“Eu Sou um Monstro”: Uma Odisseia Artística por Fause Haten chega no Pompeia

27/03/2024

Compartilhe:

“Eu sou um Monstro é um trabalho de olho no olho, de encontro, de pessoalidades e individalidades. Um trabalho que busca o pequeno, o sensível, a sensível, a síntese do encontro com uma história e a reflexão que ela pode causar.”

Em uma exploração profunda e íntima das facetas do ser criativo, Fause Haten nos convida a mergulhar no universo de “Eu Sou um Monstro”, uma obra que desafia os limites entre teatro, performance e artes visuais. Esta peça, a terceira e mais provocativa da trilogia autoral de Haten, nos leva a uma jornada pelo íntimo de artistas icônicos, refletindo a própria experiência multifacetada do autor como designer de moda, ator e artista visual. 

Haten abraça esta monstruosidade, reivindicando-a como símbolo de transgressão e inovação. “Eu Sou um Monstro” fala diretamente ao coração daqueles que se aventuram pelo desconhecido, pelos domínios onde a arte desafia, provoca e transforma. 

“Eu Sou um Monstro” emerge como um espelho da alma artística, inspirada pela vida da figura enigmática de Francis Bacon, e alimentada pela própria vivência de Haten. A peça desdobra-se em uma narrativa que flerta com a autobiografia, entrelaçando as vidas de seus personagens com a do próprio criador, num diálogo que questiona a essência da criação, da monstruosidade e da beleza que reside no ato de criar. 

A jornada de Haten neste trabalho é uma solitária, embora rica em colaborações pontuais que enriquecem o tecido de sua criação. O processo é íntimo, uma constante fermentação de ideias que habitam o criador até se materializarem em cena. “Eu Sou um Monstro” nasce dessa introspecção, revelando-se em camadas de significado que convidam o espectador a um encontro singular com o artista e sua obra. 

Eu sou o Monstro
Foto: Fause Haten



O artista respondeu algumas pergunta sobre seu processo criativo e obras:

Fause, esse é o seu terceiro trabalho no teatro?

Trabalhos autorais sim, esse é o meu terceiro texto. Os 3 são solos com textos e direção minhas, além do fato de a minha persona sempre estar presente no palco e no texto como personagem.

Eu inclusive considero que são uma trilogia. “A Feia Lulu” (2014) era um texto que tratava da vida de um estilista de moda, Yves Saint Laurent. “Lili Marlene, um anti Musical” (2017) conta a história de um ator transformista, o Lili. E “Eu sou um Monstro” trata de um acontecimento na vida de um artista visual.

Essas escolhas não foram propositais, acabaram acontecendo, mas como eu sou estilista de moda, ator e artista plástico, tem sido uma ótima oportunidade pensar essas vidas no palco em paralelo à minha.

E por que são sempre solos? Seu processo é coletivo ou solitário?

O “Lili Marlene” eu tinha uma banda no palco comigo, e em “A Feia Lulu” eu tinha uma atriz convidada que fazia uma participação, mas de fato eram quase solos.

Eu vivo em estado permanente de criação. Tenho os textos 24h por dia se desenvolvendo dentro de mim. Como tenho um entendimento cênico, já vou escrevendo e pensando espacialmente e esteticamente o trabalho. Eu vou pesquisando, tenho ideias, escrevo, faço imagens, faço pequenas performances e vou juntando esse material.

Quando eu menos vejo, o trabalho está pronto e não tem nenhum outro criador comigo no processo. Pelo menos não na criação central. Mas tenho parcerias importantes de artistas que estão sempre por perto e na hora de subir no palco uma série de parceiros geniais tem me acompanhado e contribuído com minhas obras.

Nos últimos tempos, tenho pensado em exercitar outros processos também, quero mais gente comigo na criação, em cena e também penso em dirigir sem estar em cena.

Como começou esse projeto?

Eu estreei “A Feia Lulu” em 2014 no teatro Faap e “Lili Marlene, um anti Musical” em 2017 no teatro Eva Herz. Planejei estrear um novo solo em 2020 e para mim isso fecharia um ciclo de solos.

Soma-se a isso uma sugestão de um amigo, meu diretor de fazer um trabalho sem aparatos tecnológicos, já que “Lili Marlene” usava muito isso.

