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Adauto Novaes

Foto: Indayara Moyano
Foto: Indayara Moyano

Adauto Novaes é um estudioso inquieto. Formado em filosofia no Colégio de Altos Estudos e jornalismo no Instituto Francês de Imprensa de Sorbonne, ambos em Paris, ele tem coordenado ciclos de debates e palestras pelo 31° ano – sempre organizado pelo Centro de Estudos Artepensamento, montado por ele próprio.

Recentemente, organizou de 5 de agosto a 1° de outubro o ciclo Mutações: A Invenção das Crenças, durante o qual foram realizados 22 encontros no Sesc Vila Mariana. “Pode-se dizer que o Ocidente passou da morte de Deus à divinização do homem, quando a modernidade põe o homem no centro de tudo”, disse Novaes em entrevista à Revista E.

Por 20 anos, foi diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte do Ministério da Cultura e publicou diversos ensaios e livros, entre eles, ?Tempo e História (Companhia das Letras, 1992), ?ganhador do Prêmio Jabuti; A Crise do Estado-Nação (Civilização Brasileira, 2003); e O Homem Máquina (Companhia das Letras, 2003). Nomeado Chevalier des Arts et Lettres pelo Ministério da Cultura da França (2004), o filósofo discorreu acerca da reconfiguração do mundo a partir das revoluções da tecnociência, da biotecnologia e da informação.

Você é um observador privilegiado porque ao longo de mais de duas décadas tem trabalhado com o universo intelectual. O pensamento brasileiro, nesses últimos anos, teve alguma marca característica? Ele se tornou mais independente, em relação aos centros mundiais? Por conta da globalização, não existe essa questão de pensamento brasileiro, pensamento europeu?

Tenho certa dificuldade em lidar com o que alguns chamam de “pensamento brasileiro”. O que posso dizer, a partir da experiência recente, é que, de alguma maneira, o grupo de intelectuais que trabalha conosco em torno das mutações pode trazer algo de novo para o pensamento. Há cinco anos, pensadores brasileiros e europeus tentam, neste nosso projeto, pensar as grandes transformações por que passa o Ocidente, repensar os conceitos que já não conseguem nos orientar.

Podemos dizer que, até pouco tempo, havia um entendimento mais ou menos comum quando se falava em espaço, tempo, natureza, trabalho, percepção do mundo, olhar, arte, política etc. Penso que hoje, muitas dessas noções perderam o sentido preciso. Abstratas, elas são indispensáveis à inteligência. Retomo um pensamento forte do poeta e ensaísta Paul Valéry: “A era da barbárie é a era dos fatos”, diz ele; nenhuma sociedade se estrutura, organiza-se sem as coisas vagas. Entendemos por coisas vagas precisamente essas abstrações. É inegável que vivemos um momento de barbárie.

Você acredita que estamos conseguindo pensar estruturalmente e conceitualmente, vamos dizer, com a nossa cabeça? Ou, pelo que observa, usamos modelos estrangeiros para pensar?

Essa é uma questão-chave hoje. Ao afirmar que vivemos hoje uma mutação, isso quer dizer que é preciso repensar os conceitos. Os modelos explicativos com os quais tentávamos entender a realidade já não dão mais conta. Pensávamos que os ideais do humanismo levariam às grandes transformações, às grandes revoluções. Bom, como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, militante de esquerda nas décadas de 1960 e 1970, nós, da esquerda, que apostávamos na classe operária como a classe universal que ia fazer a revolução, não nos demos conta de que uma grande revolução estava sendo feita, que é a revolução tecnocientífica. E isso é verdade. Isso altera tudo hoje. Quer dizer, os conceitos têm que ser repensados.

Partimos da existência de uma cisão, e hipótese, proposta por Heidegger [filósofo alemão, 1889-1976], da cisão entre ciência e técnica de um lado, e pensamento de outro. Heidegger diz: “A ciência não pensa”. A ciência realiza coisas, faz coisas; é a filosofia que pensa. Na prática, vemos uma enorme autonomia da tecnociência em relação ao pensamento.

O pensamento brasileiro se pauta, hoje, por uma formulação original? É isso que podemos concluir?

Não sei se se pode falar de pensamento original brasileiro. O certo é que entre filósofos, cientistas sociais, físicos, psicanalistas brasileiros há também europeus que estão na aventura de pensar as mutações. É possível que alguma coisa de original surja daí. Mas sabemos que não existe um diálogo “puro” do pensamento com o pensamento apenas. Ele está ligado às experiências que vemos no Brasil e lá fora.

