A maestria do sambista e pesquisador que há mais de 50 anos se dedica a criar ferramentas de memória e resistência negra (foto: Fernanda Baldo)
Leia a edição de JUNHO/25 da Revista E na íntegra
POR ANA CRISTINA PINHO
Nei Lopes é um griô das palavras e dos sons, um mestre que samba com os pés no terreiro e a mente na filosofia. Cada letra, verso e livro que carregam a assinatura do sambista, escritor, poeta, pesquisador e ensaísta provam que a palavra tem axé, como ensina a tradição africana. O bamba foi reconhecido como doutor honoris causa por quatro instituições: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como um oráculo, que tem contribuído para resgatar epistemologias e apontar os caminhos do pensamento referentes às artes, história e literatura africana e afro-brasileira.
Nascido em 1942, no Irajá, subúrbio carioca, recebeu as primeiras influências musicais no ambiente familiar. Ainda jovem, em 1956, se encantou pelo Acadêmicos do Salgueiro, apenas três anos depois da fundação da escola, mas só em 1963 participou do histórico desfile com o enredo “Xica da Silva”, que define como uma das maiores “emoções estéticas” de sua vida. Mais tarde, integraria a ala de compositores e a velha guarda da agremiação. Participou também da diretoria da Unidos de Vila Isabel e da criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, fundado por, entre outros, Antônio Candeia Filho (1935-1978), Mestre Darcy do Jongo (1932-2001) e Wilson Moreira (1936-2018).
Como compositor, teve mais de 350 canções gravadas por grandes nomes da música brasileira, como Alcione, João Nogueira (1941-2000) e Beth Carvalho (1946-2019). Entre os diversos parceiros, como Moacyr Luz, Zeca Pagodinho e Sereno, destaca-se Wilson Moreira (1936-2018), com quem lançou o antológico álbum A arte negra de Wilson Moreira e Nei Lopes (1980). De acordo com Lopes, “parceria é quase sempre muito bom, ainda mais quando a gente encontra no parceiro qualidades e oportunidades que nos faltam”.
Graduado em direito e ciências sociais na Faculdade Nacional de Direito, da antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), dedicou-se a estudar temas relacionados à cultura e à história africana e afro-brasileira, impulsionado por inquietações para as quais não encontrava respostas no ensino formal. A trajetória como pesquisador rendeu obras fundamentais sobre a cultura africana e afrodiaspórica, como Bantos, malês e identidade negra (1988), O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical (1992), Enciclopédia brasileira da diáspora africana (2004) e Ifá Lucumí – O resgate da tradição (2020). Este último apresenta a redescoberta no Brasil e em Cuba do Culto de Ifá-Orunmilá, tradição religiosa iorubá em que Nei Lopes é iniciado e que também demarca a influência da cultura cubana em sua trajetória intelectual.
Ganhou duas vezes o prêmio Jabuti, com História e cultura africana e afro-brasileira (2008), em 2009, na categoria didático ou paradidático do ensino fundamental e médio, e com Dicionário da história social do samba (2015), escrito em parceria com Luiz Antônio Simas, como Livro do Ano de não ficção, em 2016. É também autor de romances, contos e poesias, como Nas águas desta baía há muito tempo (2017), A lua triste descamba (2012) e a coletânea de poemas Oitentáculos (reeditado em 2023), obras que remetem ao cotidiano do subúrbio do Rio de Janeiro, à compreensão da identidade negra e que evidenciam a cultura popular brasileira.
Nesta Entrevista, Nei Lopes nos convida a um mergulho em suas influências espirituais e terrenas, em sua visão sobre ancestralidade e filosofias africanas, e no legado intelectual que vem construindo.
No campo das filosofias africanas, você tem obras publicadas que o tornaram uma referência no assunto. O que motivou seu interesse por essa área do saber?
