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Luta contra o empilhamento

por Mauricio Monteiro Filho

Quase 90 milhões, é esse o número que melhor diagnostica a atual situação do Judiciário brasileiro. Essa é a quantidade de processos à espera de uma solução, que se acumulam pelos fóruns e tribunais do país. O dado se refere ao ano de 2009 e foi publicado num relatório anual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), intitulado “Justiça em Números”, que traz indicadores variados sobre a estrutura e o desempenho do sistema no Brasil.

Hoje, esse volume já aumentou e não há esperança de que decresça sem que medidas urgentes sejam tomadas. Nesse contexto, a adoção dos chamados métodos extrajudiciais de solução de conflitos (MESCs) vem se apresentando como uma alternativa que, se não será capaz de resolver imediatamente o problema, promete reduzir a taxa de crescimento do estoque processual – nome dado às pilhas de processos em tramitação.

Os MESCs constituem uma ferramenta preciosa para desonerar a Justiça, porque permitem que as partes se entendam diretamente, sem a necessidade de ingressar com uma ação. Na prática, para autores e réus, isso significa economia de custos e, principalmente, de tempo. E, para o Judiciário, equivale a menos páginas engrossando as estatísticas negativas de processos sem fim. “Ainda que o país não vivesse uma situação tão complicada nessa área, os MESCs iriam se desenvolver, porque são uma evolução. Eles não representam só uma reação à montanha de processos, mas uma autonomia das vontades. Em vez de ver no juiz a única forma de solucionar um problema, temos de pensar num sistema multiportas, com várias alternativas para resolver controvérsias”, declara Carlos Alberto Carmona, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Cabe esclarecer que os MESCs diferem das audiências de conciliação, que, a rigor, podem ocorrer em qualquer estágio de uma ação judicial, visando alcançar um acordo entre as partes – algo que ainda acontece com pouca frequência no Brasil. A distinção é que, nesse segundo caso, os entendimentos são mediados pelo Judiciário – por isso, são chamados de audiências de conciliação judicial –, e continuam impactando as diversas esferas da Justiça, além de sofrer do vício do formalismo excessivo que pauta essas demandas no Brasil. “Esse tipo de conciliação funciona mal, uma vez que os juízes não têm paciência nem tempo, e por isso mesmo não são bons conciliadores”, diz Carmona.

Desafogo

Basicamente, existem três formas alternativas de resolução extrajudicial de litígios. Na mediação, as partes elegem um terceiro para facilitar a conversa entre elas. É uma forma bastante utilizada para apaziguar problemas entre casais ou brigas de sócios que são parentes, ou seja, casos em que há vínculos de ordem afetiva impedindo a comunicação. “O mediador age para aproximar as partes e resolver o problema com ideias delas mesmas”, explica Carmona.

Pelo perfil das demandas, o mediador precisa compreender todas as nuances do problema e demonstrar paciência para estabelecer uma relação de confiança com os envolvidos. Por isso, muitas vezes essa tarefa fica a cargo de profissionais das áreas de psicologia ou sociologia.

A conciliação extrajudicial difere da mediação, uma vez que o conciliador tem de ser mais proativo, dando mais ideias às partes. Enquanto o mediador ouve, o conciliador sugere. Isso exige um conhecimento técnico mais aprofundado sobre o tema do litígio.

Mediação e conciliação têm, porém, uma característica essencial em comum. São as partes que tomam a decisão final sobre o caso, sem que um terceiro – mediador ou conciliador – tenha o poder de impor uma solução. “Caso não se chegue a um consenso, o mediador não tem competência para decidir o conflito. Este deverá ser encaminhado ou ao Poder Judiciário ou à arbitragem”, esclarece Ana Lúcia Pereira, presidente do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem.

