Matheus Nachtergaele: entre o belo e o horror

29/04/2025

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Perdas e afetos durante a infância moldaram o olhar do ator e diretor e culminaram em sua entrega radical à arte (foto: Mathues José Maria)

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POR LÍGIA SCALISE

Para Matheus Nachtergaele, atuar nunca foi apenas sobre técnica ou espetáculo, mas um exercício radical de existir, um jeito de devolver ao mundo a intensidade que o mundo sempre lhe ofertou. Nascido em São Paulo, em janeiro de 1968, o ator e diretor aprendeu, prematuramente, que a pele macia da bisavó escondia, sob a delicadeza, as veias saltadas do tempo; que a música no violão do pai soava mais triste do que alegre; e que por trás de suas próprias histórias, havia sempre o vazio deixado pela mãe, que partiu cedo demais. “O belo e o horror são inseparáveis, na vida e na arte”, diz, como quem aprendeu a caminhar de mãos dadas com toda sorte de acontecimento e, com isso, ganhou fôlego para fazer algo ainda maior. 

Reconhecido como um dos maiores atores brasileiros da contemporaneidade, construiu uma carreira marcada por personagens inesquecíveis, mas também por uma relação íntima, visceral e inegociável com a própria profissão. Neste Depoimento, Nachtergaele revisita a infância no sítio dos avós, os bastidores dos seus primeiros grandes trabalhos e a sua atuação no remake da telenovela Vale Tudo (2025), dentre outros temas. “Gostaria que tudo o que fiz – e ainda vou fazer – possa ser sentido como uma prece”, confidencia.  

CECÍLIA
Assim que minha mãe morreu, fui viver no sítio dos meus avós paternos, no interior de São Paulo. Meu pai, mergulhado em sua dor, nunca mencionava o nome dela. Tampouco a própria família da minha mãe. Era minha avó Denise quem, com delicadeza, me apresentava Cecília através de suas histórias e dos objetos pessoais guardados num baú. A morte de mamãe era um tabu, mas para mim se transformou num mistério poético. Eu sabia que ela tinha sido uma poetisa linda e inteligente, que morrera muito jovem, aos 22 anos. A verdade só me foi revelada aos 16. Meu pai, como num ato de catarse, levou-me para nossa casa de praia e me contou em detalhes o que aconteceu no dia do suicídio dela. Foi um divisor de águas na minha vida. Talvez tenha sido aí que nasceu o ator que sou. Minha comédia é feita de tragédia, e na minha tragédia há sempre um humor inevitável.  

INFÂNCIA 
Fui um menino talentoso, observador, curioso, carismático e profundamente encantado com o mundo ao meu redor. Sempre que encontrava alguém disposto a me ouvir, contava minhas histórias. Era assim que eu existia: inventando mundos para quem quisesse prestar atenção. Cresci escrevendo livros: primeiro à mão, depois em quadrinhos, até ganhar uma máquina de escrever do meu pai. Ao mesmo tempo, era um menino já sensível às belezas drásticas do mundo. Entendi que o belo e o horror caminham juntos. Me lembro de me encantar com a maciez da pele da mão da minha bisavó e, ao mesmo tempo, perceber as veias saltadas sob aquela pele fina, como um prenúncio de seu fim. Fui tocado, desde cedo, pela música que meu pai tocava no violão, pela natureza que brilhava diante de mim no sítio dos meus avós, mas também pela ausência brutal e silenciosa de mamãe. Essa consciência precoce das maravilhas e dos horrores que habitam cada ser humano moldou quem sou e quem me tornei. Terror e beleza me acompanham desde sempre. Tento transformar em arte aquilo que, desde sempre, me atravessa. 

CORPO
Tenho uma consciência muito nítida de que estou vivo, exposto aos prazeres e às violências que a vida oferece. E consigo traduzir e organizar uma partitura do que sinto, do que sou e do que meu personagem precisa ser por meio do meu corpo. Não sou um ator tomado ou possuído pelo personagem. Estou lúcido, presente, consciente das emoções que poetizo e do corpo que as expressa. Foi no teatro que essa consciência se consolidou. Mais precisamente em O Livro de Jó (1995), do Teatro da Vertigem, com dramaturgia de Luís Alberto de Abreu e direção de Antônio Araújo. A peça estreou no Hospital Humberto I, em São Paulo, e eu aparecia nu em cena, coberto de sangue, percorrendo um labirinto hospitalar que encenava a fé, o sofrimento e o limite da experiência humana. Esse foi meu primeiro grande trabalho – que me rendeu prêmios importantes –, mas, sobretudo, foi ali que me reconheci ator.   

CARREIRA
Tive a sorte e o vigor de participar da reconstrução do cinema brasileiro. Fui puxado pela mão por Nanda [Fernanda] Torres, que sempre soube costurar sua trajetória com uma inteligência assombrosa. Foi ela quem falou de mim para Bruno Barreto, e assim cheguei ao filme O que é isso, companheiro? (1997). No ano seguinte, atuei em Central do Brasil (1998), sob direção de Walter Salles, e logo depois em O primeiro dia (1998). A televisão também me encontrou e estreei em A Comédia da vida privada (1995-1997), dirigido por Jorge Furtado. Entrei na Rede Globo com o pé direito, mas tudo começou lá atrás, de forma catártica e entregue, no teatro, em Jó. Mesmo quando as coisas não deram certo, entendo que fazia parte do meu caminho, da construção do meu encantamento com esse ofício. Ser ator é tudo o que sou, tudo o que sei, tudo a que me dedico – e um tanto de sorte. 