Mais do que nunca, na era da globalização, seria temerário falar de “pensamento brasileiro”. Se tudo passa por veloz transformação, é preciso voltar à experiência das coisas para tentar extrair dela novos pensamentos. Já fizemos quatro ciclos de conferências ligados ao tema das mutações. O primeiro foi As Novas Configurações do Mundo, isto é, de que maneira o mundo está sendo reconfigurado a partir das revoluções da tecnociência, da biotecnologia e da informação; o segundo foi A Condição Humana, o que é viver nesse novo mundo; o terceiro foi sobre A Experiência do Pensamento.

O último foi A Invenção das Crenças. Acreditamos que temos muito a pensar nas várias áreas da atividade humana: na política, na ética, na moral, nos costumes, nas mentalidades, nas artes. Mas atenção: não se trata de inventar o novo abandonando a tradição.

Pelo contrário, devemos partir daquilo que já foi pensado para pensar o novo. É a velha ideia da retomada permanente. Outro cuidado que devemos ter, ao fazer a crítica da tecnociência, é a distinção entre a ciência saber e a ciência poder. Não existe uma condenação da ciência naquilo que fazemos. Mas é preciso fazer a distinção. A ciência pode estar muito ligada à técnica, ao tecnicismo, e isso, de alguma maneira, dificulta o pensamento, porque a técnica se basta, e ela tem objetivos muito concretos.

Se, nos últimos ciclos de conferências, partimos da ideia geral de que a atual revolução tecnocientífica é feita no vazio do pensamento, isso não quer dizer que não haja trabalho do pensamento, mas que os novos pensamentos não vieram ainda à expressão. É certo que o desenvolvimento tecnocientífico tende a enfraquecer a noção de saber. Ou melhor, assistimos à ruína da “nobre arquitetura” construída com os dois pilares clássicos da ciência e do saber diante da convicção contemporânea de que qualquer saber que não traga na sua estrutura um poder efetivo tem apenas importância convencional.

Ainda em termos de Brasil, você, desde o primeiro seminário até agora, o que poderia ressaltar como diferença, como modificação desse universo intelectual com o qual você trabalha?

Até A Invenção das Crenças foi construído um percurso que mobilizou o melhor do pensamento brasileiro. Eu cito uma generosa carta do professor Antonio Candido, nosso maior intelectual: “Considerando que o senso da diversidade é uma das diretrizes dos ciclos, torna-se ampla e abrangente a visão que seu trabalho suscita sobre a vida mental, a vida social e os próprios rumos da civilização contemporânea.

Não há dúvida de que a série dos volumes que recolhem os produtos dos ciclos constitui um dos feitos mais importantes da atividade cultural brasileira de nosso tempo”. Ora, essa importância deve-se à competência teórica de todos os intelectuais envolvidos, cada um em sua especialidade. Não sei dizer se há modificação do universo intelectual. Há, sim, novas experiências que pedem novos pensamentos.

A gente pode dizer que, nesse período, você começa a fazer os seus seminários, a trabalhar com essa produção intelectual, antes e depois da queda do Muro de Berlim. Usando esse fato como parâmetro, como ele reflete no seu universo intelectual? O que ele modificou?

Penso a queda do Muro de Berlim como um marco simbólico muito forte para a história do pensamento. Até então, o pensamento político estava muito estereotipado. Havia uma polarização ?fácil que dificultava o próprio desenvolvimento do pensamento, e a queda levou à necessidade de pensar os rumos do próprio pensamento. Por isso eu digo que, de alguma maneira, os velhos conceitos com os quais a gente lidava não são mais suficientes porque o Muro de Berlim talvez seja não o ponto de partida ou o ponto de chegada, mas a expressão dessas contradições.

Da mesma maneira que o 11 de Setembro também é um desafio, até mesmo para entender os alcances da tecnociência. Pode-se dizer que os autores do 11 de Setembro não tinham ciência para fazer o que fizeram, mas eles tinham acesso à técnica, quer dizer, a técnica passou a ser uma coisa muito comum. Então, de alguma maneira, aquele momento sinalizou, de maneira muito explícita, uma grande mudança. Ou seja, eu volto a dizer, aquilo não é ponto de partida nem o ponto de chegada, mas é o sinal, o signo, de uma coisa que já estava acontecendo e sobre a qual é preciso pensar.

Essa quebra de paradigmas se dá basicamente pelo quê?

O Paul Valéry tem um pensamento genial, e que serviu até de inspiração para um pequeno texto que eu fiz de apresentação do ciclo do ano passado. Ele diz que o espírito não quer mais habitar a sua obra. Quer dizer, o mundo, tal como o vemos hoje, é obra do trabalho do espírito humano.