Desde muito cedo, o espiritualismo, digamos assim, me fascinava. Desde as manifestações dentro da família, que remontavam ao século 19. Minha mãe, nascida em 1900, e os irmãos dela “recebiam” entidades espirituais, coisa que vinha de longe. Eu, criança, embora temesse um pouco, tive interesse em saber quem eram aqueles seres que, certamente, nos aconselhavam e protegiam nossa família “católica” (todos batizados, casados, vivendo sob a égide da Igreja romana). Já quase adulto, resolvi pesquisar: da umbanda cheguei ao candomblé, atraído pelas danças teatralizadas, pelos atabaques, pelos cânticos… Aí, os vazios do entendimento foram sendo preenchidos, aos poucos. Até que a música me levou ao Caribe, para um festival… E lá vi que a santería (a forma mais conhecida da religiosidade afro-cubana) era “irmã” do candomblé, com entidades e rituais semelhantes ao que eu conhecia do Brasil. Isto não aconteceu de repente. Eu já não era mais criança e tive que ver isso como um universo que se abria para o meu conhecimento.
Como essa viagem a Cuba influenciou sua jornada?
Cuba me deu “régua e compasso” como já escrevera o acadêmico e intérprete Gilberto Gil (que já gravou música minha). De volta ao Rio de Janeiro, acabei abrindo algumas portas para amigos que conheci em Cuba. E eles foram responsáveis por reavivar no Brasil a tradição do Oráculo Ifá, tida como desaparecida do Rio desde, mais ou menos, o falecimento da legendária Tia Ciata (1854-1924). Aí, estava a chave! E do candomblé, eu abracei Ifá. E nesse abraço, o destino e Orunmilá [orixá na cultura iorubá e tradição filosófica que se expressa no Culto ao Ifá] me devolveram a vida de um neto, nascido em 1999, com uma doença incurável, que quase não “vingava”; e hoje com 26 anos, reconhecido como um dos mais competentes sacerdotes (babalaôs) da nossa comunidade de culto. A história é longa e o espaço é pequeno. Mas o que quero e preciso dizer é que existe uma religiosidade tradicional africana, que é praticada por sábios africanos, na origem e na diáspora; e é nela que eu me revigoro, sem nenhuma dúvida ou curiosidade, por saber que todo o conhecimento humano está num “livro” (não escrito) que mora no Oráculo Ifá. Observem os leitores que só conheci Ifá no início da década de 1990. Mas lembrem-se de que a espiritualidade africana já me embalava desde criança. E o samba era um sonho meio distante.
Suas vivências no samba estimularam o interesse por culturas e filosofias africanas?
Ainda na pré-adolescência, no antigo curso ginasial, tive colegas ligados ao mundo do samba e isso foi determinante, sobretudo, do ponto de vista musical, como um todo, me aproximando da música caribenha e afro-estadunidense. Daí veio o fascínio. Mas a consciência da importância desse universo só veio mais tarde, na década de 1970, com os livros a que tive acesso.
As escolas de samba são formas sociais de existência, de modos de viver. O que só uma escola de samba pode ensinar?
Desde a década de 1980, quando comecei a escrever e a publicar livros (o primeiro foi um libelo contra as transformações das escolas de samba, à época), eu aprendi a distinguir escola de samba e “samba”, enquanto gênero de música popular. E isso porque as escolas de samba, na década de 1970, entraram de cabeça na era do consumo e do mercado. Até me afastei um pouco, ao mesmo tempo em que gravava discos e DVDs com Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Fundo de Quintal etc., porque vi ali uma grande possibilidade de fazer sambas críticos e bonitos ao mesmo tempo – de denúncia e de amor, de falar quase tudo o que eu queria. Ao mesmo tempo publiquei romances, dicionários, livros sobre a história da África, tendo a ideia da importância desses trabalhos para o meu povo negro. Agora, tenho visto as escolas de samba com enredos corajosamente combativos – numa combatividade que está pondo os “falsos profetas” de cabelo em pé. Hoje eu vejo as escolas encenarem enredos de grande importância no que diz respeito à preservação da nossa religiosidade afro. E isto é muito bom, e me dá mais vontade de voltar ao meu Salgueiro. Tenho admirado muito os enredos comprometidos com a nossa religiosidade, mas esse trabalho não deve ficar restrito ao Carnaval. Tem que gerar filmes, peças teatrais. Mas aí, infelizmente, a gente vê que os lugares já estão tomados por outras expressões artísticas que não nos dizem respeito. A questão do momento é a busca pelo poder, e resistir sem emprego, saúde, educação, segurança pública é difícil.
