Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Planeta compartilhado — e responsabilidade também!

Foto: Tarcila Tronca
Foto: Tarcila Tronca

Entrevista: Afonso Capelas

Especialista em economia circular, Flávio de Miranda Ribeiro, que se autodenomina um eterno otimista, afirma que a educação ambiental é antídoto certeiro contra a visão ingênua e inadequada que temos diante da produção descarte de resíduos.

Quem nunca sentiu certo alívio na corriqueira tarefa doméstica de colocar o saco de lixo na porta de casa? Para Flávio de Miranda Ribeiro essa é a sensação da maioria dos brasileiros em relação aos seus resíduos domésticos: a de que ao livrar-se deles todos os problemas estão resolvidos. Ao contrário, é a partir daí que os problemas (coletivos) começam.


Nesta entrevista a Cadernos Sesc de Cidadania, o engenheiro mecânico com especialização, mestrado e doutorado na área ambiental Flávio de Miranda Ribeiro fala sobre como podemos nos conscientizar do compromisso que temos como cidadãos e consumidores. Também professor e pesquisador na Escola Politécnica da USP, FIA, COGEAE-PUC e Unisantos, nas áreas de gestão de resíduos sólidos, produção mais limpa (P+L), análise de ciclo de vida (ACV), regulação ambiental empresarial e direito ambiental internacional, Fábio enfatiza que não basta reduzir, reutilizar e reciclar: precisamos consumir melhor, menos ou até mesmo deixar de consumir antes de darmos o destino adequado ao nosso lixo.

O que o consumidor comum precisa saber a respeito do seu lixo?


É fundamental perceber que tudo que consumimos em algum momento se tornará um resíduo, gerando impactos. Além disso, a gestão dos resíduos possui um custo econômico e efeitos sociais pelos quais também somos responsáveis. É preciso entender que a cada escolha de consumo induzimos uma cadeia de acontecimentos movimentando o que se denomina “ciclo de vida do produto”. Ao melhorarmos essas escolhas — consumindo melhor, menos ou mesmo deixando de consumir —, temos o poder de contribuir para a redução de muitos problemas ambientais, econômicos e sociais.

Quais são os impactos socioambientais dos resíduos que todos nós produzimos?


Eles têm duas vertentes. Em primeiro lugar há consequências ambientais derivadas da incorreta gestão dos resíduos, que podem causar problemas de saúde pública e meio ambiente. A contaminação da água e do solo, a poluição do ar, a proliferação de vetores e a veiculação de doenças são alguns exemplos. Mas há outro lado da questão, menos discutido e visível: o desperdício de recursos quando enviamos indiscriminadamente os resíduos para aterros licenciados, em vez de promover seu reaproveitamento.

Ao não conseguirmos reutilizar ou reciclar, deixamos de permitir que os resíduos retornem como novas matérias-primas, em substituição às matérias-primas virgens. Com isso, para fabricarmos novos bens acabamos por extrair mais recursos naturais, contribuindo para sua escassez e causando problemas ligados à sua extração e beneficiamento, entre outras operações. Além, é claro, dos próprios impactos ambientais dos aterros, incluindo o uso do solo para sua construção, que muitas vezes acontece em regiões valorizadas por serem próximas aos centros urbanos.

" A reciclagem aparece na hierarquia da gestão em terceiro lugar dos 3Rs, depois da redução e do reúso. Existem modelos hoje que falam em 6Rs ou até 9Rs, em que se acrescentam outras etapas anteriores – como ‘repensar’, ‘recusar’, ‘reparar’, ‘remanufaturar’… "

Como o consumidor se relaciona com seu próprio lixo?


No Brasil, muito mal. Em alguns outros países uma parcela significativa da população já se conscientizou de que os resíduos que geramos são consequências de nossos hábitos de consumo e, portanto, nossa responsabilidade. Aqui o consumidor ainda não se preocupa com a quantidade de resíduos que gera ou para onde eles vão após o descarte. É aquela ideia infantil de que basta deixar o saco de lixo na escada do prédio e durante a noite, em um passe de mágica, o problema desaparece — como uma “fada do dente” do lixo. Isso reduz as possibilidades de melhorias na gestão, como a separação na fonte dos recicláveis, essencial à coleta seletiva.


Mais ainda, por questões culturais originadas em heranças históricas lamentáveis do nosso país, muitas pessoas de alto poder aquisitivo não mantêm nenhum contato com os resíduos que geram, delegando o trabalho a seus empregados. Cria-se assim uma situação de descolamento total entre o consumo e o descarte, impedindo reflexões sobre hábitos sustentáveis justamente na parcela da população que, supostamente, tem acesso à educação de melhor qualidade.

