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Escrever à mão é a solenidade mais íntima que tenho no mundo. O tempo milagroso do desenho das palavras, a fricção que nos une – tal qual a caneta ao papel – me faz pensar se é possível desenhar o tempo, ou se ele se forma sozinho, no entre-espaço das letras. Certas materialidades nasceram para se sobrepor, se inscrever, se entrelaçar, repousar e movimentar-se docemente sobre o mundo.
Aos seis anos, me abrigava dentro das tapeçarias que forravam o chão de casa. Os motivos florais, arabescos e tons de joia me mantinham em uma autoclausura delimitada por bordas geométricas e videiras curvilíneas – como ameias de uma fortificação medieval. As imagens, assim como as palavras, são vivas e nos compõem. Mais do que o porquê das coisas, sempre me moveu o “como”: como se formam, que combinações as tornam possíveis.
Cresci interessada por tudo que fosse minimamente antigo, acidentalmente colecionável, monasticamente insuspeito – ou que guardasse um segredo. Desenhar foi uma das formas de decifrar, de compreender as coreografias do gesto. Desenhar pode ser sério demais, cânone demais. E o que prefiro são os esboços: simples, acessíveis, possíveis de enfrentar face à palidez do papel. Esboçar me tornou mais generosa. A arte, para mim, mais do que talento, é a recompensa por uma longa paciência, encantamento e partilha.
Desenhar, ou estudar história, sempre me pareceu um gesto de insubordinação. Uma recusa ao tempo que mede o valor das coisas em função da produtividade e da finalidade. O que eu quero, ao contrário, é perder as horas, a cabeça, o rumo – e reencontrá-los um pouco depois, entre laçadas de tricô. Ressoa em mim Elizabeth Bishop (1911-1979): “Não é difícil dominar a arte de perder; tanta coisa parece preenchida pela intenção de ser perdida que sua perda não é nenhum desastre”.
Existe no gesto manual, no fazer, um desvio intencional, uma espécie de deriva. Estar à deriva é permitir-se sair da rota funcional, habitar o intervalo, o excesso, a escuta. Um estado que não visa acumular, mas partilhar e receber. Merleau-Ponty (1908-1961), em um ensaio sobre Cézanne (1839-1906), escreve que o pintor buscava “pintar o mundo, convertê-lo em espetáculo, fazer ver como ele nos toca” – não como ele se apresenta diante de nós, mas como ele se faz sentir em nós.
Certa vez, fui tocada profundamente por uma couve-de-bruxelas. Nunca vi um legume tão comedido, tão “wabi-sabi” e tão precioso. Me lembrou as gemas que cobrem a capa do Evangelho de Lindau, e tantos outros ofícios singelamente complexos, como a tigela de chá de Kizaemon Ido – tesouro nacional dito conter a própria essência do chá. Assim me lembrei do mestre Yanagi Sōetsu (1889-1961), que via beleza nos objetos utilitários criados por mãos anônimas, artesanalmente, e sonhava – como William Morris (1834-1896) – em dissolver os limites entre arte e ofício, entre artista e artesão. Talvez seja isto: às vezes, um instante banal – uma couve-de-bruxelas, uma tigela de barro, uma linha no papel – interrompe o tempo como o conhecemos. E, nesse intervalo, o mundo inteiro se oferece. Talvez seja esse o nosso terceiro lugar: aquele que germina na paisagem da criação. Um território provisório, mas necessário, onde o gesto manual, a poesia e o viver nos ensinam outra forma de estar no mundo.
Manuella Frattini é bacharel e mestranda em história da arte. Atua como técnica de programação no Sesc Consolação.
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