É nisso exatamente que ambas diferem da arbitragem. “Nela, o árbitro eleito pelas partes tem as mesmas prerrogativas do juiz, de forma que, ao final, ele decidirá o conflito, prolatando uma sentença arbitral, que tem a mesma eficácia da sentença judicial”, diz Ana Lúcia.

Essa foi a modalidade que abriu campo para os MESCs no Brasil. O tema já vem sendo debatido mais intensamente desde a promulgação da lei 9.307, de 1996, que dispõe sobre a arbitragem, mas ganhou força a partir de 2001, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela sua constitucionalidade. Desde então, tornou-se mais comum em contratos empresariais a presença de cláusulas que designam a arbitragem como forma de solução de eventuais litígios.

Trabalho voluntário

Na manhã de terça-feira, 21 de março último, Problemas Brasileiros acompanhou uma amostra do empenho em diminuir o acachapante estoque de processos que tramitam nas mais diversas instâncias do Judiciário brasileiro. Na ocasião, a frase mais ouvida pela conciliadora Mara Silvia Fernandes foi: “Infelizmente, não temos nenhuma proposta no momento, Excelência”. Naquele dia, autores e réus de nove processos sentaram-se frente a frente, intermediados pela advogada, em busca de um acordo que resolvesse ali mesmo a demanda. Em quatro dias por semana, quatro conciliadores realizam voluntariamente esse trabalho no fórum de Pinheiros, localizado na zona oeste da capital paulista. O serviço é disponibilizado de segunda a quinta-feira, envolvendo um total de 16 voluntários. Naquela manhã, porém, apenas um acordo foi selado.

Algumas audiências não chegaram a durar dez minutos. E a maior parte desse tempo era gasto com a apresentação da documentação das partes à conciliadora. Então, chegava o momento da pergunta: “Alguma proposta, senhores?”

Não era, porém, o dia do “sim”. Um dos advogados de um réu chegou a se desculpar com Mara por não ter uma proposta. “É o Judiciário quem agradece quando há um acordo”, respondeu ela.

As negativas recorrentes daquele dia levam a várias certezas. Cada uma das partes arcará com os gastos das custas processuais e com os honorários dos advogados, além de engrossar a fila de brasileiros à espera de justiça. Quem perde mais, no entanto, é o Judiciário, que verá mais pilhas de ações se acumularem em seus fóruns e tribunais.

Para piorar o cenário, ao fim das audiências um funcionário do fórum trouxe um carrinho abarrotado de processos, que um dos juízes teria de despachar naquele dia – tarefa humanamente impossível. Somente para descarregar as pastas sobre a mesa do magistrado, o rapaz levou um bom tempo. Porém, quando se pensa que aquele lote significa uma parcela ínfima dos que atravancam os arquivos Brasil afora, constata-se que apenas ações no âmbito do Judiciário não resolverão o problema.

Muito pelo contrário, aliás. Os processos em questão tinham sido instaurados no Juizado Especial Cível, substituto do Juizado de Pequenas Causas. Na avaliação de Luciana Gross, professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o próprio surgimento dos Juizados Especiais foi um equívoco do Judiciário na busca por uma redução do estoque de processos. “É um exemplo desastroso. Criaram espaço para uma demanda reprimida”, diz ela. Isso porque, em seu entendimento, a maioria das causas que tramitam nos Juizados Especiais antes não chegava a virar uma ação judicial, por envolver apenas baixos valores. Embora todos devam ter acesso à Justiça, não importando quanto tenham a receber, o problema está na maneira como a questão foi conduzida.

Raios X do problema

Exemplos como esses demonstram a atual incapacidade do Poder Judiciário de lidar com a questão – o que também é comprovado pelas estatísticas produzidas pelo próprio CNJ. Segundo o relatório “Justiça em Números”, somente em 2009 foram instaurados 25,5 milhões de novos processos no Brasil, 1,28% a mais que em 2008. Somando-se ao estoque de ações ajuizadas em anos anteriores, tramitaram 86,6 milhões nos três ramos da Justiça – federal, estadual e do trabalho. Este último é o mais eficiente do país, registrando a resolução de 51% dos casos.