O Japão incinera parte do lixo e recicla outra parte. Seriam medidas interessantes para nós?


É preciso ter cuidado ao traçar paralelos entre realidades diferentes. Cada país precisa encontrar suas alternativas adequadas a cada situação. Em geral, em cada país convivem diferentes tratamentos de resíduos, como reciclagem, compostagem, aterros e até incineração. Ocorre que “incineração” é um termo aplicado a um grupo de tecnologias que promovem a recuperação energética dos resíduos, ou seja, a obtenção de energia destes antes de enviá-los aos aterros. Não é a minha alternativa preferida. Acredito que precisamos priorizar a redução, o reúso e a reciclagem — os 3Rs, que inclusive consistem em uma hierarquia atualmente prevista em lei.


A incineração tem impactos ambientais associados. O mais importante talvez seja o potencial de emissões de alguns poluentes extremamente perigosos. Mas é preciso reconhecer que hoje existe tecnologia capaz de tratar essas emissões, tanto que o Japão e praticamente toda a Europa têm soluções de recuperação energética em seu cardápio de gerenciamento de resíduos. Essa ainda é uma opção bastante utilizada nesses países, mas com tecnologias modernas.

A questão passa a ser de duas naturezas: não incinerar coisa alguma que possa ser recuperada de outra forma (reúso, reciclagem, compostagem) e exigir as melhores tecnologias disponíveis para evitar a emissão de poluentes perigosos. Não é simples nem barato e tenho dúvidas de que no Brasil conseguimos fazer isso da forma adequada. Nem aterros temos sido capazes de construir.

Então a reciclagem é a nossa melhor alternativa?


De forma alguma. Na própria lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) a reciclagem aparece na hierarquia da gestão em terceiro lugar dos 3Rs, depois da redução e do reúso. Existem modelos hoje que falam em 6Rs ou até 9Rs, em que se acrescentam outras etapas anteriores – como “repensar”, “recusar”, “reparar”, “remanufaturar”. Não é porque um resíduo é reciclável que se pode consumir livremente, até porque a reciclagem exige impactos ambientais como as emissões de transporte para coleta, gastos de água, energia e produtos químicos na operação. Reciclar, na verdade, deveria ser a última opção antes de mandar algo para um aterro.
 

Afinal, a PNRS está avançando?

Desde 2010 passamos por vários momentos de avanço e estagnação das ações necessárias à implementação da PNRS. Na média, acredito que avançamos — como eu disse, sou um otimista. Mas existem assuntos nos quais ainda estamos estagnados, como na discussão sobre os instrumentos econômicos. Sejam as taxas do lixo proporcionais à geração, fundamentais como estímulo à coleta seletiva, sejam os benefícios tributários, por exemplo, para o incentivo ao uso de materiais recicláveis, essas importantes alternativas não avançaram praticamente nada nos últimos dez anos.

Em que pé está a logística reversa no Brasil?

De maneira geral evoluindo, mas de forma muito lentae frágil. Uma avaliação justa dependeria de uma análise caso a caso. Muitas empresas e entidades têm promovido esforços significativos, principalmente nos últimos dez anos, com a promulgação da PNRS. Se olharmos algumas dessas situações, veremos que chegamos em poucos anos a resultados que alguns países europeus demoraram quase 30 anos para obter. A questão é que isso não vale para todos e muitas empresas ainda estão à margem do que a lei exige. Alguns sistemas não foram sequer estruturados, mesmo com dez anos da lei vigente.


Acredito que muitas dessas empresas não irão avançar sem que sejam pressionadas, o que mostra a importância de uma atuação mais efetiva do poder público. Em São Paulo, o governo estadual decidiu abraçar esse tema em 2011 e desde então houve significativo avanço. Em outros lugares, quem tem tomado a iniciativa é o Poder Judiciário, com atuação importante do Ministério Público. Nesse caso é preciso uma estratégia única, clara e transparente sobre como o país como um todo pretende organizar e cobrar a evolução dos sistemas.

"Não há outro caminho para a mudança que não a educação ambiental. Para que as pessoas se disponham a essa mudança é preciso estar verdadeiramente motivado, pois é provável que tenham de empenhar alguma dose de esforço adicional ou abrir mão de algum conforto"

Como vê a cobrança de taxas sobre o lixo ao consumidor?