Eu havia visto um documentário sobre a vida do Francis Bacon e tomei conhecimento de que George Dyer, um de seus namorados, se suicidou na véspera de sua maior exposição no Petit Palais em Paris. E que ele e a sua agente encontraram o corpo e decidiram “não encontrar” para a notícia não ofuscar o grande evento.

George era pugilista e foi retratado em muitos dos quadros de Bacon, possivelmente alguns desses quadros deviam estar nessa exposição. Fiquei pensando na abertura dessa exposição sabendo dessa morte e sem poder falar. Achei aquela situação tão impressionante que escrevi um conto inteiro naquela noite mesmo a partir desse gatilho.

E esse conto ficou ali guardado. Eu não sabia muito bem como, mas achava que ele poderia virar teatro.

Em 2018 comecei a fazer leituras para amigos, atores e diretores. Passei quase 1 ano fazendo isso. Coincidentemente no início e depois de propósito, estávamos sempre sentados em uma mesa frente a frente e fazia sempre para 1 pessoa de cada vez. Nessas leituras foram surgindo novos textos, cenas, improvisos que eu fui transcrevendo e roteirizando a cada leitura a partir das gravações e registro que sempre faço nos meus processos.

Somei ali também uma performance que já usava essa frase: “Eu sou um Monstro” que eu havia feito em parceria com a Ondina Clais em 2013. Assim o texto foi se consolidando e chegou um ponto que eu passei apenas a repetir esse texto já definido. Eu assumi aquele formato de mesa com 2 cadeiras e incorporei essa simplicidade de forma na dramaturgia.

Em paralelo a isso e estimulado pelas falas do próprio Bacon sobre suas pinturas, comecei a fazer uma série de foto performances (Selfiesculturas) com o meu rosto, sempre com a intenção de distorcer ou transtornar esses rostos. E comecei a pensar nessas performances e imagens como a “obra do artista”.

Essas imagens foram criadas a partir ou inspiradas na obra do Bacon?

Eu não mergulhei na vida e na obra do Bacon. Eu assisti esse documentário que me deu o gatilho para escrever o conto inicial e parei por aí. Não achei importante. Esse não é um trabalho sobre ele mas a partir dele. É sobre um artista, sobre qualquer artista.
Eu tinha algumas imagens dele na cabeça de museus que eu visitei, mas não me apeguei a isso, nem tinha imagens das obras dele por perto.
Comecei a fazer imagens a partir de estímulos materiais que pudesse ter por perto. Fitas, cordões, adesivos, etc., sempre alterando ou deformando meu rosto. Imagens que construíssem novos corpos a partir do meu corpo/rosto.
Materiais que pudesse afetar o meu rosto para a série Selfiescultura e flores e frutas e um corpo em estado de letargia para a série O Namorado.
Só depois de muito tempo eu resolvi procurar na obra dele imagens que fossem semelhantes às obras do “artista” e acabei encontrando várias muito parecidas. Acho ótimo que sejam parecidas e fico muito feliz que a minha criação tenha sido completamente distanciada dele.

Essa não é a primeira vez que você faz obras visuais em paralelo aos seus textos de teatro, não é mesmo?

Sim, eu sempre fiz e tenho feito cada vez mais. Em “A Feia Lulu” fiz menos. Teve a performance das folhas de ouro em vídeo e usava isso em uma cena da peça. Fiz também algumas aquarelas e croquis que ficavam no saguão do teatro.
No “Lili Marlene” eu fiz bem mais. Muitas performances, pinturas, vídeo e fotografias. A Performance CemPeitos, que é minha performance mais famosa nas artes visuais, nasce também desse processo de construção de Lili.

E agora no “Monstro” eu atingi o máximo nessa escala. São inúmeras as obras e as plataformas. Pintura, escultura, fotografia, vídeo, performance etc.Acho que isso já se estabeleceu como parte do meu processo e não tem como não acontecer mais. E o caminho inverso também. No meu último trabalho de artes visuais, “Os Afetados”, a dramaturgia também fez parte do trabalho.

Me fala desse Monstro.

Sempre me impressionou muito como é usada essa palavra.

Ele é um monstro sagrado.Um monstro a atacou. Uma palavra usada com a mesma força para o bem e para o mal. Quando li o texto “Os Anormais” do Foucault, achei que várias das frases sobre o monstro e a atitude monstruosa, se trocasse a palavra “monstro” por “artista”, as frases continuavam pertinentes.