O empilhamento é tamanho que o mundo jurídico lança mão de termos próprios do trânsito, falando em taxa de congestionamento – parcela de ações não resolvidas em cada esfera da Justiça. Em 2009, esse percentual chegou a 71%. Ou seja, a cada cem casos, 71 permaneceram sem decisão, engarrafamento digno do horário do rush de sexta-feira nas avenidas marginais em São Paulo. Esse indicador é ainda pior quando se trata da fase de execução, etapa do processo em que se faz cumprir a sentença já proferida pelo juiz. Na Justiça estadual, a taxa é de 90% e na federal, de 80%. Somente dois tribunais regionais federais, o da 3ª e o da 5ª região, conseguiram saldo positivo, dando baixa em um número de processos maior que o de entradas.

Enquanto as cifras de novas demandas impressionam pelo volume, aquelas relativas a pessoal assustam pela escassez. Para dar conta desse universo gigantesco de ações, o Brasil dispõe de 312,5 mil servidores e 16,1 mil magistrados. Com isso, o país apresenta uma média de oito juízes para cada 100 mil habitantes. É um número muito reduzido para uma nação que tem de lidar com quase 90 milhões de processos. Para se ter uma ideia, países como Espanha, Itália e Portugal contam com 18 magistrados para cada 100 mil habitantes. Com a baixa taxa registrada no Brasil, os juízes têm de trabalhar dobrado. Somente em 2009, decidiram 1.439 processos, cada um, em média.

Meios consensuais

Diante desse panorama, a mera perspectiva de acionar a Justiça é altamente desestimulante. Afinal, muitas vezes, pela própria lentidão dos julgamentos, eventuais ganhos de causa são diluídos nos custos registrados ao longo do processo. Segundo o desembargador Ademir de Carvalho Benedito, em alguns casos, recursos, que são medidas recorrentes e intermediárias, podem demandar até cinco anos para ser avaliados. “É absurdo. No meu entender, isso deveria levar no máximo seis meses. A Justiça, quando demora, é injustiça”, afirma.

Assim, em novembro de 2010, o CNJ publicou a resolução 125, que estimula os órgãos judiciários a “oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem como prestar atendimento e orientação ao cidadão”. Entre as disposições da resolução está a regulamentação, por meio de código de ética, da atuação de conciliadores e mediadores. Além disso, o texto orienta a criação de “Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, compostos por magistrados da ativa ou aposentados e servidores”.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), no qual se encontra a maior taxa de congestionamento, foi o pioneiro nessa iniciativa. No último dia 3 de março, o órgão inaugurou um centro destinado a solucionar conflitos referentes a relações de consumo. Apesar de partir de dentro do Judiciário, a ação visa ao estabelecimento de acordos extrajudiciais. Os principais alvos do núcleo serão as demandas que envolvem bancos, convênios médicos, administradoras de cartões de crédito, operadoras de telefonia, empresas de financiamento habitacional e associações de estabelecimentos de ensino, entre outras. “Fizemos reuniões preparatórias com representantes de vários segmentos para indicar processos com mais chance de acordo”, conta Benedito, um dos responsáveis pela implantação do centro.

Segundo ele, 80 conciliadores estarão envolvidos no serviço, que será oferecido de segunda a sexta-feira, das 9 às 19 horas, no Fórum João Mendes Jr., no centro de São Paulo. A meta do tribunal é que o novo órgão realize cerca de 5 mil audiências de conciliação por mês. De acordo com a assessoria do tribunal, essa medida já foi testada no ano passado e levou a um percentual de acordos de 40% nas ações. Em média, pela via da conciliação judicial, o índice do Tribunal de Justiça é de 25%.

