uma metáfora da postura de Paulo Leminski diante do mundo: intensa, provocadora, debochada e, ao mesmo tempo, profundamente entregue à busca por conhecimento. Daquele mosteiro, ele carregaria não a fé religiosa, no sentido convencional, mas o contato com uma vasta biblioteca formada por cerca de 70 mil títulos, com a disciplina do estudo e com uma espécie de espiritualidade às avessas – elementos que se refletiram em sua poesia.
Nascido em Curitiba, no dia 24 de agosto de 1944, filho de paranaenses, Leminski foi, desde cedo, um caso raro de erudição e rebeldia. Estudou latim, grego, francês, alemão e japonês. Leu tudo o que pôde – de Homero a Vladimir Maiakóvski (1893-1930), passando por James Joyce (1882-1941) –, mas fez da língua portuguesa seu território de experimentação. Sua poesia nasceu da confluência de múltiplos rios: concretismo, cultura pop, misticismo, haicai, publicidade, música popular. Escrevia como quem compunha um solo de guitarra: ora minimalista, ora virtuoso. Tinha humor, raiva, ternura. E um talento raro para unir o rigor da forma à liberdade da invenção.
Publicou obras autorais que deixaram marcas profundas, como Catatau (1975), biografias [de Matsuo Bashô (1644-1694), Cruz e Sousa (1861-1898) e de Leon Trotsky (1879-1940)], traduziu clássicos de James Joyce e Samuel Beckett (1906-1989), e foi parceiro e interpretado por artistas como Itamar Assumpção (1949-2003), Caetano Veloso, Guilherme Arantes e Arnaldo Antunes. Era poeta, mas também judoca, redator publicitário, compositor, letrista, performer. Um corpo inquieto, uma mente em ebulição. Tão culto quanto popular, tão marginal quanto central, Leminski criou uma identidade artística que continua a reverberar – em livros, canções, redes sociais, grafites de rua e nas falas de quem ainda tenta assimilar o mundo pela poesia.
É o caso do poeta e pesquisador Jr. Bellé, que conheceu Leminski, primeiro, como leitor apaixonado, e depois como uma espécie de companheiro espiritual. “Existe um momento em que você está construindo a sua voz poética de uma maneira mais intensa: está buscando referências, se entendendo como poeta, como escritor e tentando encontrar a sua forma de escrever. Se você encontra o Leminski nesse período, o efeito é de uma bomba atômica”, define. “Ele vai explodir a sua cabeça e a forma como você pensa a sua linguagem. A sua voz poética é exprimida dentro desse rigor e desse delírio com que constrói sua poesia”, complementa.
Bellé é um entre tantos que encontraram em Leminski um espelho, ou talvez um atalho para enxergar a poesia não como ornamento, mas como ferramenta de leitura do mundo. Tanto que ele dedica boa parte de sua vida acadêmica a estudar a obra do poeta curitibano. Sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) teve como tema o livro Vida (compilação das quatro biografias escritas por Leminski, reeditada pela Companhia das Letras), e atualmente escreve uma biografia do autor como tese de doutorado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
VIDA COMO MATÉRIA-PRIMA
É difícil dizer qual caminho é mais labiríntico: entender a obra de Paulo Leminski ou entender o homem. Para Estrela Ruiz Leminski, sua filha caçula, fruto do casamento com a também poeta Alice Ruiz, as duas coisas quase se confundem. “A poesia estava por toda parte – nos livros, claro, mas também na forma como ele falava com a gente, nas brincadeiras, nos bilhetes que deixava, nos apelidos, nos jogos de palavras”, recorda.
Ela ainda destaca que “a literatura não era um lugar que ele frequentava de vez em quando, era o jeito de ele estar no mundo, inclusive como pai”. Talvez por isso, em boa parte de sua obra, Paulo Leminski falava dessa condição. “Escrevo. / E pronto. / Escrevo porque preciso, / preciso porque estou tonto. / Ninguém tem nada com isso”, sintetizou nos versos iniciais do poema “Razão de ser”.
De fato, a palavra era o que havia de mais próximo ao sagrado em seu cotidiano. Após deixar o Mosteiro de São Bento, encontrou de vez sua vocação ao participar, ainda como público e entusiasta, da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, realizada em Belo Horizonte (MG) durante o mês de agosto de 1963. O concretismo era o que havia de mais transgressor na literatura nacional da época, e Leminski se encantou com as falas de Décio Pignatari (1927-2012), Haroldo de Campos (1929-2003) e Augusto de Campos, representantes máximos do movimento. Saiu do encontro inspirado e, no ano seguinte, tornou-se um poeta publicado – cinco de seus poemas fizeram parte de uma edição da revista Invenção, de 1964, dedicada aos textos dos autores concretistas. Iniciava-se ali, oficialmente, uma carreira de escritor que, na maior parte do tempo, conviveu com outras ocupações: professor de cursinho pré-vestibular, jornalista, crítico literário, redator publicitário.
