Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Encontros

Homem da guerra

por Moisés Rabinovici


O título do texto da seção Encontros desta edição não deve causar confusão: o jornalista Moisés Rabinovici, hoje diretor de redação do Diário do Comércio, é, de fato, um homem da guerra, mas não por tender à beligerância.

Ao contrário, o primeiro contato que Rabinovici teve com uma zona de conflito foi, justamente, procurando a paz.

“Eu fui para a guerra por engano”, contou durante conversa com o Conselho Editorial da Revista E. “Fiquei no Jornal da Tarde até que um dia, em 1977, Sadat [Muhammad Anwar Al Sadat, militar e político egípcio] anunciou ao mundo que faria uma visita a Jerusalém, e era uma visita histórica. Isso foi causa de excitação na redação do jornal, o que acabou resultando em um convite para que eu fosse a Israel e esperasse o acordo de paz. Eu fui e a paz até hoje não saiu.” A paz não saiu, mas o jornalista não deixou mais o Oriente Médio, onde ficou durante nove anos cobrindo as constantes tensões da região. “Acho que as últimas guerra de que eu deixei de participar foram a segunda no Iraque e a do Afeganistão ”, faz as contas. “Antes disso, eu fiquei 25 anos vagando pelo mundo pelo Estadão [jornal O Estado de S.Paulo]. Com posto fixo em Tel Aviv [Israel], depois em Jerusalém [também em Israel]. Em seguida, seis ou sete anos em Washington e depois uns três ou quatro anos em Paris.

De lá, fui para a Iugoslávia.” Durante o bate-papo, Rabinovici lembrou histórias de antigas coberturas e contou um pouco sobre os bastidores das notícias. A seguir, trechos:

Fogo cruzado

Meu batismo de fogo foi um bombardeio aéreo durante o qual eu entrevistava o major de uma milícia libanesa na fronteira com Israel. De repente, ele me jogou de baixo de um pé de laranja e eu só fui entender quando o barulho dos supersônicos estremeceu a terra.

Isso se repetiu muitas vezes. Depois fui para Beirute e esse barulho era constante. Um ruído que quebrava as janelas todas da cidade. Tanto que a nossa medida de otimismo da paz era quando os libaneses compravam vidro para substituir os quebrados. Muitas vezes, quando acabavam de pôr o vidro, a aviação israelense voltava e dava o boom supersônico na cidade, que estilhaçava de novo.

Logo que cheguei teve um atentado que virou uma tragédia. Alguns fedains, que são uns terroristas árabes, tomaram um ônibus em Haifa [cidade portuária de Israel] que fazia a rota para Tel Aviv no que eles chamam de shabat, que é o fim do sábado. O exército pôs uns obstáculos intransponíveis bem perto de onde eu tinha alugado um apartamento, e ali houve tiroteio e morreu todo mundo que tava dentro do ônibus, até os fedains.

Tel Aviv ficou sob toque de recolher e eu fiquei me acostumando à ideia de que, muito antes de cobrir a paz, eu cobriria a guerra. E a primeira guerra aconteceu em seguida. Foi uma vingança a esse atentado, e o ministro da defesa era o Ariel Sharon, que depois se tornou Primeiro Ministro. Mas, antes disso, Sharon invadiu o Líbano pela segunda vez e foi até Beirute, foi quando eu me mudei para lá. Agora, é preciso dizer que eu tinha uma barba até aqui [faz um sinal de barba grande] e que meu nome é Rabinovici. Era um tanto perigoso para mim, na ponte terrestre entre Tel Aviv e Haifa. Porque a gente escrevia em telex, que era o único meio de comunicação, depois de um tempo eu tinha um em casa, e a censura não deixava que qualquer um tivesse. Quando o dia não era propício aos palestinos ou para suas facções, eles estouravam o gerador do hotel e parava tudo. Quem tinha que transmitir matérias que pegasse o carro e fosse para Haifa. Um caminho feito de sulcos de tanques. Francos atiradores por toda parte.

