Livros são sementes 

30/06/2025

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Para a educadora Bel Santos Mayer, bibliotecas comunitárias cultivam transformações sociais ao reflorestar territórios e imaginários 

Leia a edição de JULHO/25 da Revista E na íntegra

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
FOTOS NILTON FUKUDA 

Quando um livro encontra seu leitor, ambos se tornam polinizadores de novas formas de ver e viver o mundo. A cena acontece em uma biblioteca – território de encontros, leituras e trocas – capaz de transformar realidades de dentro para fora. Para a educadora Bel Santos Mayer, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), “uma biblioteca cria espaços”. Cogestora da LiteraSampa, organização que integra a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), Mayer fomentou o nascimento da Biblioteca Comunitária Solano Trindade, em 2001, fruto de um programa do IBEAC de formação de jovens agentes de direitos humanos na Cidade Tiradentes, zona Leste de São Paulo. Cerca de dez anos depois, a educadora acompanhou a criação da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, em Parelheiros, zona Sul da cidade. A biblioteca, que ocupou, originalmente, uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e, depois, o Cemitério de Parelheiros, tem hoje seu acervo preservado por moradores e parceiros, enquanto aguarda um novo endereço. 

Primeira pessoa da família a fazer um curso superior, Bel Santos Mayer prova em sua trajetória o quanto a literatura é uma ferramenta de combate às desigualdades sociais. Nascida em Santo André, Mayer é filha de pais que migraram do Recôncavo Baiano para São Paulo, em busca de trabalho. Em casa, junto às quatro irmãs e às avós paterna e materna, tomou gosto pela contação de histórias antes de ter acesso ao primeiro livro, Capitães de areia (1937), de Jorge Amado (1912-2001), aos dez anos. As escolhas que viriam a seguir colocariam, novamente, um livro no caminho.  

Cursou o magistério, alfabetizou jovens, adultos e, depois, crianças, se formou em ciências matemáticas, fez uma especialização em pedagogia social na Itália, e décadas depois, enquanto atravessava um tratamento contra um câncer, voltou ao ensino superior, graduando-se em turismo. Como “uma ativista que vai lutar por esse lugar político, poético e educacional que as bibliotecas têm”, a educadora planta o sonho de uma sociedade cada vez mais nutrida pela literatura, onde as pessoas estejam a poucos passos de uma biblioteca. Neste Depoimento, Bel Santos Mayer compartilha episódios dessa travessia que aponta para a criação de uma das primeiras bibliotecas dentro de uma floresta.  

estreia 
Eu me lembro do primeiro livro, com quase 10 anos: a Bíblia ilustrada, daqueles vendedores de rua que vendiam no boleto, e você ia pagando um pouquinho por mês. Ela ficava num pedestal que vinha de brinde. Não era para a gente encostar, era só para tirar o pó da capa e do suporte. Quando meus pais terminaram de pagar a bíblia, o vendedor falou: “Olha, o senhor é da Bahia. Tem um escritor da Bahia que suas filhas precisam ler”. Era a coleção completa de Jorge Amado em capa dura. Meu pai comprou, mas colocou lá na estante, bem no alto, para as meninas não mexerem e estragarem. Meu pai leu toda a obra de Jorge Amado e, às vezes, ele contava um pouco dessas histórias. Quando eu fui para a escola, tinha que ler Capitães de areia (1937), e pude pegar da coleção. Foi a primeira vez que peguei um livro de literatura dentro de casa. 

alfabetização  
Aprendi a ler na casa de uma senhora da favela do bairro onde eu vivia. Na casa da dona Josefa, no dia da prova, quando você ia mostrar o que aprendeu a ler, Tonho, filho dela, fritava linguiça, jogava farinha e, cada vez que você acertava, ganhava um pouquinho da farofa na mão. Isso ficou no meu coração. Depois teve outro fato: estar num bairro onde as pessoas adultas não sabiam ler. Minha mãe mal sabia, minha avó também não sabia escrever e eu escrevia as cartas dela. Então, eu começo alfabetizando jovens e adultos de uma favela por onde eu atravessava para estudar em Santo André. Nesse percurso, tinha um córrego e lá se matavam pessoas. No começo, eram estranhos, depois eram os irmãos dos meus colegas, depois os meus colegas. Você sente um chamado social: “Eu quero ser uma educadora que pode ajudar a transformar a realidade do lugar onde eu vivo”.  

bibliotecas 
Em 2001, fui professora em Cidade Tiradentes, lugar onde nasceu uma das primeiras “posses”, que é como o movimento hip-hop denominava essa organização dentro do território. Então, a posse Força Ativa, que depois virou Núcleo Cultural Força Ativa, era daquele território, e eu já tinha contato com o [Mano] Brown, o Rappin Hood e essas pessoas já faziam um trabalho muito conectado com os adolescentes que eram privados de liberdade nas antigas Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), hoje Fundação Casa. Os jovens do Núcleo Cultural Força Ativa queriam criar uma biblioteca. Tinha esse espaço que a Cohab deixava para o comércio. A Biblioteca Solano Trindade está lá, na Rua dos Têxteis, e foi meu pai quem reformou o espaço. Então, são bibliotecas que nascem para além dos livros, para uma construção afetiva do valor simbólico que o livro e a biblioteca têm dentro de uma periferia.  