POETA MARGINAL
Foram diversos empregos e alguns pontos em comum: não apenas o manejo apaixonado de frases, pronomes e afins, mas as eventuais dores de cabeça que proporcionava aos patrões, fosse pelas noites viradas em bares, que se transformavam em ressacas homéricas, ou pelas dificuldades práticas de simplesmente pagarem seu salário, já que Leminski não tinha conta bancária. Atitudes como essas rendiam a Leminski um caráter folclórico e único, a personificação da imagem do “poeta marginal”. Escrevia em tudo que via pela frente: guardanapos, listas telefônicas, páginas de jornal. E perambulava com essas anotações até o momento de se sentar frente à máquina de escrever e depurar todo aquele material.
Foi assim que, de um amontoado de anotações registradas ao longo de oito anos, que nasceu Catatau, publicado em 1975. Tido pelo próprio autor como uma mistura entre James Joyce e Guimarães Rosa (1908-1967), o livro apresenta uma prosa com toques enigmáticos, uma tentativa de inaugurar um novo tipo de linguagem, feito de jogos de palavras e da aproximação entre idiomas. No romance, o autor narra a chegada de um personagem inspirado no filósofo francês René Descartes (1596-1650), em expedição pelo Brasil.
Para ter a obra em mãos, Leminski negociou uma redução de salário com a agência publicitária P.A.Z., na qual então trabalhava, em troca da impressão de duas mil cópias. Satisfeito, não apenas andava sempre com um dos exemplares a tiracolo, como também fez questão de enviar a obra a alguns intelectuais por quem nutria admiração, incluindo Décio Pignatari, Caetano Veloso e Darcy Ribeiro (1922-1997). Assim, entrou de vez no radar do cenário literário nacional.
Ao elaborar a campanha de divulgação da obra, o autor lançou mão de seu caráter provocador. Fez um pôster em que aparecia nu, em posição de lótus, com uma expressão séria, desafiadora. Consumava assim, mais uma vez, a união entre erudição e irreverência. Estava sedimentada de vez sua figura como alguém impossível de ser ignorado.
Sua literatura, então, floresceu aos olhos do público. Foram seis livros de poesia em pouco mais de uma década, incluindo títulos até hoje celebrados, como Caprichos e relaxos (1983) e Distraídos venceremos (1987). Tornou-se um requisitado pensador do cenário literário e das artes em geral, assinando colunas na revista Veja e no jornal Folha de S.Paulo, além de ter feito uma passagem pela TV Bandeirantes, como comentarista do programa Jornal da Vanguarda, apresentado por Doris Giesse. Encarou todas essas incursões com a mesma paixão, sem abrir concessões em sua linguagem.
“Eu sempre soube que meu pai não era um pai comum”, declara Estrela. “Claro que havia essa persona do escritor eloquente, cheio de ideias e referências, especialmente entre os seus pares e em público. Era alguém que sabia ocupar a cena, que instigava, que causava. E isso fazia parte da força criativa dele: ele performava ideias com o corpo, com a fala, com a imagem. Mas, em casa, era onde ele era mais humano”, revela. “Pedia cafuné, fazia piada boba, demonstrava suas inseguranças, buscava consolo e silêncio. Tinha um lado muito afetuoso, quase menino, que pouco se via fora do nosso convívio. Ele precisava dessa intimidade para existir por inteiro.”
DE AMOR E CAOS
Essa dimensão afetiva, por vezes frágil ou explosiva, também se refletia em suas relações familiares. Leminski se casou pela primeira vez aos 18 anos, com a desenhista e artista plástica Neiva Maria de Souza. As longas ausências do poeta, sempre às voltas com a boemia da vida noturna, foram distanciando o casal, até que veio a separação, formalizada depois de cinco anos.
Foi com a poeta Alice Ruiz que Paulo Leminski viveu seu amor mais duradouro. Permaneceram juntos por mais de duas décadas e compartilharam não apenas a vida doméstica, mas também uma profunda parceria criativa. Juntos, criaram poemas, letras de música, traduções e até estratégias para equilibrar as contas da casa. “Meus pais intercalavam quem trabalhava fora e quem fazia freelance ou home office”, recorda Estrela. “Num período determinante para mim, por volta dos quatro anos, minha mãe passou a ir diariamente para a agência de publicidade, onde já era diretora de criação. E ele ficou mais em casa, escrevendo livros.”