CINEMA
O cinema brasileiro, para mim, é um dos melhores do mundo. Digo isso em muitas entrevistas, e não é demagogia, nem estou puxando sardinha para o nosso lado. Nunca tive a ilusão de que nos tornaríamos a indústria mais poderosa, embora saiba que, quanto mais forte for essa indústria, mais nossa identidade estará garantida. Mas o que me encanta é que, mesmo sem os recursos de uma grande máquina, fazemos cinema com pouco dinheiro e muita inventividade. O Brasil, afinal, é um país onde aquelas minhas impressões de infância se confirmam todos os dias. Aqui estão as maiores belezas e os maiores horrores do mundo. Nosso cinema, talvez como nenhum outro, carrega essa contradição, e por isso é tão digno de retratar o país que somos.  

VALE TUDO 
Estou vivendo uma situação curiosa, quase engraçada. Eu dizia que não faria mais novelas, mas fiquei tão encantado com o remake de Renascer (2024), que acabei aceitando o convite para o remake de Vale Tudo. Quando a Globo me chamou para interpretar o Poliana, pensei: “vou fazer um clássico”. Porque Vale Tudo é, de certa forma, o nosso E o Vento Levou das novelas, entende? É um monumento da dramaturgia popular. Claro que agora, adaptado pela autora Manuela Dias, a história vai ganhar um olhar contemporâneo, mais alinhado ao Brasil de hoje. É exatamente isso que me instiga – viver essa investigação sobre quem somos, dentro dos limites e da leveza de um folhetim, mas com coragem para olhar fundo.  Vale tudo é um retrato disso.  

O ator em cena na peça Processo de Conscerto do Desejo, que é baseada em poemas da mãe do ator e foi encenada no Sesc Pompeia em 2016 (foto: Matheus José Maria)

TRANSMUTAÇÃO
Quando completei 40 anos, dirigi meu único filme até aqui: A festa da menina morta, que estreou em 2008 no Festival de Cannes. O longa conta a história de Santinho, um jovem que ganha fama de santo em uma comunidade isolada no Amazonas, após realizar um suposto “milagre” depois do suicídio da mãe. É um retrato íntimo da capacidade humana de fabricar fé diante do vazio e de buscar algum sentido para a experiência terrível da morte. Na verdade, aquele filme era uma fabulação da minha própria vida até aquele momento, mas contada por meio de outra história que conheci por acaso, em Cabaceiras (PB), durante as filmagens de O Auto da Compadecida (2000). Em um dos dias de folga, nos levaram para uma festa local onde, todos os anos, celebravam o dia em que encontraram o vestido de uma menina desaparecida. Esse vestido, exposto num altar, era tratado como um milagre. Aquilo me impactou profundamente. Como uma tragédia podia dar origem a um mito? Só uma melancolia profunda é capaz de transformar dor em milagre. Foi assim que compreendi também a minha própria vida.  

O que faço precisa ser mais que emoção: precisa ser poesia e causar alguma transformação em quem assiste. 

TEMPO 
Aos 57, começo a sentir vontade de dirigir outro filme – um que possa mergulhar ainda mais fundo nas belezas e nas tragédias que vi no mundo. Não tenho pressa, mas sinto, cada vez mais perto, a passagem do tempo. Já não me iludo achando que terei tempo para fazer tudo o que desejo. A finitude já não é uma ideia, ela é uma aventura na qual embarquei. Assisto às mudanças do corpo que envelhece. Sinto o cansaço que os anos trazem – e, curiosamente, acho que isso pode abrir janelas para coisas muito bonitas. Acho curioso quando escuto alguém assustado com a rapidez do tempo. Eu, não. Tenho a sensação nítida de cada pedaço dele. Não fui pego de surpresa. Acompanhei meus êxitos e fracassos tanto na arte quanto nos afetos. Tenho sentido vontade de cravar em película esse olhar sobre o tempo e espero que minhas antenas da intuição e da arte continuem funcionando para que eu possa deixar mais uma contribuição bonita para o nosso cinema. Ainda há vigor em mim, pelo trabalho e pela vida.   

LEGADO 
Cada peça, cada filme, cada espetáculo propõe um mundo novo. Tem sido uma viagem belíssima e sigo topando a aventura que vivo. A arte foi e é minha salvação, meu abrigo. Me emociono ao pensar que minha maior apoiadora sempre foi minha avó Denise. Hoje, enxergo com clareza que uma hora a vida vai acabar. Por isso, também, tenho tentado cuidar mais da matéria para ficar mais tempo por aqui. Quero continuar brincando disso tudo, com alguma graça e lucidez, porque, no fim das contas, eu amo estar vivo. Gilberto Gil disse, certa vez, que gostaria que as pessoas percebessem que tudo o que ele fez foi, na verdade, uma oração. Então, me aproprio do pensamento do Gil para dizer que, se houver algo que eu possa desejar como legado, é que tudo o que fiz – e ainda vou fazer – possa ser sentido como uma prece. 

A peça Processo de Conscerto do Desejo adaptada para o canal do Sesc São Paulo no YouTube em 2020, durante a pandemia de Covid-19:

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