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Carlos José Martins

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor do Departamento de Educação Física da Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde integra o Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Desenvolvimento Humano e Tecnologias, Carlos José Martins defende que a visão sobre o corpo é construída a partir de fatores históricos e culturais. “E é na modernidade, contemporaneamente ao surgimento do capitalismo, que se dá o desenvolvimento de tecnologias para otimizar o funcionamento do corpo”, lembra o estudioso.  Nesta entrevista à Revista E, o filósofo se debruça sobre as ideias de Michel Foucault (1926-1984) e Norbert Elias (sociólogo alemão, 1897-1990) para analisar fenômenos contemporâneos ligados ao “culto ao corpo”, como a valorização da saúde e a prática de esportes radicais, de um lado, e a disseminação de patologias como a anorexia e a vigorexia, de outro.

Em qual momento se inicia o que podemos chamar de “ditadura do corpo” perfeito?

Procurei explorar o aspecto comum de culto ao corpo. Nós podemos diagnosticar um investimento cada vez mais intenso sobre os corpos desde o início da nossa modernidade. Michel Foucault intensificou esse investimento sobre os corpos desde o século 17. Houve, a partir dessa época, um interesse crescente tanto pelo corpo dos indivíduos, como pelo corpo da população, o corpo social. E é na modernidade, contemporaneamente ao surgimento do capitalismo, que se dá o desenvolvimento de tecnologias para otimizar o funcionamento do corpo. Esse interesse foi se intensificando no século 19. Agora, temos também que demarcar o surgimento indevido do que também passou a ser chamado de sociedade do espetáculo, onde essa dimensão da imagem passou a vigorar de uma forma bastante intensa.     

Em função de que se dá a modificação do olhar sobre o corpo, a partir do século 17? Historicamente, o que fez com que as pessoas começassem a olhar o corpo?

Essa mudança veio de fora e obviamente operou mais tarde uma mudança na percepção do corpo pelas próprias pessoas. Uma população que vivia dispersa no campo passou a ter outro modo de vida, mais urbano, e também entrou progressivamente no novo modo de produção. Com a necessidade de produzir, surgiram as chamadas disciplinas corporais. Os corpos não se adaptam naturalmente em função dos novos modos de vida, eles resistem. Os episódios que descrevem, por exemplo, a forma de resistência dos trabalhadores, durante o período do capitalismo, em relação à sua carga horária exorbitante e ao modo de exploração extremamente intensa dos corpos, dão conta disso. Como diz Foucault, você precisa docilizar esses corpos. No processo de docilização, através de instituições como a escola, as instituições de saúde e o exército, você aumenta a capacidade produtiva desses corpos e diminui a sua capacitação política.

É quase como se fosse um projeto de poder de apropriação desse corpo. Essas tecnologias visam prolongar a vida e ao mesmo tempo dar a esse corpo uma capacidade maior de tempo útil em função do trabalho?

Associado com o campo da saúde, você precisa ter uma tecnologia para utilizar a vida desses corpos. A aglomeração cada vez maior desses corpos em centros urbanos tornou necessária a tecnologia de higienistas para controlar as endemias e epidemias que se disseminaram, sobretudo, porque estavam mais fortes. A medicina foi uma das tecnologias que possibilitaram o objeto desse novo modo de vida, a medicina social, como chamava Foucault. A medicina social está na origem do próprio capitalismo; não a medicina privada como conhecemos.

O que caracterizaria essa medicina social, em termos de evolução histórica?

A medicina que investiu nos corpos dos indivíduos constituídos em população. Ela tem dois grandes ramos: a medicina higienista e a medicina eugenista. A higienista estaria mais ligada aos aspectos desse novo modo de vida urbano, sobretudo o controle das endemias e das epidemias. Com isso, você otimiza a capacidade de trabalho e de reprodução desses corpos, o tempo de vida útil.
O auge foi o século 19, quando emergiram, por exemplo, a ginástica e a educação física como conhecemos hoje. A entrada dessas disciplinas no sistema de ensino, cada vez mais vertidos pelo próprio Estado, fez com que a otimização da capacidade dos corpos fosse crescente. Já nessa época se observou a mudança da percepção do próprio corpo, algo que foi se tornando um hábito. O que chamamos hoje de sociedade do espetáculo se intensifica cada vez mais à medida que criamos uma série de modelos de corpo, de saúde, de beleza, de eficiência e de capacidade de atração e sedução.

Em que momento os cuidados com o corpo passam a ter relação com a saúde?

O interesse pela saúde está relacionado ultimamente com essa situação histórica que vem desde o século 17. Através das suas tecnologias e da sua primeira figura como medicina social, o campo da saúde é que investiu no indivíduo como o corpo social, tanto do ponto de vista da anatomia de cada um como também na sua constituição como população. Já a mutação que diz respeito a essa espetacularização do corpo, com o uso das imagens corporais através de uma série de dispositivos tecnológicos e de mídia, é algo recente, contemporâneo, em que o discurso da saúde também aparece como um dos seus vetores.

