Como a bibliofilia fundou coleções importantes de livros e deu origem a bibliotecas e outras instituições que preservam obras raras e históricas para acesso ao público
Leia a edição de JUNHO/25 da Revista E na íntegra
POR MATHEUS LOPES QUIRINO
FOTOS NILTON FUKUDA
Por definição, um livro é considerado raro quando ele sobrevive ao tempo, resiste às intempéries e não desaparece entre as trocas de mãos dos donos. Primeiras edições, tiragem pequena, circunstâncias extraordinárias, importância social e histórica e excepcionalidades são levadas em consideração na hora de classificar uma obra como raridade. Livros renegados por escritores ou considerados perdidos reluzem aos olhos dos chamados bibliófilos – aqueles que amam e colecionam livros singulares. Por isso, é importante frisar um lugar-comum nesse universo: nem todo livro antigo é raro.
Em O bibliófilo aprendiz (1965), Rubens Borba de Moraes (1899-1986) escreve que é graças ao colecionismo e aos colecionadores que grandes bibliotecas públicas formaram acervos respeitáveis. Ele credita aos bibliófilos, teimosos e pacientes, a gênese de importantes instituições, como a Biblioteca Folger Shakespeare, em Washington D.C., nos Estados Unidos, que abriga a obra completa de William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo inglês autor de Romeu e Julieta (1597). Foi graças a Moraes que a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM, da Universidade de São Paulo), na capital paulista, pôde existir como hoje se encontra.
“Ele [Moraes] é grande, porque formou a principal coleção Brasiliana, que é a biblioteca que temos hoje [na BBM]. Escrevia sobre bibliofilia, construiu uma relação de prazer em ter os livros, e de mostrá-los. Era um daqueles bibliófilos que tinham paixão pelo conhecimento, por estudar a fundo os livros”, conta Plínio Martins Filho, professor do departamento de editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e coordenador da coleção Bibliofilia, que reúne clássicos do ofício, publicados pelas Edições Sesc São Paulo e Ateliê Editorial.
Rubens Borba de Moraes, que dirigiu a então Biblioteca Municipal de São Paulo, hoje Mário de Andrade, era um colecionador ávido. Antes de falecer, em 1986, o bibliófilo destinou a José Mindlin toda a sua coleção Brasiliana. Nesse conjunto, estão livros sobre o Brasil, impressos desde o século 16 até fins do século 19, além de obras de autores brasileiros impressas no exterior até 1808. Esses exemplares foram doados à USP em 2006, junto a outras coleções que passaram a integrar a biblioteca pessoal do casal José Mindlin (1914-2010) e Guita (1917-2006).
Entre as coleções que formam a BBM, estão também o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) e a coleção Brasiliense, de livros impressos no Brasil desde o início do século 19 até os dias atuais. Ao todo, há cerca de 60 mil livros dispostos nos três andares do prédio localizado na cidade universitária e na reserva técnica. É um conjunto que vem sendo atualizado constantemente.
Em 2024, a BBM recebeu livros da coleção particular do escritor curitibano Dalton Trevisan (1924-2024), cujo acervo ficou com o Instituto Moreira Salles (IMS), que possui um vasto e importante repositório online, abrigando, inclusive, o Portal da Crônica Brasileira, com fac-símiles anotados por figurões do gênero, como Fernando Sabino (1923-2004), Rubem Braga (1913-1990) e Otto Lara Resende (1922-1992).
A atitude de Trevisan de destinar seu acervo a instituições, ainda em vida, foi celebrada dentro e fora do circuito literário. Transitando pelo meio há décadas, Martins Filho reconhece uma dificuldade de muitos bibliófilos: pensar suas bibliotecas para a posteridade. “Os bibliófilos, geralmente, são pessoas fechadas, que montam um acervo para o próprio prazer. Quem é amigo de bibliófilo pode ter a oportunidade de ver joias escondidas. É um ofício de devoção. Há vários casos de pessoas que, quando morrem, o acervo se perde, se dispersa em sebos. São raros os bibliófilos que dão destino para suas coleções em vida”, adverte.
RARIDADES DIGITALIZADAS
Ter em mãos um livro antigo é entrar em contato com a história. Mas folhear um exemplar de séculos atrás não é algo rotineiro. Nas instituições que possuem títulos raros, como a Fundação Biblioteca Nacional (FBN), a BBM e a Biblioteca Mário de Andrade, é possível consultar no local obras históricas por meio de agendamento. “Como apenas uma parte do acervo está digitalizada, oferecemos o serviço de consulta ao público e pesquisadores. Quando temos apenas um exemplar de um livro considerado histórico, é preciso seguir protocolos criados para proteger materiais frágeis”, conta Joana Moreno de Andrade, coordenadora da seção de obras raras e especiais da Biblioteca Mário de Andrade.