As grandes transformações, o grande desenvolvimento tecnocientífico, são parte do trabalho do espírito, entendendo espírito como potência de transformação. A ideia de progresso científico e técnico levou ao momento de mutação. E vejo isso como o resultado do grande trabalho da inteligência humana, e que permitiu o grande desenvolvimento científico e técnico, só que utilizado da maneira nem sempre desejável.

O fim das crenças, digamos, pode ser positivo para o pensamento, de modo a instigá-lo?

Aí a gente entra no terreno do ciclo deste ano. Eu não penso que exista um fim das crenças. O último ciclo tratou exatamente disso. É preciso, primeiro desfazer certo equívoco que identifica muito a crença com a religião. Como diz Montaigne [escritor francês, 1533-?-1592], o homem é um animal que crê. Essa palavra, muito comum, designa toda certeza sem provas: essa é, digamos, a noção mais geral de crença.

De maneira bem simplificada, pode-se dizer que o Ocidente passou da morte de Deus à divinização do homem, quando a modernidade põe o homem no centro de tudo. A modernidade acreditou que a razão iria acabar com as crenças. Há hoje certa tendência filosófica que fala de pós-humano, quer dizer, nós já estaríamos vivendo o pós-humano.

O que seria isso? De um lado, a “morte do sujeito”, coincidindo com aquilo que outros afirmam ser o momento em que a ciência e a técnica passam a ser divinizadas. Crê-se que a ciência e a técnica vão desvendar todos os mistérios do homem e do mundo. Ora, como escreveu Gustave Le Bon [pensador francês, 1841-1931, fundador da psicologia social]: o mistério é a alma ignorada das coisas. Sempre haverá mistérios do homem e do mundo, sempre haverá crença. Lemos, ainda, na Pequena Carta sobre os Mitos, de Paul Valéry: “O que seria de nós sem a ajuda daquilo que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos desocupados se desfaleceriam se as fábulas, as abstrações, as crenças, os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas metafísicos não preenchessem com seres e imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais.

Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos amores. Só podemos agir movendo-nos em direção a um fantasma. Só podemos amar aquilo que criamos”. Penso que essa frase sintetiza o melhor pensamento sobre as crenças.

Gostaria de falar sobre a crença na política, que deixou de estar no centro das preocupações de boa parte da população mundial. Há uma descrença no aparato político?

Concordo que há um pessimismo na política e essa descrença vai perdurar enquanto a tecnocracia e o “deus mercado” dominarem os desejos. Fizemos recentemente um ciclo de conferências e um livro chamado O Esquecimento da Política, e o centro das preocupações era exatamente essa questão que você está levantando. Acredito que há certa descrença, primeiro, porque hoje o discurso político perdeu o sentido. Em boa parte por causa da crise das utopias.

O mundo futuro e promissor foi substi-tuído pelo aqui e agora. Ou seja, a política virou apenas uma questão técnica e administrativa. Isso é muito curioso porque é uma coisa que acontece aqui e fora daqui também. Mesmo nas eleições, vê-se muito mais uma acirrada luta pelo poder e não uma luta política. Daí decorre o já tão discutido tema da crise das utopias. Não sabemos dizer com precisão onde estamos e para onde vamos.

Relembremos Hanna Arendt [filósofa política alemã, 1906-1975] quando ela diz que estamos vivendo entre dois mundos, um que não acabou inteiramente e outro que ainda não começou inteiramente. Então a gente não saberia dizer como vai ser a política desse novo mundo. Que é diferente, é. As formas de representação talvez tenham que ser repensadas. O próprio discurso político. O que se vê hoje é um indisfarçável domínio da técnica. O que é mais importante numa campanha? O marketing. Não é o conselho político que define as ações dos candidatos.

Toda essa tecnização, esse final de utopia, acaba tendo reflexo no comportamento do homem, na questão psicológica?

Alguns filósofos afirmam que vivemos uma verdadeira revolução antropológica. Mas como essas mutações inscrevem-se na nossa história pessoal de maneira veloz e volátil, os conceitos para definir o homem e seu comportamento são ainda incertos. Não sabemos nomear esse novo estado de coisas.

O homem só se define no tempo. Ora, como disse Valéry, o mundo contemporâneo aboliu as duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro. Sem passado e futuro, vivendo apenas o presente, torna-se difícil definir o homem.

Duas tendências imaginam definir nosso momento de passagem: para alguns, trata-se?da morte ou do esquecimento das tradições que tinham sido capazes de estabelecer concepções de mundo tidas como claras, uma visão unitária que dava sentido às ações humanas; para outros, é o momento da insuficiência da razão substituída por uma ontologia fragmentada. Se o homem é um animal racional, como definiram os gregos, como defini-lo quando ele mesmo constrói a irracionalidade e gosta dela? 