Como você define ancestralidade e qual é a importância desse conceito na formação da identidade afro-brasileira?
A palavra ancestralidade virou moda. Já vi até, na TV, homens negros, cariocas, já idosos, dançando “charme” (moda black carioca de alguns anos atrás), dizendo que a dança remete às suas ancestralidades. Ora… O ritmo é estadunidense, da família da soul music, do rap. Então, eles dançam é por saudade da juventude, o que nem sempre tem a ver com ancestralidade. Além disso, acho que ancestralidade é a transmissão, de pai para filhos, de experiências positivas, conhecimentos. E nela parte-se do princípio de que são experiências naturalmente boas. Um patriarca desonesto, egoísta, malfeitor, não tramite coisas boas aos netos, bisnetos, tetranetos. Outra coisa: a difusão de bons conselhos e boas filosofias não se transmite apenas por frequentar certos ambientes; as boas vivências jamais se transmitem em cadeias de televisão, em mídias semelhantes, porque não são produtos.
A ancestralidade é a transmissão, de pai para filhos, de experiências positivas, conhecimentos. E nela parte-se do princípio de que são experiências naturalmente boas.
Apesar de todo o histórico de opressão e genocídio, a população negra segue resistindo, criando e mantendo sua vitalidade cultural. A que você atribui essa resiliência e como percebe o interesse crescente pelas culturas africanas e afro-brasileiras?
A população negra é muitas vezes dita como “resistente”, mas o que eu vejo mais mesmo é “resiliência”, ou, melhor: teimosia. E cada um “teima” do jeito que acha melhor. O que eu percebo é uma mobilização maior. Mas continuo vendo mais “animação” do que ações efetivas. Mais modismo do que resultados. No entanto, a culpa não é dos negros e sim do enfraquecimento global de nossas iniciativas. Não se esqueça de que eu já estou próximo dos 83 anos de vida terrena e meu desencanto talvez seja “coisa de velho”.
Por muito tempo, houve uma tentativa de separar o Egito do restante da África, inclusive nos livros didáticos, que apresentavam essa separação de forma literal. A que você atribui essa tentativa de descolamento?
Por trás dessa questão está a ideologia do supremacismo branco, que tem no tráfico negreiro [do século 15 ao 19, aproximadamente] o seu momento mais forte. Além de pauperizar violentamente a África, fez nascer e crescer o poder monetário do chamado Mundo Ocidental e do capitalismo. Comprovado pelo estrago levado a efeito pelas grandes potências europeias em todas as estruturas africanas de poder, faltava, então, derrubar todas as estruturas africanas de poder, sobretudo as do tipo Gana, Mali e Songhai [grandes reinos medievais, magistrais, num tempo em que a pobreza era o estigma da Europa]. Faltava derrubar o impedimento final, que era tirar do caminho a superioridade do saber africano, expressa na indiscutível superioridade do Egito na filosofia e nas ciências. Então, a estratégia foi demonstrar que o avanço do Egito-Cuxita (aliado a Cuxe, um reino indiscutivelmente desenvolvido e parte do atual Sudão) não tinha vivenciado um passado realmente africano, porque “africano não tem estruturas de cognição”, como até hoje tem gente falando…
E quais foram as contribuições do Egito para o pensamento filosófico mundial?
