Leia a edição de MAIO/25 da Revista E na íntegra
POR ANDRÉ DE LEONES
ILUSTRAÇÃO THALLES OLIVEIRA
No carro, garagem adentro. Embora não houvesse necessidade, esperei que o portão eletrônico fechasse para só então desligar o motor. O rádio se calou, interrompendo uma suíte de Janáček. Era isso. Fim de papo. O grande resgate chegara ao fim. Quando abri o porta-malas, Michel me fitava com a mesma expressão emburrada de meia hora antes. “Vivo?”
“Minhas costas, bicho. Me ajuda a sair daqui.”
Dali a pouco estávamos à mesa da cozinha, bebericando doses de Glenlivet. Michel fumava sem parar. Incomodado com o silêncio, fui até a sala e liguei a TV. Roma vs. Lazio? Dei uma risada.
Voltei à cozinha bem a tempo de testemunhar Michel acendendo outro cigarro. “Qual é a graça?”
“O jogo parece divertido.”
“Ah, não quero saber de futebol. Futebol que se dane. É a minha vida aqui.”
“Logo te esquecem.”
“Bom, isso é parte do problema, né? Se me esquecem, não trabalho.”
“Eu quis dizer os imbecis. Logo te deixam em paz.”
“Duvido.”
“A série é um sucesso. Recordes de audiência. Eu não me preocuparia.”
“Eles querem me pegar. Eles ficam acampados lá o dia inteiro. Tem uns fantasiados e… caramba, não sei como consegui sair.”
“Por nada.”
“Hein?”
“Por nada. Não precisa agradecer.”
Ele me encarou com os olhos arregalados e, de fato, não agradeceu. Não me agradeceu por bolar o plano de fuga. Não me agradeceu por falar com a vizinha dos fundos, torcendo para que ela não simpatizasse com os manifestantes. Não me agradeceu por pagar 300 reais à vizinha, que não simpatizava com os manifestantes, mas (que surpresa!) tampouco simpatizava com Michel. Não me agradeceu por parar o carro na ruazinha de trás e esperar até que ele pulasse o muro, atravessasse o quintal da vizinha (que, à janela do quarto, filmava tudo com o celular; o vídeo viralizou depois, é claro), seguisse pela passagem lateral e, chegando ali fora, entrasse no porta-malas.
Não me agradeceu por forrar o porta-malas com o melhor edredom que encontrei em casa. Não me agradeceu por dirigir com o máximo de cuidado, evitando buracos e solavancos. Como a ruazinha não tinha saída, precisei contornar o quarteirão e passar defronte à casa dele, em meio aos manifestantes. O que fariam se descobrissem quem eu transportava? Provável que vandalizassem o carro. Provável que me dessem uns sopapos. Tudo por causa de uma maldita sitcom.
“Por nada”, repeti.
“Olha”, ele disse com a voz embargada, “você sabe que eu sou muito grato por… pelo que fez e… mas… tô realmente em pânico.”
“Relaxa. Não é como se você tivesse ofendido uma minoria ou feito piada com o Holocausto. Quer dizer, cê não fez nada de grave. E a série é um sucesso.”
“Aqueles malucos cercaram a minha casa. Minha mulher pegou as crianças e foi pra casa do ex-sogro. Do ex-sogro! Quem é que procura o ex-sogro em hora de aperto?! Eu sempre desconfiei que…”
Michel era roteirista e produtor de TV. E não escrevia nem produzia porcarias. Ele se especializara em criar novelas e séries que traziam um perfume de erudição e, ao mesmo tempo, milagrosamente, caíam no gosto popular. Aquele tipo de programa que o telespectador médio apreciava porque parecia inteligente, mas não inteligente demais. As pessoas viam os programas do Michel e se sentiam bem. Mesmo quando (ou justamente porque) tinham um ponto de partida inusitado, como um fato histórico obscuro ou um livro que todo mundo conhece, mas quase ninguém leu. Michel conseguia se colocar na altura do telespectador médio e se comunicar com ele por não soar arrogante, intelectualoide ou afetado. Ele transformara Avalovara, de Osman Lins, em um alegre musical natalino. Ele adaptara Ulysses, de James Joyce, para uma novela das seis, usando Anápolis, Goiás, como cenário e transformando a coisa numa farsa engraçadíssima, com direito à canção “Desça daí, seu corno”, do Rei da Cacimbinha, na abertura: “Desça daí, seu corno, desça daí. / Desça daí, seu corno, desça daí. / Desça daí, chifrudo, o que é que há? / Você ganhou foi gaia, não foi asa pra voar”. E, após ler Tiberius – A Study in Resentment, de Gregorio Marañón, concebera uma sitcom sobre os anos de autoexílio do imperador romano em Capri.