O jornalista Moisés Rabinovici esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 14 de agosto de 2009

Frequentando os inimigos

Fiquei 42 anos no Estadão [jornal O Estado de S.Paulo]. Vinte cinco desses anos fora do Brasil e voltei para trabalhar na redação quando houve o atentado de 11 de setembro. Eu já tinha ido para casa preparar a mala quando o jornal disse que dessa vez eu ficaria para passar minha experiência para a redação. Foi um trabalho muito interessante também, que eu gostei de fazer. No meu lugar entrou o Lourival Santana, que continua até hoje. Os jornais geralmente têm alguém que vai para o front. Na Folha era o Clovis Rossi e hoje é o Sérgio Dávila. Mas são culturas diferentes, pois uma vez eu participei com o Sérgio de um encontro e puseram numa tela uma imagem dele com um capacete, colete à prova de balas, e ele ainda acrescentou que tinha passado por um curso de cobertura de guerra.

Eu nunca soube que havia um curso desses. Na minha foto, eu apareceria com uma camiseta com o mapa do Brasil. Porque era impossível, como ainda é, que não conheçam o Pelé. E tratam você bem. O Brasil é um país querido e essa era minha segurança. Eu acho que eu sou o repórter de guerra em extinção, pois na minha época você ia para os dois lados. Você estava em Israel e depois você estava em Beirute. Você frequentava os “inimigos”. Hoje, o repórter vai para uma tenda montada em algum lugar, onde o exército faz relatórios vespertinos de como anda a guerra que ninguém vê. É impossível o repórter estar lá no fundo do Afeganistão, onde um avião acabou de deixar uma bomba.

Guerra na Iugoslávia

Fiquei dez dias na Iugoslávia. Fiquei quase um mês na Macedônia com as tropas francesas esperando meu visto sair. O visto não era concedido. Eu vivia na França, pedi por lá, mas acabou tendo problemas burocráticos no Brasil. Eu de um lado e o William Waack do outro. Estávamos os dois na linha de entrada. E não cheguei no começo da guerra. É uma guerra brutamontes em comparação com as outras. E completamente fora do padrão de outras guerras. Era para mim uma guerra europeia, muito mais do que africana, latino-americana ou do Oriente Médio. Os bombardeios eram pesadíssimos, os massacres estão sendo apurados até hoje. Tem gente para ser julgada no Tribunal de Haia [Tribunal Internacional de Justiça, o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas]. Acho que a guerra que eu mais vivi mesmo foi a do Líbano, porque essa da Iugoslávia nós tínhamos hotel para ficar, na do Líbano, como o hotel disponível estava totalmente ocupado, era preciso dividir cama com as pessoas. Quando um avião era derrubado, íamos atrás dele da mesma forma quando você corre atrás de balão, quando menino. Para ver que avião era, de que tipo era. Tudo isso tem uma importância muito grande em uma guerra, pois alguns aviões são vendidos para os países apenas como armas de defesa, e outros são vendidos apenas para ataques. E tem leis rígidas que regulam o uso desses aviões.

No centro do mundo

No meu tempo Washington era a capital do mundo. Era superpotência. A cobertura era o desmoronamento da União Soviética, a queda do muro [Muro de Berlim, em 1989], os encontros do Reagan [Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos] com o Gorbachev [Mikhail Gorbachev, líder soviético]. Uma mudança importante no mundo, e Washington era um ponto importante no mundo, onde todos os presidentes convergiam, inclusive os brasileiros. Paralelamente a isso, o Brasil tinha muito interesse. A gente vivia abaixo de escritórios de advocacia em Nova York, onde os brasileiros se encontravam para decidir a negociação da dívida externa.

Geralmente era inverno, um frio danado, e nós não podíamos entrar no lobby. O vidro que cercava o hall era morno por fora, então nós todos ficávamos agarrados a ele como se fossemos aranhas. Passávamos a noite esperando os brasileiros abraçados ao vidro.

 

“Porque era impossível [durante suas coberturas de guerras], como ainda é, que não conheçam o Pelé. E tratam você bem. O Brasil é um país querido e essa era minha segurança”