parelheiros 
No IBEAC, a gente trabalha com direitos humanos, e a Biblioteca Solano Trindade nasce dentro desse programa com jovens agentes de direitos humanos. A gente dava formação para agentes comunitários de saúde numa ação nacional e, de repente, começou a pensar: e se a gente concentrasse as nossas ações em um território? A gente começou essa conversa em 2006, e em 2008, saiu o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, que fez um ranking da cidade de São Paulo. Parelheiros, extremo sul da cidade, apareceu em último lugar, na 30ª posição, e Pinheiros, em primeiro. Eu passei a incorporar nas minhas falas que o melhor lugar tem uma dívida com o pior lugar. E aí, a gente vai para Parelheiros, onde estão duas áreas de proteção ambiental. A gente chega lá e encontra os agentes comunitários de saúde que tinham recebido toda a nossa formação em direitos humanos, e eles pedem para a gente começar um trabalho com os jovens. A gente fala sobre escolher um dos direitos humanos para batalhar e eles escolheram o direito humano à cultura, porque queriam reabrir a biblioteca da escola. E aí, em 2008, a gente começa essa história, da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura.  

mobilidade 
Uma biblioteca comunitária já nasce com o princípio da interação. Quais são as mobilidades que uma biblioteca proporciona? Mobilidade de corpos, porque os jovens da Biblioteca Caminhos da Leitura passaram a se mover pela cidade. Foi a biblioteca que proporcionou o primeiro encontro deles com os equipamentos culturais do Centro, as bibliotecas públicas, os teatros, cinemas, os equipamentos de gestão social, tudo começou com a biblioteca. Ao mesmo tempo, quando as pessoas começaram a ouvir “biblioteca no cemitério em Parelheiros”, os corpos do Centro também passaram a se mover para a periferia. Editoras e autores começaram a mandar livros autografados. A gente também começou a publicar os nossos livros – Parelheiros, idas e vi(n)das: ler, viajar e mover-se com uma biblioteca comunitária (2022) está em todas as livrarias, e Nascidos pela ler, no melhor lugar para se viver (2021) está nas escolas de Educação Infantil de São Paulo. Isso é uma mobilidade de imaginário e, internamente, de sonhos. Há uma mobilidade social: esses meninos se tornaram os primeiros universitários de suas famílias, estão virando os primeiros pós-graduandos do território. Ou seja, referências para as crianças do território. 

Educadora e coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), Bel Santos Mayer acredita na capacidade transformadora da literatura sobre a vida de indivíduos e, principalmente, coletivos. 

floresta 
Um espaço não faz uma biblioteca, mas uma biblioteca cria espaços. A biblioteca [Caminhos da Leitura] nunca parou. Ela saiu da unidade de saúde, depois foi para o cemitério e de lá foi morar em sacolas na casa dos moradores, no Eu (a)guardo a biblioteca. Esses livros estão num espacinho pequeno e a biblioteca está começando a virar uma floresta de pessoas. A gente ganhou um terreno e nele, começou a plantar, no dia 5 de junho, 10.639 árvores – mesmo número da lei contra o racismo na educação, a Lei 10.639, de 2003 – numa campanha: Contra o racismo, eu planto. A gente está plantando árvores e a partir desse plantio, quando essa floresta estiver de pé, a gente vai pensar como é que essa biblioteca nascerá lá dentro. 

retrato 
A gente tem o desejo de que cada pessoa consiga chegar a pé até uma biblioteca. Agora, estamos vivendo o processo do Plano Estadual do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, do qual nós participamos ativamente. A gente precisa conhecer quantas bibliotecas existem, quantas livrarias de rua. A rede LiteraSampa é uma rede que tem 19 bibliotecas atuantes e tem mais cinco bibliotecas que estão distribuídas no estado de São Paulo que querem fazer parte. Então, eu diria que a gente deve ter cerca de 50 bibliotecas comunitárias na grande São Paulo. Mas a gente precisa fazer esse diagnóstico de verdade. Eu sou uma das comentadoras do Retratos da Leitura no Brasil, que levanta o quanto a gente perdeu de leitores nos últimos anos, e de bibliotecas públicas também. São mais de mil bibliotecas fechadas no país. Você precisa ter editais e investimento para que elas continuem existindo. 

curadoria 
Leitura é uma tecnologia que exige que a gente pare. Não dá para fingir que leu. A leitura oferece outra coisa: sou eu, leitor, que decido onde continuo, onde eu paro. Você vira um curador da sua leitura. E essa curadoria tem esse lugar, também, de curar a dor, que é individual. Só você pode saber a hora em que fecha o livro, quando abrir e continuar. A leitura captura a nossa atenção de outro modo e traz muitos benefícios em um mundo de dispersões. Todo mundo está querendo sequestrar o nosso tempo. Então, como é que você pode resolver isso? Dedicando tempo para a leitura, construindo essa musculatura. A literatura te dá essa coragem.  

Assista a trechos desse Depoimento com a educadora Bel Santos Mayer, realizado no Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), em maio de 2025.  

https://www.youtube.com/watch?v=T6XM4jBG2Ho

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