Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

América (parcialmente) Latina

Osvaldo Luis Angel Coggiola é um intelectual argentino. Antes de ingressar na academia, a sua grande paixão foi o futebol. “Mas abandonei quando atuei contra Osvaldo Ardiles [campeão mundial em 1978], porque ele era tão melhor que pensei: ‘Puxa, não sirvo para jogar’”, disse ele, durante o encontro com o Conselho Editorial da Revista E. Participou da insurreição popular conhecida como “cordobaço”, em 1969. Anos depois, foi expulso da Universidade de Córdoba com o golpe militar em 1976, na Argentina.

Foi perseguido e preso 14 vezes. Depois, foi para a França e se graduou em História (1977) e em Economia (1979) pela Université de Paris VIII. Também obteve nos anos seguintes os títulos de mestre e doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Professor Titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Coggiola passou a residir em São Paulo ainda na década de 1980, pouco antes da Guerra das Malvinas. O autor de As Grandes Depressões: 1873-1896 e 1929-1939 (Alameda Editorial, 2009) e Da Revolução Industrial ao Movimento Operário (Editora Pradense, 2010) discorreu sobre o contexto social e político da América Latina. A seguir, trechos:

Redescoberta

A América Latina é latina só parcialmente. O conceito surge para justificar as ambições colonialistas da França, na segunda metade do século 19, período da fracassada invasão do México feita pelo Imperador Maximiliano, primo de Napoleão III. Hoje, todo mundo aceita a existência da América Latina. Mas esse conceito não era ponto pacífico até alguns anos.

Quando se falava dela, nos anos de 1960, você era tido como de esquerda, pois só a esquerda falava em América Latina, enquanto o establishment falava em América, América do Sul. Se você for ao interior da Bolívia, porém, e perguntar a um camponês se ele é latino-americano, ele vai olhar como se você estivesse perguntando sobre o planeta Marte.

Hoje, no entanto, a América Latina está mais popularizada, quer dizer, passou a ser aceita pela mídia. O termo América Latina designava uma pessoa com orientação de esquerda, porque era uma América oposta à América não Latina, ou seja, se definia pelo contrário aos Estados Unidos, ao império.
No braço do povo

Nos anos de 1960, Che Guevara [revolucionário socialista de origem argentina, 1928-1967] era símbolo da América Latina. Hoje, é um ícone universal. Ele se transformou em mito ainda vivo, porque havia desaparecido, ninguém sabia onde ele andava. Atualmente, é uma espécie de ícone absoluto e ninguém fala mal dele. Mas no início, Che não era ícone, nem estampava camisetas... Mike Tyson [ex-pugilista estadunidense] tem tatuagem dele no braço, assim como Maradona [ex-jogador da seleção argentina].

E a torcida do Rosário Central – time para o qual Che torcia, na Argentina – se chama torcida Che Guevara. Che passou a ser aceito em um processo que não é apenas da América Latina. Por exemplo, a Revolução Francesa foi aceita pela sociedade francesa quase depois de um século, porque nesse período ainda havia monarquistas, que consideravam a Revolução um inferno.

Só para dar outro exemplo de um processo semelhante: peronismo e Perón eram palavras proibidas na Argentina. Não podiam ser publicadas nos jornais. Podia-se falar em comunismo, socialismo, qualquer coisa, exceto Perón ou peronismo. Quando criança, a nossa diversão era gritar “Perón” ao policial da esquina e correr, porque falar em Perón era a coisa mais proibida. Hoje Perón é quase um herói nacional, dá nome a praças, a avenidas.

Projeto ideológico

As tendências ideológicas não desapareceram, ainda há pessoas que consideram Che Guevara um monstro e a Revolução Francesa a pior coisa que aconteceu. Porém, a América Latina se tornou uma noção universalmente aceita. Mas isso não designa grande coisa, porque, na prática, ela é apenas um projeto político que se afunilou com o tempo. Ela não é uma realidade, mas se torna popular num projeto chamado bolivarianismo, de Chávez [Hugo Chávez, presidente da Venezuela]. Não é forte no Brasil, porque sempre foi um país diferenciado dentro do que se chama de América Latina.

Depois de ter servido ideologicamente a uma intervenção colonialista, a expressão América Latina, entre o final do século 19 e início do 20, passou a ser usada por intelectuais como resposta ao pan-americanismo. A noção de “América” era colocada pelos Estados Unidos, vinha da Doutrina Monroe, de 1823, hoje denunciada como uma doutrina imperialista norte-americana.

Monroe proclamou essa doutrina, antieuropeia, porque, para os americanos, a Inglaterra e a França não poderiam nem deveriam tentar colonizar a América Latina, como parecia possível ainda naquela época. Não somente possível, houve tentativas como a francesa no México ou, em 1846, o bloqueio anglo-francês do Rio da Prata.

Economia integrada

A democracia existe na América Latina porque as ditaduras militares se esgotaram. A Guerra das Malvinas [conflito armado entre Argentina e Reino Unido, 1982] foi mais importante do que se pensa, porque foi a única tentativa, desastrada e encabeçada por uma ditadura reacionária, de um país latino-americano desafiar militarmente o império ianque. Mas a América Latina perdeu. E a influência que os Estados Unidos passaram a exercer com a vitória das Malvinas foi determinante.

Os países latino-americanos continuaram com uma estrutura econômica escorada na produção primária. São países que dependem enormemente do mercado mundial. E uma conjuntura desfavorável desse mercado pode levá-los a uma situação economicamente catastrófica, porque não há estrutura industrial integrada. Se pegarmos as transformações da Ásia, incluindo a China, nos anos de 1960, a região passou de cerca de 7% do PIB [Produto Interno Bruto] mundial a quase 30%. Estamos falando dos Tigres Asiáticos, China e Malásia e toda aquela região. Mas a América Latina estagnou e sua importância econômica em relação ao PIB mundial recuou a partir dos anos de 1950, de 10% para 4%.

Experiência política

Já o papel do Brasil é excepcional. Décima economia do mundo etc. Mas parece estar descolado do resto da América Latina. Ele tenta jogar como representante, perante os poderes mundiais, porque de fato é a economia mais importante da América do Sul. Agora temos alguns índices de crescimento de economias menores: Uruguai, Chile são economias reduzidas.

Chile é muito menor do que Argentina, e atualmente o PIB argentino é inferior ao PIB do estado de São Paulo. Um PIB que já foi superior ao PIB do Brasil é atualmente inferior ao de São Paulo.

A América Latina se insere dentro desse contexto. Há especulações sobre as mudanças geopolíticas, diz-se que a economia chinesa vai superar a norte-americana no PIB, mas a própria noção de PIB está sendo questionada quanto ao que ele realmente mede. No entanto, a América Latina tem uma experiência política muito importante. Nela não existe um Afeganistão, Iraque, não existe conflito entre países latinos tão forte quanto Israel e Palestina. É a região mundial etnicamente mais diversificada, uma diferença marcante em relação ao resto do planeta.


O historiador Osvaldo Coggiola esteve ?presente na reunião do Conselho Editorial da ?Revista E em 16 de setembro de 2010


“As tendências ideológicas reacionárias não desapareceram, ainda há pessoas que consideram Che Guevara um monstro e a Revolução Francesa a pior coisa que aconteceu"