Os olhos dos servidores do centro também estarão voltados para a chamada Meta 2 do Judiciário, que visa dar solução a todas as causas iniciadas até o final de 2005. Os especialistas aplaudem a medida. “Cada vez que houver sucesso em um acordo, será um processo a menos”, avalia Carmona.

Oportunidade

A criação do centro de conciliação no TJ/SP é uma boa notícia em meio ao caos de processos empoeirados que se avolumam nos órgãos do Judiciário do país, mas há outros entraves em jogo. Na visão dos especialistas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) encarou os MESCs inicialmente como uma possível perda de mercado e, ainda hoje, não há uma cultura favorável, por parte da classe, aos meios consensuais. “Os advogados não têm queda pela conciliação”, afirma Benedito. “Isso tem a ver com a formação desses profissionais, que ainda são educados para atuar no Judiciário”, complementa Luciana, da FGV.

De acordo com Carmona, o Código de Processo Civil é muito voltado à formalidade, e o fato de os advogados estarem acostumados a grande quantidade de recursos, construções que servem para o processo estatal, leva à repetição de vícios de processos judiciais nos MESCs.

Porém, dada a presença recente dessas alternativas no Brasil, espera-se que a adaptação dos profissionais venha a acontecer. A própria resolução 125 abre uma brecha para que isso ocorra mais rapidamente. O texto estabelece um currículo para a formação de pessoas que atuarão como mediadores e conciliadores. Essa capacitação ficará a cargo dos próprios centros de conciliação instalados nos órgãos do Judiciário e será condição para a admissão desses indivíduos.

Tais medidas tendem a reverter, pela educação, a postura negativa em relação aos MESCs. Da mesma forma, as pessoas terão mais acesso aos benefícios desses serviços. Para isso, a divulgação é crucial. “Precisamos informar a população de que essa forma de resolução de conflitos é válida”, diz Luciana.

Segundo a professora, são muito propícias as condições para o crescimento da opção pelos MESCs. A partir de uma pesquisa coordenada por ela e realizada pela Escola de Direito da Faculdade Getúlio Vargas, o Índice de Confiança na Justiça no Brasil (ICJBrasil), Luciana identificou uma tendência geral na sociedade de maior crença nos órgãos do Judiciário. “As pessoas estão otimistas quanto à melhora da Justiça. Este também é o momento para discutir alternativas a ela. Essa é uma tendência das sociedades globalizadas, e os MESCs são a forma mais simples”, afirma.

Para a elaboração do ICJBrasil referente ao quarto trimestre de 2010, foram entrevistadas 1.570 pessoas em seis estados – Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo – e o Distrito Federal, que, juntos, representam aproximadamente 60% da população brasileira, segundo dados do Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Apesar da melhora, o Judiciário ainda continua muito mal cotado perante a população, quando comparado a outras instituições, de acordo com o ICJBrasil. Com 33% de confiança, ele aparece à frente apenas do governo federal, que tem 25%. As forças armadas figuram em primeiro no ranking, com 60%, seguidas por igreja católica, com 56%, grandes empresas, com 52%, emissoras de TV, com 47%, imprensa escrita, com 43%, polícia, com 40%, partidos políticos, com 37%, e Congresso Nacional, com 36%.

No entanto, há dados bem mais animadores. No mínimo 78% dos entrevistados declararam que certamente buscariam o Judiciário para resolver questões trabalhistas. E o número salta para 90% quando se trata de relações com o poder público e com o direito do consumidor e para 91% no caso de direito de família.

E, apesar de em proporção menor, os MESCs já aparecem como uma possibilidade real de solução de conflitos entre os brasileiros. Quando divididos em amostras por faixa etária, renda, raça, entre outras, no mínimo 47% dos consultados aceitariam utilizá-los. Nesse quesito, os que mais optariam pelos MESCs são aqueles com idade entre 18 e 34 anos (60%), com renda superior a R$ 6.120 (64%) e com escolaridade alta (66%).