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As muitas faces da arte

Atriz e diretora consagrada, Carla Camurati fala sobre o interesse pela infância e pela velhice, a preferência pelo lúdico em sua filmografia e a paixão pela ópera

A trajetória da atriz e diretora Carla Camurati tem muitas facetas. Dos palcos à televisão, a carioca participou de peças como Flicts, de Ziraldo, Gatinhas e Gatões – seriado exibido pela Rede Globo, e de telenovelas como Fera Radical (Globo) e Brasileiros e Brasileiras (SBT). Apaixonada por cinema, a oportunidade surgiu em 1981, quando atuou no filme O Olho Mágico do Amor, dirigido por José Antônio Garcia e Ícaro Martins.

Depois do início promissor, trabalhou durante mais de duas décadas em produções para a telona e obteve o Prêmio Air France de Cinema, como melhor atriz, por A Estrela Nua (1986) e por sua interpretação em Eternamente Pagu (1987). “O cinema é a mistura do entretenimento e do pensamento, ele deve propor um convite a pensar e a refletir”, disse Camurati, em depoimento no CineSesc.

Além de premiada atriz, Carla estreou como diretora no filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, de 1996, que atraiu mais de 1 milhão de espectadores – considerado marco da retomada do cinema brasileiro. Aficionada também de óperas, Camurati discorre sobre suas escolhas profissionais, o mercado de distribuição de filmes e o interesse pelo princípio e pelo fim da vida. A seguir, trechos:

Trajetória profissional

Comecei no teatro da escola. Cheguei a cursar medicina, mas optei pelos palcos quando fiz Flicts, do Ziraldo. Em meu primeiro programa na TV [Amizade Colorida], atuei ao lado do Fagundes [o ator Antônio Fagundes]. E daí o Zé Antônio Garcia, diretor de cinema de São Paulo, e o Ícaro Martins estavam fazendo o filme O Olho Mágico do Amor. Quando estavam praticamente rodando, eles me viram na televisão e me escolheram para o personagem que faltava.

A experiência foi muita boa, porque depois veio uma sequência inteira de trabalhos nas três áreas: ?teatro, TV e cinema. Vim para São Paulo fazer peças, onde se deu quase toda minha carreira de atriz. Mas voltei ao Rio, para atuar em Eternamente Pagu (1987) a convite da Norma Benguell. Fazer a Pagu [pseudônimo da escritora ?Patrícia Galvão, 1910-1962], aliás, foi saboroso porque ela tem uma dimensão política e artística. Há essa trajetória rica da história dela como amante num triângulo entre Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.

Notas cinematográficas

Vejo duas questões no cinema brasileiro. Ele cresceu na produção, porém mantém problemas na distribuição. Hoje ainda há uma situação delicada e complicada, porque há o mercado que assumiu o filme médio. Então, continuamos com o problema na distribuição e em todos os sentidos, porque, dentro do cinema brasileiro, precisamos ter o blockbuster [sinônimo para os sucessos de bilheteria], o filme de arte, e o filme médio. E na verdade são coisas diferentes, que são tratadas como entretenimento e resultados.

O país cresce desordenadamente na produção, diria quase demagogicamente. Isso ocorre porque o cinema também entrou num boom, pois a informação visual hoje é muito importante e até pelo celular se filma ou tira foto. E isso vai ficando meio horizontal, não tem como. Só que a horizontalidade dentro disso não quer dizer necessariamente uma qualidade na produção. Por exemplo, fala-se numa abundância de produção, mas não necessariamente se fala da estruturação correta da indústria. Por isso, é preciso ter pontas e equilíbrios, e a distribuição não te dá isso.

Transição das telas

O filme Carlota Joaquina [Carlota Joaquina, Princesa do Brasil] foi lançado em janeiro de 1996. O que me interessa nesse tipo de direção é a escolha daquilo que acho importante, saboroso, para falar às pessoas, para se discutir e pensar. Pois acho muito interessante que o cinema seja também uma condução do pensamento. Ou seja, o cinema é uma mistura do entretenimento e do pensamento.

É bom que se tenham histórias e se proponha às pessoas um convite a pensar, a refletir sobre diversas situações. E quando pensei em me tornar diretora, queria sair da relação de intérprete de alguém que quer dizer alguma coisa. O meu desejo, quando comecei a dirigir, era exatamente este: falar da história do Brasil. Queria falar de ópera, terceira idade, velhice, porque vários assuntos me interessam.

Método dramático

No cinema, acho sempre melhor se divertir e ser lúdico. Não me interessa o drama por princípio, mas me interessa a tragédia e a comédia. O drama quase me cansa, aquela coisa de ter um problema por não conseguir se equilibrar, por exemplo. Isso pouco me interessa, e talvez até me falte mais generosidade nesse sentido. Não tenho muita paciência com pessoa que tem ou quer ter problema. Então até me calo um pouco para a novela, porque ela costura muitos dramas. Fico a pensar, por que passar para as pessoas certo tipo de reflexão onde tudo é banal?

O homem poderia se ver livre de todos esses sentimentos que tanto o atrapalham e prejudicam a alma. Nos meus filmes, procuro, portanto, brincar com a relação da comédia, do lúdico, e acabam por ficar em tom irreverente. Mas na verdade não é porque busco essa irreverência, busco a maneira lúdica de falar.

Sons da ópera

Comecei a lidar também com ópera muito cedo. Logo depois de Carlota, recebi o convite para dirigir La Serva Padrona [ópera do italiano Giovanni Pergolesi, 1710-1736], que transformei num filme em 1998. A ópera tem um universo encantador, ela ajuda a retomar a conexão perdida com a linguagem. Nela existem sons, coloraturas, que o homem não escuta mais. Tem um momento em que o ouvido precisa se abrir, assim como os olhos.

Tive o privilégio de fazer as óperas Carmen, de Bizet [o compositor francês Georges Bizet, 1838-1875], O Barbeiro de Sevilha [do italiano Rossini, 1972-1868], Madame Butterfly [de Puccini, 1858-1924]. E fiz agora Romeu e Julieta [do francês Gounod, 1818-1893], que foi lindo, bárbaro, um espetáculo que lotou semanalmente o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A tradição é o bom da ópera, porque a pessoa lê o livreto, o fecha, senta, e se entrega à música.

O fim

Interesso-me tanto pela questão da infância quanto pela velhice, conforme pude abordar no Copacabana [filme de 2001], porque ambas representam exatamente o princípio e o final da vida do homem. O princípio é quando o homem vai galgar, abranger, contornar e ser. Isso me interessa pelo fato de a gente também negligenciar a infância. Tratamos essas questões de maneira relapsa em vez de designar o devido respeito, o que implicaria uma sociedade melhor em todos os sentidos.

O problema é que o Brasil, mais do que o resto do mundo, considera-se um país jovem e isso é estranho para nós mesmos. Porque de fato não existe isso, na verdade existe o caminho que seguimos e tudo é a passagem do tempo. A infância e a velhice são os momentos mais decisivos da nossa vida, mas o homem, como sociedade, talvez dê menos importância a eles. Ninguém liga para o velho ou para a criança. Ninguém leva a sério essa conversa como deveria levar. E é engraçado como as pessoas pensam nisso de maneira boba, porque elas não percebem a infância, por exemplo, como um tempo mínimo e determinante, crucial ao longo da vida. Se eu chegar a ficar velha, gostaria de aproveitar esse momento com plenitude e não ter medo dele.

 “No cinema (...) não me interessa o drama por princípio, mas me interessa a tragédia e a comédia. O drama quase me cansa”