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Ficção Inédita

 

Saudades de Matão

por Braulio Tavares

O hotel ficava num prédio muito velho, e de aspecto esquisito; tinha cheiro de mofo, e seu silêncio contrastava com a agitação da rua. Mas o preço era barato; e estava bem próximo do local de seu novo emprego. Ele hesitou um pouco, mas acabou aceitando o quarto minúsculo que lhe foi oferecido. À tarde trouxe as malas e instalou-se.

Nos primeiros dias, tudo normal; não demorou a sentir-se ambientado. Não conversava com ninguém, quando muito trocava um “bom dia” ou “boa noite” ao cruzar pelos outros hóspedes. Fazia as refeições em alguma das muitas lanchonetes da rua.

Num sábado, estava descansando, depois do almoço, sem ter o que fazer; pensou em ir ao cinema da esquina.

Não foi. Aí, de repente, ouviu um som vindo do quarto ao lado. Parecia um gemido. Apurou o ouvido: o som elevou-se novamente, só que não era um gemido, ele corrigiu-se: era o som de uma gaita-de-boca. As paredes eram finas, e o som entrava com clareza no seu quarto. Começou a distinguir as notas, a melodia, e percebeu que o tocador (não podia imaginar quem fosse) era muito bom. Ele entendia do assunto: quando era mais jovem, também tinha tocado gaita, e animara serenatas e festinhas. Tornara-se conhecido, e andava com a gaita sempre no bolso; era popular entre as moças da turma. Mas vieram os tempos difíceis, e ele tivera que arranjar um emprego para sustentar a família: abandonou os estudos, afastou-se aos poucos dos amigos e das festas. A gaita perdeu-se, esquecida.

Agora, o som que lhe era tão familiar voltava aos seus ouvidos, através daquela parede. O vizinho desconhecido tocava uma valsa antiga, daquelas bem melancólicas e que lembravam retreta, bancos de praça em cidadezinha do interior, passeio por um parque num entardecer de domingo. Era uma valsa que ele também tinha tocado, na sua juventude e com sua gaita. Não se lembrava do título, nem do nome do compositor; mas recordou cada nota, cada frase melódica, e o estribilho, que soava como um suspiro.

Ficou tenso, prestando atenção, até a música terminar. Depois, por mais que esperasse, não ouviu um som sequer, e acabou trocando de roupa e indo mesmo para o cinema.

No dia seguinte, à noite, a mesma coisa. Uma outra valsa, mais triste ainda, tocada com virtuosismo. Através da onda de lembranças do passado, ainda teve tempo de admirar a perícia do executante; depois, silêncio.

No outro dia, mais uma valsa. Depois de acabada, ele criou coragem; aproximou-se da parede, pigarreou e pediu, com voz hesitante mas forte, uma valsa qualquer, que era uma de suas prediletas. O som de sua voz ecoou de maneira estranha no silêncio do quarto, mas o vizinho devia tê-lo escutado, pois logo a seguir executou a valsa.

Isso o animou, e ele acostumou-se, nos dias seguintes, a renovar os pedidos: “Valsa Branca”, “Saudades de Matão”, “Célia”, “Rosa” e tantas outras. Sempre era atendido; vinha a música, sempre bem tocada, mas nem uma palavra, nem uma resposta. E depois o silêncio.

Isso durou semanas.

Um dia, ao voltar do trabalho, cruzou por um dos serventes do hotel na escada e fez a pergunta: quem morava no quarto vizinho ao seu? O homem fez uma cara esquisita, olhou-o meio de banda, e não respondeu; desconversou. Falou que parecia que ia chover. Ele subiu as escadas intrigado, entrou em seu quarto e, ao abrir a porta, veio-lhe a ideia. Voltou atrás, trancou a porta novamente, tirou a chave da fechadura, e encaminhou-se para a porta do quarto vizinho. Bateu. Nada de resposta. Bateu novamente; esperou; nada. Atreveu-se, e enfiou a chave na fechadura. Experimentou. Teve um arrepio ao sentir a ponta da chave forçando a mola, destravando a lingueta com um giro e um estalo. A porta se abriu.

Ele entrou devagar: o quarto estava escuro. Acendeu a luz e teve uma surpresa: o quarto inteiramente vazio, nu, liso. Só chão e paredes. Adiantou-se um passo – e viu a gaita sobre o assoalho.

Foi até lá, agachou-se, apanhou-a. Uma gaita enorme, com chaves, cheia de madrepérolas e dourados – linda.

Sua mão tremeu: nunca tocara numa gaita daquelas, nos seus bons tempos. E agora... hesitou um pouco, foi com algum receio que levou a gaita à boca. Conseguiria? O primeiro sopro saiu tímido, mas o som límpido o animou. Tentou desajeitadamente um sol-la-?-si-dó, que saiu cristalino, perfeito; experimentou mais algum tempo, testou as chaves, conhecendo o instrumento. Minutos depois já estava mais senhor de si: sentado no chão, ensaiou uma musiquinha ligeira, depois outra mais complexa, empolgou-se.

Tão empolgado ficou que não escutou o ruído da chave trancando a porta pelo lado de fora. Tão distraído estava que, modulando valsa após valsa, não notou o passar das horas no interior do quarto. Tão hipnotizado o deixou o som claro e profundo daquela gaita que os dias passaram e ele não queria despregar dela os lábios, e a sua própria respiração reduziu-se ao soprar e aspirar de melodias através daquele mágico corpo metálico.

Sonhou tanto que nem estranhou quando, muito tempo depois, uma voz tímida, vinda do quarto vizinho, pediu-lhe para tocar “Saudades de Matão”.

Fim



Braulio Tavares é autor, entre outros livros de, A Invenção do Mundo pelo Deus-Curumim (Editora 34, 2008), com ilustrações de Fernando Vilela