Esse olhar sobre o corpo, no fundo, acaba sendo um processo civilizatório em relação ao corpo, não é?

Sim, a categoria civilizatória estaria mais presente num autor como Norbert Elias. A partir de Elias, podemos pensar como se deu essa progressiva mudança, no que diz respeito aos cuidados com o corpo e uma série de sentimentos, de afetos novos que foram engendrados por esse processo civilizador. Ele afetou comportamentos em relação a hábitos alimentares, excremento do corpo e toda uma série de relações com o corpo que foram se modificando nesse processo civilizador, produzindo como efeito também o controle sobre as nossas pulsões agressivas.

Norbert Elias diz alguma coisa sobre as pulsões agressivas como formação do corpo?

Na teoria do processo civilizador, Elias pensa, entre outras coisas, como se dá o progressivo controle sobre nossos impulsos agressivos. Um dos aspectos interessantes em Elias diz respeito ao seu estudo sobre o surgimento do esporte moderno, que se deu no mesmo período histórico do século 17 para cá, encontrando seu auge no 19, sobretudo na Inglaterra. Com o esporte moderno, ele encarna a discussão de compromisso de Freud [médico neurologista austríaco e fundador da psicanálise, 1856-1939], em que você consegue produzir a descarga dos impulsos agressivos de uma forma controlada e sutilmente aceitável, útil e prazerosa ao mesmo tempo.

Ou seja, o esporte moderno acaba sendo uma maneira de “controle da agressividade do ser humano” na medida em que você estabelece um tempo para ele descarregar essa energia, dentro de um aspecto de quase competição.

O termo “controle” deve ser utilizado com certo cuidado. Não é uma solução definitiva, porque podemos ter manifestações indesejáveis ligadas ao próprio mundo do esporte. Existem fenômenos como a violência no esporte, manifestações agressivas que escapam a esse controle. O que importa é que, entre determinadas manifestações sociais, o esporte é uma das mais emblemáticas. O Elias e o Eric Dunning [sociólogo inglês] são os autores que propõem essa teoria. Eles mostram como, através das práticas de lazer e do advento do esporte na modernidade, você produz uma solução de compromisso, que é um termo freudiano para dar conta da administração das pulsões agressivas inerentes à espécie humana. É o que eles chamam de “descontrole-controlado das excitações e emoções”.

De maneira geral, essa evolução leva tanto à busca do corpo perfeito como à utilização do esporte em prol da saúde. Ao mesmo tempo, há uma visão exagerada da questão do corpo que leva a doenças como anorexia e bulimia. O que você pode falar a respeito desse “modismo”?

Não existe uma relação necessária de causa e efeito entre esse grande panorama histórico e esse novo fenômeno, o aparecimento de uma série de patologias ligadas a atividades obsessivas com os cuidados corporais, em especial as bulimias, as anorexias e as vigorexias. Elas são inspiradas por um certo modelo de corpo.

O que é a vigorexia?

É a patologia na qual o indivíduo se dedica compulsivamente a cuidados corporais, sobretudo praticando exercícios físicos até o ponto da exaustão, causando sérios danos ao organismo, às articulações, ligamentos e músculos.

À medida que cada indivíduo se relaciona com esse bombardeamento de determinada imagem ideal do corpo, com saúde e beleza, incitado por uma sociedade de espetáculo, o efeito produzido é paradoxal. O que poderia promover a saúde e o bem-estar torna-se compulsivo e passa a produzir o efeito patologisante. Os indivíduos nunca estão satisfeitos com seu corpo. Uma vez que os corpos são singulares, eles nunca vão se identificar com aquele ideal, aquele modelo. A isso é que chamei de culto ao corpo. Se em nome das culturas religiosas o corpo foi negado durante muito tempo, hoje passamos para o movimento inverso, cultuando o corpo de forma até obsessiva, sobretudo esse corpo espetacularizado, esse corpo-mercadoria. Na busca desse corpo, são oferecidas uma série de mercadorias e dispositivos tecnológicos, medicamentos que prometem saúde e beleza. Nossos corpos são incitados a entrar nesse circuito.

O que indicam essas interferências sobre o corpo, como as aplicações de botox, as plásticas e a lipoaspiração, entre outras intervenções de caráter cirúrgico?

Nós nunca tivemos ao longo da história da humanidade tantas técnicas de modificação das nossas características corporais e elas estão cada vez mais disponíveis nesse mercado de culto a uma imagem idealizada do corpo. Pessoas que obsessivamente procuram modificar o corpo, seja através de uma série de práticas, seja através da própria intervenção cirúrgica ou medicamentosa, são um caso emblemático.