A coordenadora revela que a biblioteca está em meio a um processo de digitalização. Nas últimas semanas, a instituição teve aprovados projetos que vão receber investimento da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para a implantação de um novo laboratório de preservação, além da criação de um repositório digital e da digitalização do acervo. “Temos essa demanda há mais de 20 anos, por isso considero essa etapa uma verdadeira virada de chave na vida digital da biblioteca”, ressalta. Serão mais de duas mil e quinhentas obras digitalizadas, como livros, gravuras, manuscritos e periódicos.
Para facilitar o trabalho de pesquisadores e democratizar o acesso à informação, instituições públicas e privadas criaram acervos virtuais para disponibilizar verdadeiros tesouros. Segundo Maria José Fernandes, coordenadora-geral do Centro de Coleções e Serviços aos Leitores da Biblioteca Nacional, essa conexão do público com o acervo é um dos pilares da fundação. “Na Biblioteca Nacional, o próprio BNDigital e a Hemeroteca Digital são exemplos fortes desse trabalho, na medida em que permitem a consulta à distância, atingindo um patamar de cerca de sete milhões de consultas por mês”, informa. Entre o vasto material disponibilizado online, estão raridades como o “Evangeliário”, os pergaminhos mais antigos da América Latina, manuscritos por João Pandiá Calógeras, que datam do século 11.
Alguns dos títulos mais raros do país estão na FBN, que guarda as primeiras edições do épico português Os Lusíadas (1572), escrito por Luís Vaz de Camões (1524-1580). Ali, também está um exemplar do primeiro livro impresso no Brasil, em 1812, Marília de Dirceu (1792), do português Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). Já na BBM, há uma coleção completa com as primeiras edições de Machado de Assis (1839-1908); e livros sobre o Brasil, escritos por aventureiros, pintores viajantes e naturalistas desde o século 16. Como um itinerário do cartógrafo italiano Fracanzano da Montalboddo, que data de 1508, o incunábulo [livro impresso que data dos primeiros tempos da imprensa] mais antigo da biblioteca universitária.
“Desde sua inauguração, em 2013, a biblioteca [Brasiliana Guita e José Mindlin] nasceu também como uma biblioteca digital. Semanalmente, um conjunto de livros desce para o laboratório de conservação e digitalização”, conta o professor Alexandre Macchione Saes, atual diretor da BBM. A disseminação do acervo também é feita por meio das digitalizações, além de exposições de livros, seminários e cursos oferecidos por pesquisadores, professores e bibliófilos ligados à instituição.
O diretor da BBM explica que o fluxo de digitalização de uma obra passa por várias etapas o que acarreta uma demora de até dois meses para o livro ficar disponível online, a depender da complexidade. “Toda semana, entre cinco e dez exemplares são digitalizados pela biblioteca. Em um ano muito bom, conseguimos digitalizar até 400 livros”, revela.
ARTE DE COLECIONAR
Para o colecionador Rômulo Pinheiro, existem dois tipos de bibliófilos. “Os que não abrem os acervos são os bibliófilos intransitivos. Já a bibliofilia transitiva é, justamente, mostrar os livros, criar um desejo de leitura, conhecer mais o autor e as obras. Por isso, aqui estou”, conta Pinheiro que, ao lado da esposa, a advogada e colecionadora Patrícia Peck, mantêm a Biblioteca Peck Pinheiro, fruto do acervo pessoal do casal, com mais de 25 mil livros.
“A biblioteca existe há 22 anos, mas começamos a levar mais a sério o ofício e a incorporar livros de maior raridade há cerca de dez anos. Hoje, são aproximadamente cinco mil obras de literatura brasileira e 20 mil de interesse geral. Em nosso acervo, estão volumes completos com todos os principais autores do século 18”, conta Pinheiro. Entre as excepcionalidades, um exemplar de Espectros (1919), de Cecília Meireles (1901-1964), considerado um dos livros mais raros do século 20, e Memorial de Aires (1908), com a provável última dedicatória de Machado de Assis.
A criação da página da biblioteca no Instagram, hoje com mais de 30 mil seguidores, nasceu para despertar o apetite do leitor por grandes obras da literatura brasileira. “Nosso objetivo é explicar por que o livro é raro. As postagens contam histórias por trás dos livros, pois queremos incentivar quem consome esse conteúdo à leitura”, explica o colecionador. Embora perceba que o interesse por livros raros esteja em alta, haja vista a popularidade de seu trabalho crescente nas redes, Pinheiro define a bibliofilia como um ofício em extinção.