Com a definição do conceito da responsabilidade compartilhada, a PNRS quis demonstrar que cada um precisa fazer a sua parte, até para que o próximo elo na cadeia de gestão possa fazer a sua. Por exemplo, se o consumidor não retornar os resíduos pós-consumo, de nada adianta ter um sistema estruturado de logística reversa — o resíduo simplesmente não retorna.

Da mesma forma, não adianta o consumidor estar consciente e mobilizado se não houver um local adequado e acessível para o descarte. Independentemente de a responsabilidade sobre o ciclo de vida dos produtos ser compartilhada, é preciso que em cada caso haja uma divisão de responsabilidades entre os partícipes dos sistemas. Até para que todos saibam o que cabe a cada um e eventualmente possam cobrar que cumpram seu papel, seja por parte das autoridades, seja por parte dos cidadãos.

 

Sobre taxas, é preciso dizer que todos os sistemas de gerenciamento de resíduos possuem custos associados — desde a coleta tradicional, realizada pelas prefeituras e concessionárias, até a logística reversa. Ainda que em muitos casos possa haver receitas acessórias, como a venda de materiais recicláveis, na maioria dos casos elas não cobrem a maior parte dos gastos.

Assim, alguém tem que financiar os sistemas e não há mistério: ou fazemos isso por taxas ou tarifas ou por meio da cobrança às empresas que comercializam os produtos. E elas certamente vão transferir os custos ao consumidor. Essa é uma discussão importante para a qual é preciso maturidade.
Não podemos ficar na ilusão de que não há contas a pagar.

Como envolver o consumidor para mudar seu cotidiano em favor da redução do consumo?


Não há outro caminho para a mudança que não a educação ambiental. Para que as pessoas se disponham a essa mudança é preciso estar verdadeiramente motivado, pois é provável que tenham de empenhar alguma dose de esforço adicional ou abrir mão de algum conforto. É o exemplo da facilidade e praticidade trazida pelos alimentos industrializados prontos e embalados, se comparados a adquirir os ingredientes crus e preparar a refeição em casa.

A melhoria ambiental obtida com essa mudança só vai acontecer se o consumidor acreditar e valorizar os ganhos obtidos — e é bom lembrar que nem sempre todos poderão fazer essa escolha. Na prática, vejo que primeiro precisamos difundir mais e melhor os princípios e conteúdos de educação ambiental nas diversas camadas da população.

Assim como é necessário haver informação qualificada para o consumo sustentável e disponibilidade de produtos ambientalmente adequados a preços acessíveis nas gôndolas dos supermercados. Vejo nisso tanto uma oportunidade para as empresas, no oferecimento de produtos com atributos de sustentabilidade, como uma necessidade de criar formas de informar os consumidores e subsidiar sua tomada de decisão. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio de programas de certificação de produtos que precisam ser abrangentes, baseados em critérios claros, técnicos e simples o suficiente para a população compreender e aplicar.


Gostaria de destacar a importância de revisarmos a forma de vender os produtos e, dentro disso, discutir o papel da mídia nesse processo. Temos uma indústria da propaganda eficiente no Brasil. É preciso aproveitar melhor esse potencial para comunicar atributos de sustentabilidade em vez de vender necessidades que muitas vezes nem sequer existem.

"Os resíduos que geramos são consequências de nossos hábitos de consumo e, portanto, nossa responsabilidade […] aquela ideia infantil de que basta deixar o saco de lixo na escada do prédio e durante a noite, em um passe de mágica, o problema desaparece — como uma “fada do dente” do lixo […] cria uma situação de descolamento total entre o consumo e o descarte, impedindo reflexões sobre hábitos sustentáveis…"

A redução do consumo é algo palpável em uma era consumista?


Como sou otimista, acredito que sim. Mas é preciso separar a discussão em duas partes. Em primeiro lugar temos de reconhecer que no Brasil, assim como em outros países em desenvolvimento, temos ainda uma enorme parte da população abaixo da linha da miséria ou com nível de consumo abaixo do considerado adequado.

Para essas pessoas deve haver, sim, um aumento de consumo. Mas para a outra parte da população, que já superou esses limites, cabe uma reflexão sobre hábitos e padrões de consumo. Ainda vivemos a ideia de “sonho de consumo”, a ilusão de que chegaremos a uma vida satisfatória com o acesso a mais produtos, muitas vezes supérfluos. É necessário rever os valores, por meio de trabalho de educação ambiental que devem chegar a todos. Enquanto isso não ocorrer, a redução de consumo, ou o consumo sustentável, será um tema restrito a nichos da população que podem pagar por um produto “eco” ou “bio”.