Pelo que eu sei, quando cientistas africanos, como Cheikh Anta Diop (1923-1986) e outros de sua linha de pensamento divulgaram o saber descomunal dos egípcios antigos (em todas as áreas do conhecimento humano), o Mundo Ocidental reagiu. E isso por causa do tal supremacismo branco. Como? Pretos cientistas? Os que negavam desconheciam o fato de que diversos filósofos gregos, segundo relatam os livros, teriam ido “aprender” no Egito. Até mesmo nos relatos bíblicos, eu sempre li que Jesus Cristo quando esteve “fora de cena”, esteve no Egito, aprendendo. E isto, porque, inclusive grandes mestres, nos primeiros anos do cristianismo, não eram “brancos”, e, sim, nativos de lugares hoje conhecidos como Etiópia, Eritreia, Cuxe etc., de pele escura. Da mesma maneira, li, alhures, que quando da inauguração do Canal de Suez, já no século 19, se não me engano, o governante árabe do Egito disse que dali em diante, o país deveria ser visto como um país europeu. Segundo ele, os pretos não tinham inteligência para realizar o que os antigos egípcios realizaram. Esta ideia era uma obsessão.
Diante de desafios globais, como guerras, fome, mudanças climáticas e migrações forçadas, de que forma as filosofias africanas podem contribuir para a construção de novos modos de vida e convivência?
Não acho que possam e sim que “poderiam”. A brabeza da escravização de africanos nas Américas; a colonização europeia na África (entre os séculos 17 e 19, sobretudo); e as vantagens que o chamado Mundo Ocidental ganhou com tudo isso, reforçado pela ideologia da “superioridade” desse mundo sobre o nosso, não me permitem imaginar nada de bom para o futuro. As perspectivas que vejo não são nada promissoras.
Existe um ramo da filosofia africana que valoriza o aprendizado com as pessoas mais sábias da comunidade. Quem são essas pessoas que influenciaram seu pensamento?
Meus votos vão para o saudoso historiador Joel Rufino dos Santos (1941-2015), o artista e produtor Haroldo Costa e o pensador Muniz Sodré, ambos ainda entre nós. Os sambistas Geraldo Pereira (1918-1955) e Padeirinho da Mangueira (1927-1987) e o chefe religioso Mestre Didi [Deoscóredes Maximiliano dos Santos] (1917-2013)], todos três já falecidos. Ainda tenho outras referências, mas essas são as que nunca deixo de citar.
Por fim, no que você está trabalhando atualmente?
No momento, tenho no prelo um Dicionário de Direitos Humanos, pela editora Record, para lançamento em outubro, e escrevo uma autobiografia para um pequeno grupo de amigos editores, a ser lançada no segundo semestre de 2026. Se os Deuses quiserem!
para ver no sesc / entrevista
Educação antirracista
Curso no Sesc Digital apresenta introdução à literatura e à música popular a partir da trajetória e da obra de Nei Lopes (foto: Fernanda Baldo
O Sesc Digital, plataforma de cursos online do Sesc São Paulo, lançou neste ano o curso gratuito Literatura e Tradições Afro-brasileiras, ministrado pelo escritor e compositor Nei Lopes, voltado a todos que se interessam por literatura, cultura popular e afro-brasileira. Ao longo de 15 encontros, Lopes percorre diversos gêneros literários, compartilhando referências e experiências de sua trajetória como autor de mais de 40 livros, ao longo de mais de 80 anos de vida. A cada aula, o artista destaca um gênero literário e suas influências, explicando seu método de trabalho e os bastidores da produção de suas obras.
Educadores, líderes comunitários, professores, profissionais de recursos humanos e grupos de estudo também podem utilizar o curso para fomentar discussões sobre representatividade e educação antirracista. A proposta é ampliar a visão de mundo sobre literatura e artes, inserindo temas ligados à história e à produção cultural africana e afro-brasileira. Dessa forma, o curso busca apresentar uma dimensão plural, e de reconhecimento, da diversidade que funda e compõe a história brasileira, em diálogo com a obra diversa de Nei Lopes, apresentada ao longo dos encontros.
As aulas contam com a participação especial da cantora Fabiana Cozza. Não é necessário ter conhecimento prévio para acompanhar as videoaulas e materiais complementares.
Inscreva-se em: sescsp.org.br/ead
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