A casa onde viviam, no bairro Pilarzinho, em Curitiba, era um ponto de encontro de artistas, músicos, escritores e outros amigos. Um lugar onde os filhos cresciam cercados de livros e conversas acaloradas. Ao mesmo tempo em que exercia uma figura paterna amorosa e brincalhona, Leminski também carregava suas sombras: crises existenciais, períodos de reclusão, um consumo excessivo de álcool que já preocupava a família.
Antes de Estrela, o casal teve Áurea e o primogênito Miguel, falecido aos dez anos por conta de um câncer linfático. A perda do filho não foi a única tragédia familiar que Leminski precisou enfrentar. Em setembro de 1986, veio a morte do irmão mais novo, Pedro, com quem teve uma relação profundamente turbulenta. Chegaram a dividir a mesma casa durante o começo da vida adulta, escreveram músicas juntos e eram parceiros de caminhada nas montanhas do Marumbi, parque estadual localizado a cerca de duas horas de Curitiba.
A morte de Pedro infligiu uma profunda dor em Leminski e sua escrita ganhou contornos sombrios. É dessa fase o poema “Luto por mim mesmo”, que, além do título ambíguo, traz versos como: “Noite absoluta / Desse mal a gente adoece / Como se cada átomo doesse / Como se fosse esta a última luta”. Além das pistas nos textos, o vício em álcool passou a ser levado até às últimas consequências, o que incluía esconder de parentes e amigos, por muito tempo, um quadro de cirrose hepática grave, que terminou conduzindo seu falecimento em julho de 1989, aos 44 anos.
SEM PONTO FINAL
O legado de Leminski segue presente no mercado editorial. A publicação de Toda Poesia, seleção de boa parte de sua obra, em 2013, pela Companhia das Letras, reacendeu o interesse do público pelo trabalho do autor. Nos últimos anos, muitos estudiosos têm se debruçado sobre seus versos, não apenas na tentativa de decifrá-los, mas, principalmente, para enaltecê-los. “Leminski combina sucesso popular e reconhecimento acadêmico, podendo ser considerado um autor canônico, o que não deixa de ser curioso, pois ele é o poeta anticanônico por excelência”, define Fabrício Marques, autor do livro Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (2024), também poeta e jornalista.
“O leitor percebe o grande entusiasmo pela linguagem e pela vida que Leminski injeta em cada poema. Mesmo falando de dor, de morte, das rasteiras da vida, seus poemas trazem um imperativo, uma urgência, nunca artificial, de que é preciso amar as palavras, amar as pessoas, deixar algum legado para o futuro, mesmo num país como o nosso, onde a desigualdade e a pobreza não são levadas a sério”, completa.
para ver no sesc / bio
Festa da literatura
Sesc São Paulo celebra a potência da palavra na 23ª edição da Flip, em Paraty (RJ)
Entre os dias 30 de julho e 3 de agosto, as Edições Sesc São Paulo participam da 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na cidade fluminense de Paraty (RJ). Realizado anualmente, desde 2003, o festival ocupa as ruas e as charmosas casas do município histórico, com reflexões e bate-papos sobre literatura nacional e internacional. No ano passado, cerca de 27 mil pessoas passaram pela Flip nos cinco dias de evento. A edição deste ano tem curadoria de Ana Lima Cecilio e o escritor Paulo Leminski como o autor homenageado.
O Sesc São Paulo estará presente na Casa Edições Sesc, que realiza uma programação literária e cultural protagonizada por autores da editora e convidados, que dialogam sobre temas relacionados às suas produções. Também haverá venda de lançamentos e livros do catálogo. As atividades são gratuitas e voltadas a leitores de todas as idades. Confira a programação completa em sescsp.org.br/edicoes e outras atividades sobre a obra de Paulo Leminski na capital paulista:
PINHEIROS
Chá e Prosa – Nas palavras de Paulo Leminski
Com Rafael Fava Beluzio, Viviana Bosi e Régis Bonvicino
Lançamento do livro Quatro clics em Paulo Leminski, de Rafael Fava Belúzio, obra que propõe uma análise da escrita leminskiana, explorando seus múltiplos gestos poéticos. No encontro, o autor conversa com a crítica literária Viviana Bosi e o poeta Régis Bonvicino.
Dia 13/8, quarta, às 19h30. Área de Convivência – Térreo.
Leminski 80 – Um mapa afetivo de sua obra
Com Rafael Fava Belúzio
O curso propõe um mergulho na produção literária de Paulo Leminski a partir de leituras, análises e debates.
Dias 16 e 17/8, sábado e domingo, às 10h30 e às 15h. Sala de Múltiplo Uso, 3º andar.
Mais informações em sescsp.org.br/pinheiros
A EDIÇÃO DE JULHO DE 2025 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de JULHO na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.