Vamos pegar o exemplo de Michael Jackson. Depois de tantas cirurgias, na tentativa de modificar o corpo, como ele fez, acabou morrendo de forma dramática. Você acha que isso traz alguma reflexão para uma sociedade montada sobre esses preceitos?
Houve um excesso, no caso dele, e de alguma forma uma conivência do próprio médico, que foi aplicando os medicamentos com efeitos colaterais que podiam, inclusive, levar ao óbito, o que de fato aconteceu. Outro exemplo que concretiza essa ideia é a morte das modelos numa profissão em que a questão da magreza torna-se extremada. Muitas vezes, para se manter em alta, as modelos fazem sacrifícios enormes, com risco da própria saúde e da vida.

Existe alguma forma de resistência a esse culto ao corpo?

A contracultura é um grande exemplo. Você pode encontrar manifestações contraculturais em relação a esse culto ao corpo que vão na contramão, propondo formas de resistência à modernização do corpo pela sociedade do espetáculo. Pessoas que vão se constituir em comunidade podem, obviamente, construir laços sociais que resistem a essa lógica, até porque a imposição de forma absoluta dela também tem os seus limites.

Vamos falar do aspecto positivo do cuidado com o corpo. Com o processo de higienização a partir do século 17, e depois a valorização do corpo, o homem começa a cuidar do seu principal instrumento. Ainda hoje, o esporte tem um lado extremamente positivo, haja vista os médicos apontando a necessidade de condicionamento físico etc.

Isso de fato é um ganho histórico. O aspecto negativo é quando esse cuidado se torna algo extremado, sobretudo ligado a uma certa imagem idealizada. Obviamente, não existe um modelo de saúde ou de beleza que valha para todos. Essa visão que busca colocar em foco a vitalidade da particularidade de cada corpo é que poderia ser um ideal interessante para ser usado como parâmetro. Pegando uma ideia de alguns filósofos com os quais trabalho, na verdade cada corpo é a expressão singular de uma determinada configuração, de uma determinada forma de vida, e é nessa singularidade que ele deve ser vitalizado.  

Isso tem um reflexo interessante sobre essa característica da sociedade atual, em que as pessoas querem parecer e parecem mais jovens. Uma pessoa com sessenta e poucos anos, como o Mick Jagger, que um século atrás seria considerado um senhor provecto, hoje tem o corpo e a postura de uma pessoa de aparentemente 40 anos.

É o aspecto positivo do advento dessas práticas, a possibilidade de você aumentar a longevidade com qualidade de vida. Nessa medida, você tem uma relação adequada entre os corpos e as aquisições que essas novas práticas e técnicas disponibilizam. O problema é quando isso se torna um imperativo que coloca a própria saúde dos indivíduos em prejuízo. É impossível ser jovem eternamente, pelo menos por enquanto.

Como você vê o advento e a prática de esportes radicais, a intensificação dessa tendência?

Esse é um problema bastante complexo e também, de novo, um efeito paradoxal do nosso tempo. Uma série de dispositivos de controle social foi conquistada, a vida tornou-se progressivamente calculada, organizada e protegida, e nós fomos banindo ou afastando as situações de risco, com as quais o corpo se excita. Os esportes radicais são uma espécie de sintoma da adequação a essa nova realidade. A implementação de determinadas excitações, desde que devidamente controladas em situações de riscos ou de aventura, parece-me completamente saudável. Existem antropólogos que vêm se dedicando a esse fenômeno. E suas explicações dão conta exatamente de uma tentativa de intensificação da vida através dessa relação com o risco. O problema é quando isso ocorre de forma exacerbada, colocando em risco a vida dos praticantes.

Muitas dessas configurações sobre as quais estamos conversando parecem ser pautadas em atendimento à indústria farmacêutica. Por exemplo, uma pessoa insatisfeita com seu corpo desenvolve uma patologia como anorexia, é obrigada a ser medicada e pode se tornar dependente dessa medicação.

De fato, houve uma crescente e progressiva medicalização. A introdução desses medicamentos no circuito de consumo dá um papel de destaque para a indústria farmacêutica, que coloca sistematicamente no mercado novas drogas. Há, obviamente, um interesse da indústria farmacêutica, mas como um dos desdobramentos desse processo de medicalização progressiva das nossas vidas. Na medida em que nós manipulamos nossos metabolismos corporais por meio de uma série de procedimentos médicos, e drogas ativas que a indústria farmacêutica coloca no mercado, nós nos tornamos progressivamente dependentes desse circuito. O estado do sono ou vigília, os processos de reprodução da espécie humana, o apetite, a imunidade contra as doenças, a regulação das emoções, o envelhecimento celular, todas as funções que antigamente eram postas como naturais tornaram-se cada vez mais artificiais e manipuláveis. Esses sintomas é que dão conta da delicadeza e da gravidade de saber qual é a boa medida dessas conquistas. Deveríamos buscar maior proveito de cada um dos indivíduos e da população de maneira geral para poder estabelecer uma relação adequada e criteriosa.