Somaram-se a isso o início da difusão das fake news, a polarização que temos vivido, a demonização dos artistas e a facilidade que as redes sociais proporcionaram para criar ídolos e os matar/cancelar.
“Podemos dizer que o que faz a força e a capacidade de inquietação do MONSTRO é que ao mesmo tempo que viola a lei, ele a deixa sem voz.”

Quem é o Monstro? É você?

Sou eu também…

Eu pensei muito nesse instante em que o amor vira ódio. Essa capacidade de transitar rapidamente entre sentimentos opostos. “Eu sou um Monstro” fala sobre isso, trata desse instante.Nesse sentido, o Monstro sou eu, e somos todos nós. Somos monstros quando amamos e quando odiamos. Somos amados e odiados por sermos monstruosos em algo.Acho muito interessante como a monstruosidade é caracterizada pelo excesso. Pelo inesperado, inalcançável. Do artista também se espera isso.

Esse trabalho fala dos artistas que têm sido demonizados e responde dizendo:

Sim, somos monstruosos e surpreendentes. Somos capazes de lhes mostrar coisas impensadas, e essa é a nossa beleza.

Essa é a capacidade do artista de redesenhar a vida e provocar o sonho e a reflexão. Esse sonho e reflexão fazem as pessoas quererem mais da vida, e é isso que os poderosos não querem. Preferem um povo desesperançado e passivo. Por isso as artes assustam tanto. E estamos aqui para assustar mesmo!

Como ator, eu passei a ter muita consciência dos meus sentimentos. É impressionante como é possível encontrar a monstruosidade dentro de nós. Está tudo lá: a maldade, a perversidade, a crueldade, a loucura. Tomar consciência disso é poder manter isso sobre controle e, no meu caso, como ator, poder usar quando necessário a serviço de um personagem.

Eu amo o livro “Mare Nostrum” do Fauzi Arap. Nele, ele conta as experiências dele com LSD na década de 60/70, que naquela época era usado em ambiente terapêutico. Quando ele começa a trabalhar com a Nise da Silveira, reconhece nos pacientes esquizofrênicos aquele mesmo lugar que ele chegava quando usava o LSD nas terapias. Segundo ele, o lugar era o mesmo, mas a diferença é que ele entrava e saía, e o paciente esquizofrênico estava aprisionado naquele lugar.

Acho muito importante reconhecer essa loucura e limites no nosso corpo. Isso nos coloca no controle. Você sabe que existe, sabe que não deve ir ali, e acaba aprendendo quando e como usar, se for preciso.

Na realidade, eu acho que a vida contemporânea nos deu acesso a muitas plataformas e por isso um artista não tem mais como se dedicar a uma única técnica. Isso distancia do apuro da técnica mas amplia a obra para o pensamento e o discurso. A técnica está a serviço da pesquisa e não o contrário.

Voltando ao Monstro, como você traçou o paralelo entre o Francis Bacon, artista, e o Fause, artista?

Quando eu escrevi esse texto, eu não pintava ainda a óleo. Eu achava incrível meus amigos que pintavam, que faziam retratos. Jamais achei que conseguiria fazer isso. Comecei a pintar no final de 2021 e o texto já estava pronto desde 2019. O Francis Bacon era um pintor e eu o olhava aquilo como algo inatingível. Para mim, ele é um Monstro.

Mas eu comecei a pintar e, para minha surpresa, rapidamente me desenvolvi. Acho que o meu trabalho na moda me preparou como colorista e como construtor de formas, tanto no desenho quanto na escultura. Foi tão rápido que passei a me sentir um Monstro. Eu sempre fui um cara com muitos talentos e mais que isso, sempre realizei e coloquei “pra jogo” essas habilidades, mas costumo dizer que a minha habilidade com as tintas e pincéis foi uma surpresa tão grande que foi a primeira vez que passei a me sentir de fato um cara fora da curva.

Eu Sou Um Monstro
Com Fause Haten
Duração: 50 minutos
De 4 a 14/4, de quinta a sábado, às 21h30, domingos, às 18h30
Ingressos disponíveis através do Aplicativo Credencial Sesc SP ou aqui.


Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.