Era verdade que, contrariamente ao que apregoaram historiadores clássicos como Suetônio, Marañón deixava claro que as histórias de devassidão envolvendo Tibério na tal ilha eram mentirosas, que tudo não passara de uma tentativa de assassinar o caráter do monarca e sujar seu nome para a posteridade, pois, embora não fosse um devasso, Tibério era uma figura sinistra e cruel.
Mas Michel optara por criar uma mistura de “Two and a Half Men” e “Sai de Baixo”, escolhendo um ator meio cancelado (por ser adúltero e farreador) para interpretar o Princeps. O humor escrachado e a ambientação inusitada foram muito bem recebidos pela audiência em geral, mas não pelos historiadores, especialistas e estudantes da área.
É difícil compreender como as coisas escalaram àquele ponto, mas o fato é que dezenas de pós-graduandos em História acamparam diante da casa de Michel. Era difícil entender o que eles queriam em meio à balbúrdia. O cancelamento da sitcom? Um pedido de desculpas? Dar uma coça no criador da série? Que ele reescrevesse a coisa?
Como estivesse ocupado com meu divórcio, não participei da concepção e da escrita da primeira temporada de Tibério em Capri. Meu nome não estava associado à coisa. Assim, quando um tijolo arrebentou a janela da cozinha e aterrissou sobre a mesa, estilhaçando a garrafa (ainda cheia) de Glenlivet, o meu susto foi enorme.
Em seguida, indivíduos fantasiados de guardas pretorianos entraram pela porta dos fundos e nos levaram para o quintal, onde indivíduos fantasiados de senadores romanos nos aguardavam em semicírculo. No centro, sentado em um engradado (vazio) de cerveja, estava um indivíduo fantasiado de Tibério.
Michel começou a chorar.
Tibério olhava para a gente, muito sério. “Eu não me irritava tanto desde que Sejano e Livilla aprontaram aquela tentativa de golpe. O que eu faço com vocês?”
“Comigo? Mas eu não…”
Tibério fez um gesto para que eu me calasse, depois se dirigiu a Michel: “O que eu faço com você? Irreverente, engraçadão, repisando mentiras a meu respeito. Calúnias! Aonde quer chegar com isso? A uma damnatio memoriae? Bom. Peço desculpas pelo anacronismo. Sabia que deixei bilhões de sestércios nos cofres de Roma e reforcei as fronteiras do Império? Fui um ótimo administrador”.
Michel soluçava alto agora.
Achei melhor interceder: “Uma sugestão?”.
“Diga.”
“Exílio.”
“Onde?”
“Bom, eu tenho uma casinha em Picinguaba.”
Tibério olhou ao redor. Os senadores concordaram. “Não sou cruel como acusou Tácito. Partam imediatamente.”
Mas foram eles que partiram. Um dos guardas pretorianos deixou um cheque pré-datado para o conserto da janela. Nenhuma palavra sobre o uísque, mas achei melhor não reclamar.
Eu e Michel voltamos à cozinha. Limpei o lugar, depois abri uma garrafa de Ardbeg. Ele ainda choramingava. “Olha só”, falei após virar uma dose. “É por essas e outras que tenho uma saudade brutal da República.”
André de Leones (Goiânia, 1980) é autor dos romances Vento de queimada (Record, 2023), Eufrates (José Olympio, 2018), Terra de casas vazias (Rocco, 2013), Dentes negros (Rocco, 2011) e Hoje está um dia morto (Record, 2006), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2005, entre outros.
Thalles Oliveira é ilustrador, quadrinista e designer, natural de Minas Gerais. Apaixonado por quadrinhos e cinema, e inspirado pelo cotidiano e seus personagens. Publicou seu primeiro quadrinho Revelou-se a sua enorme ingratidão (2024), com lançamento no Festival Internacional de Quadrinhos.
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