Agora, em relação à crença na religião, embora o mundo passe, como você constatou, por essa tecnização, o que se percebe também é um fundamentalismo brutal de determinadas crenças. Como ficaria o pensamento nesse contexto?

Eu penso que a crença está muito mais no campo das paixões, do sentimento, do que da razão e do pensamento. Um autor pouco conhecido, Wilhem Busch, escreveu que “os casos de crença são casos de amor. Não existem razões a favor ou contra isso”.

Parafraseando Wilhem Busch, eu tenderia a pensar que o fundamentalismo religioso é, entre outras coisas, um caso de ressentimento. Para a relação entre crença e pensamento, como você interroga, prefiro citar David Hume [filósofo inglês, 1711-?-1776] que escreve o seguinte em seu Tratado da Natureza Humana: a crença ?está “não na natureza nem na ordem de nossas ideias, mas na maneira pela qual a concebemos e como a sentimos no espírito.

Confesso – diz ainda Hume – que não posso explicar perfeitamente este sentimento, esta maneira de conceber. Podemos empregar palavras que exprimem algo de aproximado. Mas seu verdadeiro nome, seu nome próprio, é crença. Cada um compreende esse termo de maneira definida na vida corrente. Em filosofia, não podemos fazer mais do que afirmar que o espírito sente, que algo distingue as ideias do julgamento das ficções da imaginação”.

Em certo momento, você disse que hoje o pensamento vem a reboque dos acontecimentos. Poderia falar um pouco sobre isso?

Isso é muito em função exatamente do que a gente já vem dizendo. Vivemos um momento de uma grande revolução, na qual predomina a tecnociência. Recorro a uma imagem usada por Bergson [filósofo francês, 1859-1941] em um de seus ensaios sobre o tempo para ilustrar o que quero dizer por pensamento a reboque dos acontecimentos.

Bergson descreve dois trens andando na mesma direção, com a mesma velocidade, nos quais duas pessoas, uma em cada um deles, pudessem se comunicar livremente. Penso em um trem do pensamento e outro trem da ciência e da técnica. De repente, o trem da técnica ganha maior velocidade, tornando a comunicação difícil. É que o pensamento exige paciência para se constituir, e hoje o mundo é muito veloz, a ciência e a técnica evoluem com uma velocidade muito grande, cada dia você tem uma inovação e uma invenção técnica. Penso que o pensamento está vindo lentamente, a reboque dos acontecimentos técnicos.

Como eu disse no começo da entrevista, você é um observador privilegiado na medida em que trabalha com grandes pensadores brasileiros. Você acha que o intelectual brasileiro tem respondido, de maneira eficaz, às questões brasileiras como as políticas, econômicas? O intelectual tem sido um acalanto para quem o lê, para quem o observa?

Eu acho que sim, e o seguinte: na realidade, quando organizei um ciclo chamado O Silêncio dos Intelectuais, não estava negando de maneira nenhuma o trabalho do intelectual brasileiro hoje. Pelo contrário, a gente estava pondo em evidência um grande problema: a figura clássica do intelectual engajado tendia a desaparecer. Exatamente por causa disso tudo discutimos até agora, dessa grande mutação. Qual foi o último grande intelectual engajado?

Foi Sartre e ele morreu há 30 anos. Nenhum grande intelectual o substituiu nessa função. E uma das funções primordiais do intelectual engajado é a de apontar para o futuro. Aquilo que se chama de utopia. E hoje se constata a crise das utopias. A segunda função importante do intelectual consiste em se dirigir à esfera pública.

Ora, sabemos que a esfera pública hoje já não é mais a mesma: os sindicatos fortes não são os mesmos dos séculos 19 e 20, não contamos com grandes assembleias e grandes comícios. Tampouco temos uma imprensa aberta à multiplicidade de expressão dos intelectuais. Com o surgimento dos novos meios de informação – a revolução da informática, tendemos a pensar no aparecimento de novo tipo de intelectual, anônimo e coletivo.

“A ciência pode estar muito ligada à técnica, ao tecnicismo, e isso, de alguma maneira, dificulta o pensamento, porque a técnica se basta, e ela tem objetivos muito concretos”


“A modernidade acreditou que a razão iria acabar com as crenças”

“O Homem só se define no tempo. Ora, como disse Valéry, o mundo contemporâneo aboliu as duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro”


“Política virou apenas uma questão técnica e administrativa. Isso é muito curioso porque é uma coisa que acontece aqui e fora daqui também. Mesmo nas eleições, vê-se muito mais uma acirrada luta pelo poder e não uma luta política”


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