Fatores como a falta de acesso à cultura e à educação, além de certo “esnobismo” cultivado pelo meio, contribuem para esse cenário. O colecionismo de livros é considerado uma atividade cara e, nesse meio, há colecionadores que entram em leilões de obras e compram de sebos especializados, que comercializam exemplares a cifras carregadas de zeros. No entanto, para o criador da Biblioteca Peck Pinheiro, o valor de uma boa coleção está na diversidade de autores e nas boas ideias. “Para formar uma coleção, não é preciso ter muito dinheiro, mas sim ter critério”, resume.
NOVAS INICIATIVAS
Com intenção de fundar o Museu da Literatura Brasileira, com sede em Ouro Preto (MG), o colecionador Rômulo Pinheiro criou, em 2023, o Instituto Peck Pinheiro, para facilitar os trâmites da abertura do futuro museu. “A gente salva os livros para os livros nos salvarem”, diz ele, que tem oferecido cursos mensais e visitas guiadas para interessados em visitar sua coleção.
Cada vez mais, bibliotecas públicas ou privadas têm ampliado o número de visitantes com exposições itinerantes que trabalham recortes do acervo. O Instituto Peck Pinheiro abriu, em 2024, uma mostra sobre o protagonismo de escritoras brasileiras na Academia Mineira de Letras, trazendo obras importantes restauradas. Já o Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, onde ficam obras de referência sobre os primórdios da cidade, tem participado de eventos de difusão do acervo. “Recebemos grupos escolares e, também, participamos do Festival do Arquivo Aberto, que foi criado em 2023 para discutir não só o acervo, mas a metrópole por diversos ângulos”, conta a bibliotecária Carla Santos.
Outra iniciativa parte da criação, em 2024, do Museu do Livro Esquecido, localizado em um palacete histórico da década de 1920, no Centro de São Paulo. O espaço sedia exposições permanentes nas quais expõe um rico acervo com aproximadamente sete mil obras. Trata-se de uma instituição privada, voltada à conservação, segundo Pedro Zimmermann, coordenador. “Aqui, o leitor vai encontrar livros sobre história do livro e das bibliotecas, sobre tipografia, encadernação e coleções. A ideia é trazer obras que reúnam histórias contidas na materialidade”, explica.
O lugar já recebeu milhares de visitantes estimulados pelas redes sociais e aposta na proposta de percursos autônomos feitos com audioguia. “Esse sistema foi pensado como uma forma de conectar o leitor com o universo do livro, para que ele não divida atenção entre os textos explicativos e as obras em si. Enquanto ouve o nosso material gravado, o visitante pode olhar os detalhes das exposições”, convida Zimmermann.
para ver no sesc / literatura
Patrimônio preservado
Sesc Memórias dedica-se à organização, conservação e divulgação ao público de registros históricos do Sesc São Paulo
Espaço de exercício da memória institucional e afetiva, o Sesc Memórias reúne em sua coleção documental registros que contam o caminho percorrido pelo Sesc São Paulo, de 1946 até os dias de hoje. Projeto dedicado à coleta, conservação, organização, guarda e divulgação desses registros, o Sesc Memórias preserva e compartilha a memória institucional, garantindo que sua trajetória seja conhecida e valorizada. Sua atuação não só estimula a reflexão sobre o trabalho do Sesc, mas também fomenta a produção de conhecimento, tornando-se uma fonte acessível tanto para funcionários, quanto ao público externo.
Seu acervo reúne documentos gerados desde a fundação do Sesc São Paulo, abrangendo diversos formatos e suportes, como materiais textuais, fotográficos, digitais, audiovisuais, objetos tridimensionais, banco de entrevistas e figurinos teatrais – incluindo parte do acervo do Centro de Pesquisa Teatral (CPT). Um repositório que reflete as diferentes áreas de atuação da instituição, servindo para divulgação e preservação histórica.
Além disso, o Sesc Memórias realiza pesquisas sobre projetos e iniciativas do Sesc São Paulo, produz conteúdos relacionados à sua história e desenvolve atividades nas áreas de memória, arquivo e patrimônio. Localizado no terceiro andar do prédio onde também funcionam o Sesc 14 Bis e o Centro de Pesquisa e Formação, no bairro Bela Vista, região central de São Paulo, ainda recebe pesquisadores – mediante agendamento – e tem seu acervo reunido em salas de guarda. Possui em seu espaço, sala técnica para tratamento e digitalização da documentação e uma de trabalho com acervo audiovisual.
SESC MEMÓRIAS
Pesquisas no acervo, visitas técnicas e atendimentos à imprensa podem ser realizados com agendamento prévio, pelo e-mail: sescmemorias@sescsp.org.br, ou pelo telefone: (11) 3016-1685, com atendimento de segunda a sexta, das 10h às 19h. Saiba mais em: sescsp.org.br/sescmemorias
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